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Como (não) fazer crítica de cinema? O problema da crítica fast food

Algumas características da crítica de cinema quando, assim como os filmes, elas tendem cada vez mais a se destinar, apenas, ao consumo.

A crítica de cinema se tornou, hoje, uma das formas do  fast food. A pressa e a pressão decorrentes dos ritmos de publicação – condicionados pela programação das salas de cinema, pelas exigências dos jornais e das revistas e, cada vez mais, pela velocidade de circulação de informações na internet – são o problema mais fundamental que qualquer reflexão sobre crítica e que qualquer tentativa de atividade crítica deve enfrentar, hoje.

Assim como o fast food não é apenas um tipo de comida, mas a designação de uma forma de vida na qual tendemos a ser enquadrados com cada vez mais frequência, a crítica fast food não é apenas um tipo de crítica de cinema, mas a denominação de um modo de experimentar a imagem cinematográfica, de uma forma de viver o cinema. A palavra-chave que define a forma de experiência do cinema pressuposta pela fast criticism é “consumo”. Assim como, cada vez mais, deve-se consumir o cinema, cada vez mais deve-se consumir a crítica de cinema.

“Consumo” é, efetivamente, a senha que explica a crítica fast food e define seu horizonte fundamental, a utopia essencial a que está associada. Se uma utopia é um lugar inexistente em direção ao qual nos dirigimos, como uma meta que se desenha no horizonte de nossas ações e intenções, o consumo como forma de vida é a utopia que se projeta sobre a prática atual da crítica de cinema e sobre a forma de experiência do cinema que ela pressupõe e produz, ao mesmo tempo. É ao pressupor que o cinema é uma mercadoria destinada a consumidores que a crítica fast food contribui para a fabricação dessa forma de viver o cinema.

Há uma série de protocolos que definem a crítica de cinema como mercadoria para consumo, de acordo com os nichos de mercado a que cada tipo de crítica se dirige. Gostaria de distinguir, provisoriamente, dois tipos principais, que podem, sem dúvida, se misturar e que não esgotam todas as possibilidades de manifestação da crítica fast food: a crítica jornalística e a crítica cinéfila.

Alguns dos pressupostos que costumam definir os protocolos da crítica jornalística são:

  • A discussão da imagem de cinema com base numa concepção literalista de realismo, que recai mesmo sobre as paisagens mais alucinatórias dos filmes de ficção científica ou sobre os lances mais inacreditáveis dos filmes de ação. Alienígenas, monstros e criaturas fantásticas convivem com demandas de que os acontecimentos de que participam sejam plausíveis.
    A imagem deve corresponder ao real suposto, assim como os acontecimentos narrados devem corresponder a expectativas sobre os limites da realidade. Não se trata de um desejo documental. Ao contrário: deseja-se o realismo das fantasias, a figura paradoxal de um realismo que sustente nossos sonhos, tal como se projetam na tela.
  • A abordagem da narrativa fílmica com base em critérios não discutidos de verossimilhança, que sustentam a tal concepção literalista de realismo. O mergulho nos universos diegéticos mais delirantes é acompanhado pela demanda de que alguns aspectos dos acontecimentos narrados estejam de acordo com a “verdade”, entendida como mínimo denominador comum.
    Os alienígenas podem ser híbridos formados por partes humanas e partes animais misturadas, como seres com tentáculos no lugar dos braços, mas suas ações precisam ser nitidamente motivadas, seus interesses, bem definidos, e seus desejos, decididos sem qualquer sombra de dúvida. Não há espaço para ambiguidades e para incertezas sobre si, sobre o mundo e sobre a realidade e a verdade, que são pressupostos pela crítica como se fossem dados e óbvios.
  • A desconsideração de estilo e de estética cinematográficos na elaboração de interpretações de tramas, personagens e conteúdos dramáticos dos filmes. A narrativa parece estar dissociada de qualquer figura de estilo e de toda escolha estética.
    Estrutura dramática e estilo/estética são entendidos como variáveis independentes, que podem, assim, ser avaliadas de forma separada e, portanto, divergente, sem qualquer tentativa de correlação: um filme pode ter um bom roteiro (estrutura dramática), mas atuações ruins (estilo e estética); excelentes efeitos especiais (estilo e estética), mas enredo pouco interessante (estrutura dramática); etc.
  • A redução de estilo e estética a efeitos especiais, atuação e roteiro, que aparecem como as únicas formas de trabalho artístico relevantes no cinema. Toda consideração sobre estilo e estética, além de estar separada das interpretações relativas à estrutura dramática, restringe-se a três temas, que são, por sua vez, entendidos de forma igualmente restritiva.
    Os efeitos especiais consignam as características da imagem, que são reduzidas a variáveis do espetáculo visual do cinema, no contexto da demanda de realismo e de verossimilhança. As atuações, de que depende, parcialmente, a plausibilidade da narrativa fílmica, correspondem a todo o trabalho dramático considerado relevante, deixando de lado os problemas do enquadramento, da montagem, da encenação etc. O roteiro, que se abstrai da trama fílmica mas permanece invisível e intangível, é interpretado como o conjunto de escolhas narrativas que se supõe estarem disponíveis para a criação do filme, como se tudo fosse possível no momento da criação, sem qualquer constrangimento de produção, de modo a se impor, aí também, a demanda de realismo e de verossimilhança.

Na crítica cinéfila, os pressupostos da crítica jornalística são, frequentemente, considerados equivocados, ou ao menos têm sua importância e seu alcance diminuídos. São outras as ideias que a orientam, tais como:

  • A classificação do filme considerado com base em versões não discutidas da história do cinema, que conferem à crítica sua suposta fundamentação e legitimam a interpretação proposta, sem colocar em questão a origem das etiquetas que designam os movimentos e os períodos.
    O filme que é objeto da crítica deve ser inserido em um contexto de época, cuja definição é dada como garantida. O tipo de classificação que caracteriza a crítica cinéfila inscreve a história do cinema como uma linhagem genealógica, em que diretores, movimentos e períodos estabelecem relações análogas a relações de parentesco, seja por afinidade ou por filiação.
  • O estabelecimento de relações do filme considerado com o máximo possível de outros filmes e obras artístico-culturais, como forma de assegurar que a legitimação da crítica seja consolidada pelo espetáculo da erudição. A genealogia familiar em que se converte a história do cinema torna-se o palco para uma série de intrigas sobre as relações entre os membros que a compõem.
    O nível básico de proliferação de relações é o da obra do diretor: assume-se a continuidade como elemento característico decorrente da assinatura do diretor, sem interrogar suas condições e sem abrir qualquer possibilidade de reconhecimento de rupturas e de descontinuidades. Além da obra do diretor, é comum buscar relações baseadas em critérios cronológicos não problematizados, assim como em critérios contextuais de produção, frequentemente definidos em termos nacionais.

Não espero ter esgotado (ou mesmo identificado com certeza) as características da crítica fast food, em suas versões jornalística e cinéfila. Como sugeri, cada um desses tipos de crítica fast food destina-se a um nicho de mercado diferente, mas é necessário reconhecer a possibilidade de que suas características apareçam nas mesmas críticas, em momentos diferentes.

Ao tentar identificar as características da crítica fast food, não estou interessado em insinuar, em negativo, os contornos do que se poderia, analogamente, chamar de crítica slow food. Talvez esse seja um programa interessante para a crítica de cinema, sobretudo se o que se busca são reflexões mais consistentes sobre os filmes, baseadas em diálogo com o debate teórico já existente e bastante diversificado no campo dos estudos de cinema e audiovisual.

Entretanto, talvez essa analogia da slow food seja equivocada, pois não é capaz de responder aos problemas da crítica fast food, pois não os ataca, concentrando-se apenas sobre o contexto de velocidade crescente das publicações e erguendo, contra ele, a reivindicação de tempo mais longo para a escrita crítica. Embora isso seja, de fato, muito relevante, o tempo mais longo não garante que a crítica de cinema vá, efetivamente, libertar-se dos problemas da crítica fast food, que estão associados à forma de experiência do cinema pressuposta e produzida por esse regime de pensamento e de imaginação sobre a atividade cinematográfica, baseado no consumo como forma de vida.

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