Por que O Lobo de Wall Street é um grande filme?
A primeira resposta para a pergunta do título é, sem dúvida, a mais objetiva: O Lobo de Wall Street (2013) dura 3 horas. Grande filme, isto é, de grande duração.
A duração do filme em que Martin Scorsese encena a hybris do chamado sonho americano é, efetivamente, parte do conjunto de características que associa a produção ao que se pode denominar cinema do excesso. À duração, que muitos condenam, acrescenta-se a repetição de temas e situações dramáticas, que também causa algum incômodo. O que me parece crucial é propor uma leitura positiva das figuras do excesso que habitam o filme e de sua potência crítica.
Há mais grandiosidade do que grandeza ali, por assim dizer, isto é, à duração como dado objetivo do excesso que caracteriza o filme se deve acrescentar uma série de aspectos menos objetivos, mais fluidos, talvez vagos, que conferem a O Lobo de Wall Street sua importância crítica, sua contundência política, sua fabulosa potência de estranhamento em relação ao mundo em que vivemos.
Uma das condições para a compreensão crítica de um filme é o reconhecimento de suas características estéticas, de seu estilo, de sua linguagem, de sua forma, como aspectos constitutivos da expressão de seu conteúdo temático, de sua narrativa, de seu enredo. É impossível analisar uma narrativa fílmica sem considerar seu modo específico de construir as imagens, de enquadrar os planos e de encenar as sequências dramáticas, de fabricar as figuras sensíveis por meio das quais o filme se oferece ao espectador, concretamente, como experiência.
Ao tentar entender o que se passa em O Lobo de Wall Street, é preciso reconhecer que os aspectos formais – alguns dos quais discuti aqui, tais como: a função tripla desempenhada por Leonardo DiCaprio, no papel de Jordan Belfort, como narrador-apresentador-personagem; o dispositivo de inversão cronológica parcial da narração (na antecipação inicial da sequência do arremesso do anão no alvo); o excesso que caracteriza tanto o estilo de narração (a atuação frequentemente caricatural, a verborragia dos diálogos, que suplementa sua eventual pobreza temática, etc.) quanto a forma de produção das imagens que compõem o filme (o recurso a diversos tipos de intervenção na imagem, a lógica “geografia sintética” que substitui o predomínio da lógica da “geografia criativa” etc.) – são o fundamento dos efeitos de sentido que seu conteúdo dramático e temático será capaz de produzir.
De fato, o excesso está presente em outros produtos da indústria cultural estadunidense, contexto a que pertence O Lobo de Wall Street, embora se possa dizer que suas figuras são frequentemente domesticadas por convenções que excluem parte do conteúdo mais polêmico do filme de Scorsese (as drogas e o sexo, sobretudo). O que confere às figuras do excesso sua potência de estranhamento, em O Lobo de Wall Street, é o fato de que alguns dos limites convencionais são ultrapassados, transgredidos, por meio do exagero. A assinatura de Scorsese e a presença de DiCaprio são importantes para tornar possível uma recepção mais ampla para o filme, mas nenhum dos dois, nem o livro de Jordan Belfort em que a obra se baseia, que é um bestseller, são suficientes para explicar a fascinação em torno do que se vê na tela. Os sentidos dessa fascinação são, contudo, diversos – positivos e negativos, divertidos e perturbadores, intensos e entediantes – para espectadores diferentes.
Parte da contundência política de O Lobo de Wall Street decorre do fato de que o filme não é construído apenas por meio da perspectiva de Belfort. Se seu ponto de vista orienta a trama, isto é, a organização da narrativa que se oferece aos espectadores, sua perspectiva não é capaz de dominar, necessariamente, a fábula que os espectadores constroem. É para explorar a perspectiva disjuntiva em relação ao ponto de vista de Belfort que se deve rastrear, no filme, a faísca de suspeita que se insinua entre o narrador-apresentador-personagem Belfort e a posição pressuposta pelo filme para o espectador. Se há faísca de suspeita, como me parece evidente, não há um único ponto de vista a que se possa reduzir a narrativa.
O Lobo de Wall Street assume importância crítica na medida em que inscreve sua perspectiva na passagem entre o ponto de vista único associado a seu protagonista e a polifonia de pontos de vista que assombra a encenação do plano final do filme (ou do plano do agente do FBI no metrô). Quando os olhares do público da palestra de Belfort espelham o olhar espectatorial, não se oferece a redenção ou a revelação de uma verdade final, de um código definitivo que permita interpretar moralmente a queda de Belfort e dar um desfecho, um fim, à tragédia que o filme encena, mesmo que indiretamente, alegoricamente, por meio da relação contida na frase “Stratton Oakmont is America” e desdobrada na frase “Fuck America”, que sugere menos um limite da alegoria do que sua ambivalente generalização. Ao dizer “Fuck America” quando a empresa começa a ser investigada pelo FBI, Belfort enuncia o excesso alegórico que se sobrepõe à primeira frase (Stratton Oakmont = America) e conduz à interpretação de que a tragédia sem fim não é, de fato, exclusiva da Stratton Oakmont, isto é, da América.
A ambivalência do filme em relação ao universo representado deve ser compreendida como uma decorrência do fato de que, nesse caso, não existe distância possível entre representação e representado. Não há um fora a partir do qual se constitua uma posição transcendente, capaz de formular juízos de valor sobre as personagens sem qualquer sombra de dúvida. Em vez de oferecer a certeza de juízos de valor que se pretendem auto-evidentes, O Lobo de Wall Street confere ao espectador a tarefa ética e política de decidir sobre os sentidos do que tem diante de si.
É por isso que o incêndio que a faísca de suspeita diante de Belfort pode causar permanece destinado a ocorrer, talvez, fora do cinema. Em outras palavras, a potência crítica contida no filme depende do que está fora dele para se realizar. Mas há, de fato, potência crítica na forma como o cinema do excesso de Scorsese transforma a figura de Jordan Belfort em um foco de identificação com o qual, porém, insistentemente, se revela ser impossível estabelecer uma identificação completa, fechada, plena.
Para imaginar outros mundos possíveis, será preciso começar por ser capaz de reconhecer os sentidos da tragédia que define nosso mundo comum (e que afeta os outros mundos já existentes em outras paisagens culturais, como mostra o plano do agente do FBI no metrô ou o plano final). O Lobo de Wall Street é um grande filme porque torna possível esse reconhecimento e porque insinua um fora, uma possibilidade incendiária de outra forma de vida, que resta, contudo, por fazer, por (re)inventar.