O texto a seguir foi publicado no catálogo do II Pirenópolis Doc, que ocorreu entre 03 e 07 de agosto de 2016 e incluiu uma retrospectiva de filmes de Joel Pizzini, com a exibição das seguintes obras: Caramujo Flor (1988), Enigma de um Dia (1996), 500 Almas (2004), Dormente (2005), Helena Zero (2006), Mar de Fogo (2014), Último Trem (2014) e Olho Nu (2014).
Há um parentesco mais ou menos secreto entre o cinema e o sonho. Esse parentesco múltiplo e ambivalente está no cerne do cinema de Joel Pizzini, como revelam os temas e as formas que se articulam para compor os curtas caracteristicamente experimentais (ainda que muito diversos entre si) Caramujo Flor (1988), Enigma de um Dia (1996), Dormente (2005), Helena Zero (2006), Mar de Fogo (2014) e Último Trem (2014), assim como, de modo mais convencional, embora não menos contundente, os longas documentais 500 Almas (2004) e Olho Nu (2014). Será preciso explorar os sentidos desse núcleo onírico do cinema de Pizzini e desdobrar suas figuras, da poesia de impulso iconoclasta à fascinação idólatra.
Efetivamente, a diversidade temática dos filmes de Pizzini pode ser reunida em uma série de lugares comuns que se comunicam pelo motivo informe da passagem ao sonho, enquanto a variedade de procedimentos formais que o diretor adota está, recorrentemente, habitada e atravessada por movimentos comuns na experiência do sonho e em seus limiares: a quebra das relações convencionais entre sujeitos, objetos e ações, seja perturbando sentidos de causa e efeito, seja interrompendo e embaralhando a cronologia; o deslocamento de elementos de seus lugares usuais, revelando a estranheza que neles se dissimula; a condensação de aspectos disjuntos em montagens associativas, seja no eixo vertical da relação entre som e imagem ou, menos frequentemente, da sobreposição de imagens, seja no eixo horizontal do encadeamento de planos.
Adaptar poesia?
A poesia é, sem dúvida, uma das formas da relação com o sonho que o cinema de Pizzini privilegia, tanto em seus temas quanto em seus procedimentos formais. Caramujo Flor (1988), seu primeiro filme, aborda a poesia de Manoel de Barros. Se o problema da adaptação está mais frequentemente ligado à passagem de obras literárias em prosa, como contos e romances, para o meio cinematográfico, Caramujo Flor parece introduzir o problema da adaptação cinematográfica de obras literárias em poesia. Como inscrever em imagens de cinema as aventuras poéticas de Manoel de Barros em sua Gramática expositiva do chão, poesia quase toda? Como traduzir cinematograficamente uma escrita poética que desestabiliza os sentidos comuns das palavras? Como transcriar, por meio de imagens e de sons, o estranhamento e o encantamento que se entrelaçam nos poemas de Manoel de Barros?
O filme de Pizzini transita entre paisagens urbanas e naturais, explorando o movimento da viagem de diferentes personagens, cuja aparição abre pequenos intervalos narrativos no interior das experiências poéticas que o diretor elabora, a partir da declamação polifônica de trechos da poesia de Manoel de Barros. Enquanto os intervalos narrativos se rarefazem entre as poesias, lançando as personagens em direções diferentes, embora convergentes, o olhar da câmera se volta para o chão, para sua textura, para suas criaturas.
A justaposição que dá título ao filme assume diferentes sentidos: o caramujo e a flor são metonímias do mundo natural; ao mesmo tempo, metaforicamente, o caramujo é também uma das formas da flor, isto é, seu movimento lento é também o de um desabrocho; por sua vez, também metaforicamente, a flor desabrocha como um caramujo, isto é, o modo como uma flor nasce é movimento e duração, tempo dilatado, inquietude vital que pulsa no imóvel. Nas imagens do filme, os motivos da mobilidade e da imobilidade são associados, respectivamente, à organicidade dos corpos, por um lado, e à concretude das pedras, por outro, ao mesmo tempo em que se explora a passagem em que essas diferenças e oposições se rarefazem: a certa altura, o corpo de Ney Matogrosso se torna pedra sob a lenta caminhada de um caramujo, num plano que se desdobra, mais adiante, numa imagem da passagem de um caramujo sobre um relógio. Ali onde caramujo e flor tinham se articulado metonímica e metaforicamente, a poesia das imagens evidencia o afloramento do corpo humano na lenta duração do mundo. Em vez de estar separado do mundo, dos animais e das plantas, da água e da terra, o corpo se condensa como pedra e se desloca como tempo no trabalho de sonho de Caramujo Flor.
Densidade onírica
Um dos modos de passagem ao sonho que está em jogo na experiência do cinema, em geral, e no curta Enigma de um Dia (1996), em particular, é o da imersão sensorial e imaginativa do espectador. Tendo sido exibido no contexto do encerramento de exposição dedicada ao pintor Giorgio de Chirico (1888-1978), realizada em 1998, no Museu Brasileiro da Escultura (MuBE), na cidade de São Paulo, o filme de Pizzini explora a relação de um vigia com o quadro homônimo, datado de 1914. Significativamente, o quadro pertence à escola da pittura metafisica, um movimento que é um dos precursores da exploração surrealista da experiência dos sonhos.
A pintura do artista italiano, que só se revela no final do filme, mostra arcos em primeiro plano, à esquerda; torres que se erguem ao fundo, diante de montanhas que se estendem na linha do horizonte; e uma locomotiva em deslocamento, à direita. As figuras humanas que a habitam estão distantes, no fundo, mais próximas da locomotiva; no meio, centralizada no quadro, está uma estátua sobre um pedestal. Antes da revelação da pintura, que constitui o plano final do filme e sucede um plano em que a figura do vigia se sobrepõe à forma da estátua, a viagem imersiva do vigia se desdobra em uma série de planos que o mostram em meio a paisagens urbanas, entre prédios e torres que lembram a arquitetura presente no quadro, entre linhas férreas e estações de trem, e paisagens rurais, entre animais e montes de chapadas.
O início de Enigma de um Dia realiza uma inversão do olhar em relação à arte, oferecendo ao espectador o contracampo do quadro: uma sucessão de espectadores que o contemplam e o comentam. Nos planos finais, a aparição do quadro diante do vigia está separada de sua reprodução fílmica para o espectador por um plano do olho do protagonista. Entre o início e o fim, a viagem imersiva emerge como uma jornada imaginativa em que se articulam as memórias que constituem a personagem e as ficções que vive no passeio sugerido pelo quadro. Efetivamente, a indeterminação das imagens e de sua consistência (real ou imaginária, lembrada ou inventada) confere aos planos do filme de Pizzini uma densidade onírica.
O sono e o sonho da razão
A densidade onírica do cinema de Pizzini se associa a seu interesse na adaptação de poesia em um de seus trabalhos mais recentes, o curta Último Trem (2014), que foi inspirado no poema “Visão do último trem subindo ao céu”, de Joaquim Cardozo. A montagem vertical de som e imagem desdobra a polifonia da declamação do poema de Cardozo por duas vozes, uma masculina e outra feminina, em meio a uma montagem horizontal descontínua e associativa ao mesmo tempo. Enquanto a voz masculina canta e a voz feminina lê trechos do poema, as imagens traduzem parte de seus sentidos, sem qualquer aspiração à sincronia ou à coincidência, sem qualquer risco de redundância ou de repetição.
Último Trem parece conduzir a densidade onírica a um extremo de perturbação da razão discursiva, tanto em sua forma textual e poética, dilacerada pela orquestração polifônica, quanto em sua forma cinematográfica e imagética, fragmentada pela montagem. Se “el sueño de la razón produce monstruos”, como escreveu Francisco de Goya em uma das gravuras da série Caprichos, Último Trem sugere que o cinema de Pizzini se instala na ambiguidade da tradução da palavra “sueño”: é um cinema da imagem onírica, isto é, da imagem que sonha, da imagem como poesia – em suma, um cinema de poesia – mas talvez seja também um cinema da imprecisão entre a vigília e o sono, um cinema da imagem imperfeita (seja o Super 8 ou alguma imagem de arquivo que se deteriorou) – em suma, um cinema da imagem dormente. Talvez seja possível reconhecer no dormente e no onírico os dois caminhos entrelaçados em que transita o cinema de Pizzini.
Ancoragem e deriva
Quando Pizzini se volta ao que desperta seu fascínio, como Helena Ignez, em Helena Zero (2006), ou Ney Matogrosso, em Olho nu (2014), as experimentações estéticas que caracterizam seus procedimentos formais operam dentro de recortes temáticos que tendem a ancorar de modo mais contido as derivas experimentais. Nos dois filmes citados, a dimensão biográfica da abordagem se rarefaz pela quebra da cronologia. No curta dedicado a Helena Ignez, as imagens da atriz em diferentes tempos, lugares e filmes encontram seu lugar comum nas lembranças encadeadas e na prática de Tai Chi Chuan realizada por ela, num registro de suas explorações espirituais mais recentes. A artista se revela, dessa forma, como uma das musas de Pizzini, à medida em que este faz dela a protagonista do que denomina, no subtítulo do filme, “O Musicaos”.
Em Olho nu, produzido em parceria com o Canal Brasil, a figura de Ney Matogrosso é objeto de uma abordagem biográfica menos rarefeita, mas não menos marcada pelo fascínio. Assim como Helena Ignez, Ney Matogrosso se revela matéria de sonho: uma construção cênica e ficcional feita a partir de uma multiplicidade de imagens, que existem e proliferam antes e depois dos filmes que Pizzini dedica a cada um dos artistas – que trabalharam juntos recentemente, em Luz das Trevas (2010) e Ralé (2015). A dimensão mítica que suas figuras assumiram no contexto artístico brasileiro é, ao mesmo tempo, discutida e confirmada por Pizzini, entrecortando o amplo arquivo visual e sonoro que existe sobre cada um, recortando um itinerário ensaístico em meio a uma diversidade de possibilidades interpretativas.
Quando Ney Matogrosso recorda sua consciência de estar atuando quando entra no palco para cantar ou num auditório de televisão para ser entrevistado, é também sobre os depoimentos que oferece a Pizzini que recai sua fala. Quando ele se lembra de ter decidido confrontar a proibição de olhar para a câmera e, assim, estabelecer contato direto com seus espectadores, é também sobre os sentidos políticos da criação artística, em geral, e do filme de Pizzini, em particular, que recaem suas ideias. Ao mesmo tempo em que permite entrever a continuidade da questão da presença cênica para o próprio Ney no arquivo de suas aparições audiovisuais, o filme de Pizzini fragmenta essa continuidade e rarefaz a contundência dessa questão, assim como se rarefaz, em Helena Zero, a contundência de uma série de questões que assombram a figura de Helena Ignez e sua participação na história do cinema e da arte no Brasil. De fato, essa rarefação da contundência de determinadas questões não decorre de sua negação, mas da abordagem do diretor, que tende à deriva multifacetada e equívoca, mesmo ali onde seus temas pareciam reclamar uma ancoragem mais unívoca e monográfica.
A imagem dormente guató
Quando Pizzini realiza o longa documental 500 Almas (2004), a deriva experimental, que opera além da cronologia estrita e explora as possibilidades da encenação, torna possível que a ancoragem temática se desdobre em sua complexidade, cujo enigma se resume em uma palavra: guató. De modo mais evidente, trata-se do nome de uma língua e de uma etnia indígena que, depois de serem consideradas extintas pela Fundação Nacional do Índio, foram gradualmente recuperadas e reinventadas pelo trabalho da missionária italiana Ada Gambarotto e, depois, da linguista Adair Pimentel Palácio, com base em estudos anteriores realizados pelo etnólogo Max Schmidt, assim como, de modo mais indireto, pelas aventuras poéticas de Manoel de Barros em meio às paisagens do Pantanal e, de modo fundamental, pelas buscas existenciais dos índios interessados na reivindicação de uma identidade que parecia estar destinada à desaparição, como Josefina, essencial ao esforço de catalogação e estudo da língua guató, ou Celso, que desempenhava importante papel na resistência ao genocídio até seu cruel assassinato, em 1982.
Guató é também o nome de uma imagem dormente, que 500 Almas se dedica a revelar, entre esforços de reconstituição do passado por meio de depoimentos coletados em entrevistas e questionamentos do presente, do que resta e do que pulsa ainda por fazer entre os remanescentes. De fato, o filme de Pizzini contribui para a recuperação e a reinvenção dos guató por meio da reunião dos fragmentos de uma história que se desenrola em múltiplos lugares e tempos, entre os quais o filme procura transitar: a Europa colonial e seus debates sobre a presença ou ausência de alma entre os ameríndios; o Brasil colonial e sua herança genocida; o Museu Etnográfico de Berlim, onde está o material coletado por Max Schmidt no início do século XX; o Brasil imperial e as expedições científicas que o mapearam, como a Expedição Langsdorff (1824-1829), na qual índios da etnia guató foram retratados por Hercule Florence; o Pantanal e suas paisagens ao mesmo tempo frágeis e intransigentes; o Brasil republicano e a redescoberta ambivalente de seu interior em viagens como as expedições da comissão do Marechal Cândido Rondon, que incluíram o cinegrafista Major Luiz Thomas Reis; os tempos múltiplos da memória de cada pessoa entrevistada, que nem sempre coincidem com os tempos demarcados da história e, mesmo quando o fazem, permanecem desajustados em sua duração, são tempos de experiências singulares, e não de processos históricos coletivos.
Para transitar entre os lugares e tempos que é preciso atravessar pra revelar a imagem dormente guató, Pizzini articula, em 500 Almas, imagens associadas a cada um daqueles contextos. As filmagens do presente se alternam entre depoimentos; gestos do trabalho e do cotidiano; as paisagens mínimas da textura das águas, das matas e das faces, enquadradas de perto ou em planos médios; as paisagens amplas das ranhuras da terra, enquadradas do alto, em sobrevoos que resultam em planos abertos e em movimento. O material de arquivo e as imagens de que Pizzini se apropria incluem gravuras de Florence, trechos da primeira parte de Die Nibelungen, intitulada Siegfried e filmada por Fritz Lang (1924), registros realizados por Zelito Viana em seu Terra dos Índios (1979), trechos do arquivo constituído pelo Major Reis no início do século XX, etc.
Se 500 Almas está preocupado em reconstituir o processo histórico do genocídio e da resistência inventiva a ele, sua abordagem não é, contudo, apenas reconstitutiva e referencial. Por meio de montagem vertical, as relações entre som e imagem se refratam e se multiplicam, inscrevendo a polifonia das vozes na tessitura das imagens. Além disso, numa abordagem poética e performática de seu tema, Pizzini explora tanto a poesia de Manoel de Barros quanto, de modo contundente, enxertos de encenação protagonizados por Paulo José e, a certa altura, também por Matheus Nachtergaele, da peça Controvérsia de Valladolid (1992), de Jean-Claude Carrière, em torno do conhecido embate entre Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de Las Casas, em 1550, sobre a condição ameríndia, opondo os argumentos de Sepúlveda em defesa da legitimidade da escravização indígena, uma vez que lhes seria negada a condição humana (os ameríndios não possuiriam alma) e os argumentos de Las Casas em defesa da liberdade indígena e da possibilidade de reconhecimento de sua dignidade humana (em suma, os ameríndios possuiriam alma). A moeda falsa da encenação inquieta a economia documental que comanda o filme de Pizzini: os enxertos cênicos entrecortam o documentário com a potência de uma deriva interrogativa (uma especulação) que ultrapassa sua ancoragem referencial (sua caução, seu capital acumulado), sem recusar e sem reduzir sua singularidade. Nessa deriva, a imagem dormente guató, cujo despertar o filme reconstitui, acompanha e prolonga, pode alcançar uma pulsação poética que é, ao mesmo tempo, um sonho de futuro, título promissório, margem especulativa.
Movimento, deslocamento, passagem ao sonho
Entre o dormente e o onírico, o cinema de Joel Pizzini demarca seu itinerário de experimentação e condensa um fascínio singular com um dos motivos fundadores da história do cinema: o movimento, em geral, e o trem, em particular, como uma de suas formas específicas. Em Dormente (2005), a condensação desse fascínio alcança sua articulação mais detalhada. Dormente é tanto o estado subjetivo que o filme busca representar quanto uma condição objetiva do movimento em que se inscrevem essas representações: de um lado, o limiar e a travessia entre a vigília e o sono, em que todo objeto se revela fluxo, a percepção se torna devaneio e a consciência tende à alucinação; de outro lado, o suporte que abriga os trilhos, que os fixa e os sustenta, para que se tornem o lugar da passagem do trem.
Como no registro fundador em que os irmãos Lumière voltaram seu cinematógrafo para a chegada do trem na estação de La Ciotat, consagrando a relação do cinema com um dos símbolos da modernidade, em Dormente, a passagem do trem sobre os trilhos e sobre os dormentes que os encadeiam se torna a ocasião de uma passagem ao sonho, que se expressa tanto na montagem que justapõe planos descontínuos e que sobrepõe imagens como se pertencessem ao mesmo movimento quanto em procedimentos vertiginosos de desfoque, solarização e abstração das representações. As estações de trem e de metrô, as ruas e as linhas de eletricidade e de comunicação que as recortam, os prédios e as árvores que habitam a paisagem, os corpos que a atravessam como fantasmas, na dormência da espera e da passagem pelos entre-lugares que assombram – tudo isso se inscreve como imagem dormente e promete, como todo cinema, a passagem ao sonho.
Dormente desdobra os sentidos de sua promessa de passagem ao sonho numa deriva pela multidão de anônimos, conforme uma experiência caracteristicamente moderna de perda dos sentidos fixos de identidade e de pertencimento. Efetivamente, a modernidade é, também, uma herança e uma deriva da luz – do Iluminismo que formula parte de seus ideais mais importantes, da eletricidade que torna possível suas fantasmagorias, dos vagalumes de resistência que fazem pulsar alguma vida, em meio a sua luz ofuscante e à escuridão que a constitui. Enquanto vemos se desintegrarem e se confundirem, num cinema de poesia que responde a um impulso iconoclasta, as luzes e as formas que estas tornam visíveis, ouvimos Itamar Assumpção cantando sua relação com São Paulo e a beleza da busca de si como projeto: “eu não me amo, mas me persigo”, “bonita palavra, perseguir”. De forma lírica, Dormente revela que, se há promessa de passagem ao sonho no cinema de Joel Pizzini, não se trata de um movimento que encontre seu desfecho, que chegue a algum termo; ao contrário, o cinema de Pizzini parece habitar justamente o limiar indecidível da passagem ao sonho, e sua morada se ergue sobre uma forma de imagem que se pode denominar dormente, tanto no sentido de que está no limite móvel e incerto entre vigília e sono quanto no sentido de que está no fundamento da travessia do aparelho cinematográfico sobre o mundo. A imagem dormente é delírio e caminho, devaneio e vagueação.
Ensaio e máscara
É justamente na encruzilhada em que os atos de devanear e de vaguear se atravessam que aparece Mar de Fogo (2014), um curta dedicado à memória do cinema, ao cinema de poesia, ao cineasta Mário Peixoto e à herança de sua obra-prima Limite (1930), que Pizzini reivindica ativamente como parte do que o levou a fazer cinema. Os temas que percorrem a obra de Pizzini – e cuja interrogação informa, igualmente, suas escolhas formais – aparecem tanto nos depoimentos de Mário Peixoto que o diretor coletou quanto na montagem exploratória que o permite transitar com liberdade pelo rico material de arquivo que tem a sua disposição. Efetivamente, além de converter Limite numa espécie de arquivo fundamental do cinema de vanguarda e de poesia no Brasil, Mar de Fogo reúne ainda trechos de O homem do morcego (1980), de Ruy Solberg, e de O homem e o limite (1975), de Ruy Santos, além de registros sonoros de conversas que Pizzini estabeleceu com Peixoto.
A montagem vertical associa os depoimentos de Peixoto a imagens que deslocam seus sentidos – como no plano das ondas que vão e voltam sobre a areia de uma praia, sobre o qual a voz de Peixoto afirma: “O tempo nunca teve uma significação objetiva pra mim. O que o relógio está nos dizendo? ‘Menos um, menos um.’ E nós interpretamos como se ele dissesse ‘Mais um, mais um, mais um…’”. A montagem horizontal encadeia e mistura explorações de temas do filme de Peixoto e dos depoimentos do cineasta sobre suas motivações: “O mar tem voz, tem soluço, tem alegria, tem crueldade.”
Em Mar de Fogo, assim como em outros filmes que realizou, Pizzini compõe um filme-ensaio (ou filmensaio, como ele prefere) em que sua voz e seu olhar emergem da orquestração de vozes e olhares alheios. Se o filme-ensaio é definido, frequentemente, como um filme marcado pela subjetividade do enfoque e pela explicitação do sujeito que fala, o cinema de Pizzini parece constituir uma espécie de filmensaio que tem como fundamento contingente um gesto de mascaramento e de ventriloquia. Nas vozes e nas imagens de que se apropria, Pizzini imprime sua subjetividade, por meio da montagem, participando, dessa forma, de toda uma tradição da apropriação artística, que vai do recurso à mera citação até o found footage e a estética relacional da pós-produção, passando pelo readymade. Dessa forma, Mar de Fogo talvez possa ser melhor definido como um ensaio anarquívico sobre a memória de Limite, revelada pela voz de Mário Peixoto, tal como soa através da máscara construída pela montagem de Joel Pizzini.
Se o cinema de Pizzini é feito de filmensaios, sua abordagem de seus temas opera por meio de um movimento duplo: é preciso revisitar o arquivo do cinema e da cultura visual que nos habita, isto é, mergulhar nas imagens que o compõem, ao mesmo tempo em que se deve desorganizá-las parcialmente, perturbar a quietude de sua organização e classificação – em suma, é preciso também revirar o arquivo. Em todos os filmes comentados acima, é visível e audível esse movimento duplo de respeito fascinado e de infidelidade iconoclasta, de adesão apaixonada que nunca alcança plenamente seu objeto e de pulsão destruidora que nunca se realiza por completo. Trata-se, de fato, de um movimento característico de todo trabalho de sonho, que dissimula o desejo na ambivalência de um duplo vínculo. No cinema de Joel Pizzini, é um desejo de mundanidade, de chão, de terra, que se dissimula na ambivalência de sua poesia iconoclasta.
Uma resposta em “A imagem dormente”
bonito texto, estou agora a ouvir o Joel em um curso online.