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A água como metáfora: Azul é a cor mais quente, políticas da identidade, poéticas da existência

Numa das sequências mais densas de Azul é a cor mais quente, a imagem da água se converte em uma metáfora das poéticas da existência.

Uma das passagens de Azul é a cor mais quente que permaneceu reverberando na minha memória, insistentemente, com intensidade cada vez maior no decorrer dos dias, consiste no momento em que o poema “De l’eau” (“Da água”, ou simplesmente “Água”), de Francis Ponge, é discutido numa das aulas de literatura de Adèle. Nessa passagem, esboça-se, indireta e sutilmente, um deslocamento de alguns dos discursos socialmente mais difundidos sobre o tema da sexualidade: os discursos que procuram definir as coordenadas da identidade com base em alguma ideia de natureza, do que é natural, que nesse contexto se tende a associar ao verdadeiro, em contraposição ao artificial, que se tende a associar ao falso. O deslocamento do discurso da naturalização da sexualidade, que o filme insinua por meio da citação de um trecho do poema de Ponge, pode ser, por sua vez, desdobrado num argumento sobre o problema da heteronormatividade, que tanto tem assombrado as divergentes leituras sobre o filme de Kechiche.

A importância da literatura como recurso metalinguístico (ou metassemiótico, se preferirem) em Azul é a cor mais quente (que discuti, sobretudo, no terceiro subtítulo do meu esboço de análise do filme) não está restrita à referência ao romance La vie de Marianne, de Pierre de Marivaux, que Adèle lê como se ali pudesse encontrar uma parte de si. Se o título do filme na França, La vie d’Adèle, efetivamente remonta ao romance do século XVIII, essa não é a única obra literária cuja discussão, nas aulas de Adèle, oferece pretextos para que o filme introduza algumas chaves de interpretação dos problemas que encena em sua narrativa. Quando os alunos leem e discutem o poema de Francis Ponge sobre a água, em vez de definir um horizonte de expectativas em relação à história de Adèle, como faz por meio da citação de Marivaux, Kechiche introduz metáforas poéticas que desenham os contornos de uma interrogação das políticas da identidade sexual.

A discussão do poema de Ponge ocorre depois de Adèle ter sido confrontada por parte de suas colegas de escola, que a questionam, com agressividade, sobre sua relação com a garota de cabelos azuis. Emma havia ido até a escola de Adèle e as duas tinham saído juntas, sem maiores explicações. No momento da confrontação, duas das colegas se exaltam enquanto exigem saber se Adèle é ou não lésbica. Uma delas acusa a protagonista do filme de ter dormido em seu quarto, no passado, sem ter revelado que era lésbica, de modo que poderia ter se aproveitado dela. Adèle responde negativamente, enquanto outra amiga, que com um beijo conduzira Adèle a descobrir seu interesse por mulheres, observa um pouco afastada. O rosto da amiga de Adèle permanece inescrutável. Ela não defende Adèle, mas também não participa da agressão. Sua expressão parece indecidível. Como escreve Inácio Araújo, para quem esse instante resume as virtudes do filme: “No que pensa? Na coragem da amiga, que ela não tem? No horror pelo qual deixou de passar? No que pode ter perdido? Trata-se de um personagem secundário, que desaparece depois daquilo, mas o mistério daquele instante é absurdo.”

Na sequência seguinte, algumas das palavras de “De l’eau” deslocam as coordenadas de alguns dos discursos que assombram a agressão homofóbica sofrida por Adèle: “Plus bas que moi, toujours plus bas que moi se trouve l’eau […] passive et obstinée dans son seul vice : la pesanteur […]” (que Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson traduzem assim: “Mais abaixo que eu, sempre mais abaixo que eu se encontra a água […] passiva e obstinada em seu único vício: a gravidade […]”). Em seguida, Adèle talvez nem seja capaz de ouvir com atenção a discussão, iniciada pelo professor, que conduz ao comentário de um de seus colegas sobre a imagem inusitada que o poeta fabricou da gravidade, ao identificar o que é uma lei natural como um vício. Esse talvez seja um dos momentos mais ricos do filme de Abdellatif Kechiche no que concerne à temática das políticas de identidade: com sutileza, a poesia de Ponge e sua discussão oferecem uma ocasião para repensar o modo como entendemos o processo de constituição de identidades culturais, em especial da sexualidade (entre gênero e orientação sexual).

Um dos discursos mais difundidos socialmente sobre identidade cultural e sexualidade é aquele que procura vincular o comportamento humano a ideias de natureza, muitas vezes apelando a noções da biologia e das ciências naturais para justificar afirmações morais. Nesse sentido, é comum se ouvir dizer que a homossexualidade não é natural, pois não corresponde ao que estaria determinado no aparato biológico do corpo humano; ao mesmo tempo, é igualmente comum o contra-argumento de que a homossexualidade é natural, justamente por ser encontrada em inúmeras outras espécies animais. Seja para atacar seja para defender a possibilidade de relações homossexuais e homoafetivas, o discurso da naturalização da sexualidade pressupõe uma oposição estática e imutável entre a esfera da natureza, que é entendida como uma fonte de legitimidade do comportamento (se é natural, é moralmente aceitável), e a esfera da cultura, ou da vida humana, que se divide entre a possibilidade do bem, da virtude (a manutenção do que é considerado natural) e a ameaça do mal, do vício (comportamentos considerados não naturais são moralmente condenáveis).

O poema de Francis Ponge perturba as coordenadas do discurso de naturalização da sexualidade. O que é natural se converte, nas palavras de Ponge, em vício: a gravidade aparece como vício da água. Ao deslocar a equivalência entre a dicotomia natural-artificial e a dicotomia virtude-vício, as palavras de Ponge desconstróem o discurso de naturalização. Em vez da inscrição da identidade na esfera da natureza e da exclusão de todo comportamento considerado não natural em nome de ideias de superioridade moral, a metáfora da água conduz ao descolamento entre natureza e virtude. Na brecha que interrompe a identificação entre natureza e virtude, o comportamento humano pode revelar seu fundamento contingente: não há qualquer elemento transcendental (a Natureza ou Deus, por exemplo, mas também a Cultura ou outros termos) que possa circunscrever a experiência humana, fundar seus sentidos, governar sua potência.

Se há uma força singular em Azul é a cor mais quente, ela reside no trabalho ao mesmo tempo sutil e rigoroso de revelação da potência da vida, por meio da imagem cinematográfica. Os close-ups e a encenação da intimidade a que Kechiche se entrega com sua câmera participam do que se faz, no filme, da mais bela pulsação vital: a inconstância de Adèle, sua aparente inércia, seu deixar-se levar pelas outras pessoas e pelas coisas do mundo, nas quais, contudo, continua a buscar, inquieta, seu reflexo e seu abrigo, até o fim. A metáfora da água permanece crucial, sugerida pela cor azul que atravessa a fotografia de cada plano e condensada metaforicamente no comportamento de Adèle. Enquanto Emma consegue seguir adiante, continuar e recriar sua vida em outro relacionamento, pintar e inventar suas obras de arte, Adèle parece permanecer, ao mesmo tempo, feroz e louca, mas também estagnada e banal. Como a água de que fala Francis Ponge:

“Líquido é por definição aquilo que prefere obedecer à gravidade a manter sua forma, aquilo que recusa qualquer forma para obedecer à sua gravidade. E que perde toda sua compostura por causa dessa idéia fixa, desse escrúpulo doentio. Desse vício, que o torna rápido, precipitado ou estagnado; amorfo ou feroz, amorfo e feroz, feroz terebrante, por exemplo; ardiloso, filtrante, contornante […]”

“A água me escapa…me escorre entre os dedos. E olhe lá! Isso nem é tão limpo (quanto uma lagartixa ou uma rã): ficam-me nas mãos traços, manchas, relativamente demorados para secar ou que se devem enxugar. Ela me escapa e, no entanto, me marca, e quase nada posso fazer. Ideologicamente é a mesma coisa: ela me escapa, escapa a qualquer definição, mas deixa em meu espírito e neste papel traços, manchas informes.”

“Inquietude da água: sensível à menor mudança da declividade. Pulando as escadas com ambos os pés ao mesmo tempo. Brincalhona, pueril de obediência, voltando imediatamente quando a chamamos mudando a inclinação para o lado de cá.”

Na metáfora da água, que desmonta as coordenadas rígidas do discurso de naturalização da sexualidade, Azul é a cor mais quente encontra a imagem das poéticas da existência. Em vez da rigidez das políticas de identidade, a água insinua a fluidez da diferença e da transformação. Em vez da hierarquia moral em que o discurso da naturalização encerra as definições de identidade, a água projeta um espaço efetivamente ético de estranhamento e de renovação, de interrogação incessante, sem fixação de formas, e de alteração sem fim, isto é, sem término e sem finalidade.