Entre os itinerários possíveis no sétimo dia do II Fronteira, talvez seja possível demarcar um caminho em torno do problema da visibilidade – da “política da beleza”, tal como esta se faz visível no “esplendor do mundo” (conforme o título da mostra que abriu as projeções) à poética da desfiguração que converte o visível em informação manipulável, no limite da distorção e da desintegração do mundo (no último filme do dia, Videofilía), passando pelo jogo complexo entre visibilidade e invisibilidade que caracteriza as diversas formas de fronteira associadas ao arame farpado como forma cultural (em Devil’s rope).
Toré (2014), de João Vieira Torres e Tanawi Xucuru Kariri, evidencia um problema delicado: como filmar o que não se pode ver? Essa pergunta – que corresponde a um dilema ético e político frequente no documentário (particularmente do documentário etnográfico) – se desdobra, no filme, em quatro sentidos, entre os quais se adivinha o ritual do Toré, comumente praticado por índios de diferentes etnias que habitam ou habitaram o sertão nordestino.
Em primeiro lugar, como filmar o que vejo? Aqui, é preciso interrogar as condições estéticas de conversão do invisível em visível: as escolhas estilísticas, as formas articuladas ou desarticuladas, as convenções assumidas ou deslocadas pelo sujeito que controla os modos de exposição do mundo fabricados por meio dos usos da câmera e da montagem.
Em segundo lugar, como filmar o que me mostram? Aqui, é preciso começar a pensar o gesto de filmar como uma relação com o outro: o que vejo é, em parte, o que me mostram, o que um outro me mostra, o que alguma alteridade oferece como uma forma singular de aparição.
Em terceiro lugar, como filmar o que é proibido ver? Aqui, o outro demarca um limite para meu olhar, uma opacidade resoluta diante da qual todo desejo de transparência se converte em uma violência, e é preciso que essa delimitação seja compreendida como parte das condições de possibilidade do visível. O invisível produzido pela interdição parcial do ritual condiciona as possibilidades de aparição do visível.
Finalmente, como filmar o que não sou capaz de ver? Aqui, depois de um percurso entre sujeito e alteridade, trata-se de descobrir a opacidade constitutiva de toda posição de sujeito. É preciso interrogar o gesto de filmar como um gesto atravessado por uma espécie de cegueira diante do mundo, cuja origem não é uma interdição do outro, mas uma condição do próprio sujeito.
Entre esses sentidos, Toré se aproxima do ritual com o cuidado de recusar o exotismo do extraordinário por meio da inscrição do exótico (o que transborda o enquadramento do olhar) no ordinário, no comum, no cotidiano. Ao mesmo tempo, uma espécie de exofonia abre, no interior do filme, um intervalo em que as músicas clássicas ocidentais tocadas em Fantasia, que passa na televisão, entram numa relação de deslocamento e desestabilização mútuos com as paisagens sonoras do cotidiano e, depois, com aquelas do ritual.
Devil’s rope (2014), de Sophie Bruneau, explora o arame farpado como forma cultural, mais ou menos como Georg Simmel explorou a moldura do quadro, a asa do jarro, a ponte e a porta como prismas em que se revelam aspectos cruciais da experiência humana. O filme de Bruneau se apresenta como um paciente catálogo dos usos sociais e dos sentidos simbólicos do arame farpado, na demarcação de terras de fazendas e de movimentos dos animais, no cercamento de prisões e no impedimento de fugas de prisioneiros, na configuração da fronteira entre México e Estados Unidos como uma zona de contato e de exclusão.
A composição cuidadosa dos enquadramentos e o rigor ao mesmo tempo matemático e poético dos movimentos de câmera conferem ao filme uma densa lentidão, que gradualmente revela a complexidade das teias de sentido que circundam e atravessam o arame farpado. Os longos travellings que acompanham as cercas das fazendas desde o início do filme evidenciam uma contraposição entre a mobilidade do olhar cinematográfico e as cercas como tecnologias de controle do movimento.
Efetivamente, em Devil’s rope, o travelling é menos uma questão de moral (isto é, de demarcação de um limite da encenação, uma opacidade que corresponde a um princípio ou a um conjunto de valores positivos) do que uma questão de ética (isto é, de inquietação de toda forma de limite, de princípio, de valor, a partir da experiência, no sentido forte do termo: a travessia do mundo como alteridade irredutível).
Videofilía (y otros síndromes virales), de Juan Daniel Molero, é uma intensa experiência narrativa, na qual se misturam redes sociais, pornografia, drogas e outras “síndromes virais”, como diz o título do filme. A videofilia aparece, assim, como um tema da narrativa, sobretudo no dispositivo elaborado pelo protagonista para filmar suas relações sexuais. Ao mesmo tempo, contudo, a videofilia é também uma dimensão formal, uma deriva do estilo e, com frequência, uma dádiva ambivalente destinada ao espectador, uma espécie de presente envenenado, um prazer da visão atravessado pela melancolia de uma consciência da desaparição do visível no informe.
As formas de interferência entre planos e imagens, tais como glitches e datamoshing, fazem proliferar na tela as possibilidades de desfiguração dos rostos, dos corpos e do mundo. Nesse sentido, um dos fundamentos da imagem cinematográfica que Videofilia perturba, em alguns de seus melhores momentos, é a encenação, entendida como organização figurativa dos rostos e dos corpos no interior do espaço pró-fílmico.
Quando os rastros da desfiguração de um plano permanecem na tela como uma sedimentação de vestígios espalhados sobre o plano seguinte, uma espécie de anarqueologia da encenação vem ocupar o lugar que tem, no cinema, uma certa organização arqueológica dos sentidos do espaço, dividido em níveis de profundidade e em planos que tendem a permanecer separados entre si. Nessa anarqueologia da encenação, o sentido de profundidade e a lógica do encadeamento da montagem cedem lugar a um jogo (uma economia anárquica e, portanto, falha- e aí residem suas melhores qualidades) de acumulação interminável e de dispêndio irreversível.