Curta Mostra Goiás de 2016: problemas cinematográficos, problemas curatoriais

Este texto foi publicado na revista Janela em 28 de dezembro de 2016.

Esforço de amostragem e vontade panorâmica

Qualquer seleção de filmes que decorra de um recorte geográfico, seja ele local, regional, nacional, internacional ou global, incorre no que se pode compreender como uma fatalidade incontornável da representação, que é sempre lacunar e excludente. Em suma, haverá sempre algo que fica de fora. Entretanto, se é impossível contornar essa fatalidade, é imprescindível, ao mesmo tempo, interrogar o modo como ela se realiza. Em outras palavras, o argumento de que é necessário selecionar e excluir em toda curadoria não necessariamente autoriza, legitima ou qualifica qualquer curadoria, seus critérios e suas escolhas, sua orientação artística e as linhas de força que a atravessam.

Esta Curta Mostra Goiás, que ocorreu nos dias 05 e 06 de outubro de 2016, na 16ª Goiânia Mostra Curtas, evidencia um esforço de amostragem da diversidade de formas que têm assumido as produções audiovisuais goianas, ao mesmo tempo em que revela ausências significativas, por exemplo, de filmes exibidos e premiados na última mostra da ABD-GO, dentro do 18º FICA, assim como de obras que foram exibidas na mostra competitiva internacional desse mesmo festival. As ausências poderiam ser justificadas por considerações sobre o suposto papel da Curta Mostra Goiás na apresentação panorâmica do cinema goiano. Seria preciso questionar esse tipo de consideração com base no reconhecimento de que a diversidade desse cinema já torna possível a construção de perspectivas curatoriais mais específicas e mais complexas, que recortem a produção conforme critérios suplementares (sejam temáticos, estéticos ou alguma combinação de ambos) e abandonem, assim, a vontade panorâmica, em favor de outras linhas de abordagem.

O que me interessa ao discutir dessa forma a curadoria que se apresenta pela seleção de filmes exibidos nos dois dias da Curta Mostra Goiás não é desqualificar o esforço de amostragem e a vontade panorâmica que a caracterizam. Em vez disso, trata-se de tentar pensar – a partir do que se apresentou no Teatro Goiânia como um conjunto de produções representativas do que se faz em Goiás em termos de cinema, do que se inscreveu no catálogo da Goiânia Mostra Curtas como uma amostragem supostamente adequada da produção recente – quais são as possibilidades e os limites do cinema que se tornou visível e audível no evento. Dessa forma, é preciso tanto debater a curadoria, como venho fazendo até aqui neste texto e como gostaria que se fizesse nas mostras e festivais de cinema, quanto abordar os filmes, como farei em alguns instantes.

Nesta Curta Mostra Goiás de 2016, por um lado, os limites da representatividade dos curtas selecionados em relação ao panorama goiano se tornam evidentes quando se reconhece, entre outras coisas, que há apenas uma animação e apenas um experimental entre os filmes exibidos. Além da desproporcionalidade, ambos representam de modo bastante restrito as amplas possibilidades exploradas na diversificada produção goiana nessas duas categorias. Por outro lado, os limites das formas de representação articuladas pelos filmes são ainda mais evidentes, considerando a predominância de linguagem e/ou estética caracteristicamente jornalísticas e televisivas, no caso dos documentários, e publicitárias, no caso das ficções, assim como a recorrência de visões estereotipadas sobre identidade, desigualdade, política e memória.

Criticar uma seleção de filmes pelo que deixa de fora, como fiz acima ao mencionar a Mostra da ABD-GO e o FICA, é, no mínimo, inexato; atacar o que se percebe como um sentido curatorial a partir de seu exterior permanece insuficiente, uma vez que, sempre possível, essa crítica decorre meramente de uma necessidade da curadoria. Assim, é preciso articular a crítica da representação e da representatividade de uma seleção de filmes a partir de dentro, em um embate analítico com os filmes escolhidos e com o sentido curatorial que se depreende de sua escolha. É o que pretendo fazer a seguir, falando dos filmes na mesma ordem em que foram exibidos.

Vida de Boneco (animação, 11’, Flávio Gomes, 2016)

A única animação presente na Curta Mostra Goiás de 2016 foi realizada por Flávio Gomes, por meio da técnica do stopmotion, no âmbito de uma pesquisa acadêmica realizada na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. O sentido acadêmico da obra é perceptível no modo como sua narrativa explora, por meio de uma abordagem metalinguística, as diversas formas de criação e de operação de bonecos para uso em animação e/ou em outras formas culturais. É um filme que trata de si mesmo; em todo caso, é uma obra de criação que aborda o próprio processo criativo que está por trás de sua existência, como uma parte de suas condições de possibilidade.

Se essa abordagem metalinguística encontra motivação narrativa no fato de que Vida de Boneco encena o trabalho de seu protagonista, representado por um boneco de massinha, na criação de diversos tipos de bonecos, a apresentação efetiva dos bonecos criados por ele escapa à continuidade narrativa e aparece de modo completamente desmotivado em termos estéticos (sua única motivação é exterior ao filme e reside em seu contexto acadêmico de produção). Vemos, como inserções não narrativas, sequências intercaladas ao desenvolvimento da narrativa, nas quais os bonecos construídos pelo protagonista são exibidos em diversos ângulos, dispostos sobre fundo infinito branco, por meio de planos encadeados com transições em fusão, sob um suave acompanhamento musical.

A exibição dos bonecos compõe uma amostra de técnicas e evidencia o fascínio recorrente, na produção de animações, em relação à própria técnica. Esse fascínio cria, na trama de Vida de Boneco, uma oscilação entre a lógica da narração (que remonta ao paradigma da continuidade, mas está aqui, rarefeita pelas inserções não narrativas e pela própria causalidade insuficiente de seus encadeamentos, cujo efeito pretensamente cômico, sobretudo nas recorrentes quedas do protagonistas, permanece irrisório) e a lógica da mostração (que remonta ao cinema dos primeiros tempos, mas está, aqui, desprovida da inquietação e da estranheza que caracterizavam aquelas primeiras explorações da aventura do olhar que o aparelho cinematográfico propõe). O resultado é um enfraquecimento duplo do filme: sua narrativa é pouco elaborada e apenas vagamente integrada em sua causalidade; sua exibição dos bonecos é apressada e pouco propícia para a efetiva apresentação de suas características. Esse duplo enfraquecimento, que decorre da falta de elaboração da relação entre sequências narrativas e inserções não narrativas, dá a Vida de Boneco uma fragilidade que sua qualidade técnica não é capaz nem de contrariar, dadas suas limitações (que consistem sobretudo nas escolhas estéticas que organizam o uso da técnica, e não na execução da técnica em si), nem de converter em força paradoxal, dada sua adesão a convenções narrativas às quais não consegue corresponder com um roteiro que seja suficiente.

E o galo cantou (ficção, 23’, Daniel Calil, 2016)

O curta de Daniel Calil se destaca pela precisão de sua encenação, pela sobriedade de sua montagem e pela densidade visual de sua narração, que não são, contudo, capazes de dar ao filme a contundência a que ele aspira. É justamente no ponto de fuga onde convergem suas qualidades – a sugestiva fantasmagoria da presença do irmão de seu protagonista, que deixou a fazenda da família e partiu para a cidade – que o filme se contenta em interromper seu movimento exploratório das possibilidades expressivas que articula.

A temática do êxodo rural tem uma densa genealogia no imaginário literário e cinematográfico brasileiro, que sedimenta uma série de convenções e de lugares comuns, como a estrutura dramática do conflito geracional ou a representação do camponês como parte do que está fora da marcha dominante da modernidade ou do desenvolvimento (entre tantos nomes possíveis da colonização e de suas heranças). Em E o galo cantou, encontramos ambos os lugares comuns: a família parcialmente desfeita pela partida do irmão enfrenta também o conflituoso desejo do protagonista de partir e/ou de participar do que parece ser representado pela cidade como signo da modernidade; o pai representa, por sua vez, a figura paradigmática do camponês como sertanejo e estrangeiro à marcha da modernidade e do desenvolvimento, representada sobretudo pela tecnologia e, especificamente, pelo telefone celular.

A densidade dessa genealogia, na qual o filme de Calil se inscreve, em primeiro lugar, como um prolongamento, torna difícil chegar a abordagens que desloquem as coordenadas convencionais e os marcos delimitadores de seus lugares comuns. Esse deslocamento se insinua, embora não chegue a se realizar ou a se desdobrar de modo mais intenso, nas sequências em que a memória do irmão se apresenta sob a forma paradoxal do fantasma, que é uma espécie de presença da ausência. Vemos o protagonista trabalhando na terra, em planos mais abertos que revelam a amplitude do espaço e a dificuldade do trabalho, do esforço físico que exige e da demora que caracteriza sua duração; a montagem encadeia, em seguida, planos mais aproximados em que vemos os golpes de enxada sobre a terra, e os golpes se multiplicam: vemos não apenas a enxada do protagonista, mas também outra, ao seu lado, chocando-se com ruídos secos sobre a superfície mais ou menos dura da terra. A fantasmagoria da memória do irmão que se insinua nessas sequências é visualmente densa e tem como base a precisão da encenação e a sobriedade da montagem que caracterizam o filme, constituindo, de fato, suas mais eminentes qualidades, mas a restrição desse jogo fantasmagórico a uma inserção pontual na trama fílmica e a seu sentido narrativo mais óbvio neutralizam seu potencial criativo, impedindo, dessa forma, que o filme ultrapasse ou transborde o enquadramento definido pela genealogia da temática do êxodo rural no imaginário literário e cinematográfico brasileiro.

Cabocla (ficção, 15’, Pedro Otto, 2015)

O filme dirigido por Pedro Otto aborda o lugar ambivalente da produção de artesanato nas economias locais que o comércio reorganiza a partir de sua inserção em circuitos mais amplos de circulação de bens, de pessoas e de signos. Para fazer isso, o filme recorre a uma abordagem narrativa convencional, caracterizada por problemas graves de planificação, uma vez que não há outra motivação que justifique a quebra de linhas de continuidade entre planos encadeados numa montagem cujo único propósito é a construção de uma narrativa baseada no paradigma da continuidade.

A convencionalidade mal sucedida da montagem corresponde, na trama fílmica, ao modo como a apresentação das personagens as converte em figuras típicas um tanto caricaturais, enquanto a atmosfera em que transcorre a narrativa é a de uma problemática exotização das formas de vida associadas ao artesanato. A trilha sonora constitui um dos elementos que mais favorecem a exotização, que é, assim, tanto um modo de encenação quanto um enquadramento simbólico da narrativa.

Como modo de encenação, a exotização privilegia a beleza das paisagens naturais e a diferença dos tipos sociais, como se faz no turismo e no tipo de olhar que a propaganda turística exige e estimula, convertendo a beleza natural em imagens kitsch e fazendo de toda diferença um desfile de estereótipos pitorescos. Como enquadramento simbólico da narrativa, a exotização esvazia os problemas econômicos e sociais abordados pelo filme, convertendo-os em elementos anedóticos de uma narrativa superficial. Cabocla se torna um exercício do olhar turístico que exotiza  a natureza como mercadoria e a diferença como folclore.

Operação 2,80: e a revolta popular só aumenta (ficção, 24’, Gabriel Vilela e Lucas Xavier, 2016)

O documentário dirigido por Gabriel Vilela e Lucas Xavier tem uma abordagem jornalística mais convencional, embora dilatada em sua duração (o que permite um aprofundamento maior, em relação ao que predomina na televisão), diante de um acontecimento recente que foi objeto, por sua vez, de ampla cobertura midiática televisiva e jornalística. Dessa forma, o filme aparece como uma intervenção num conflito de imagens e de narrativas sobre a repressão policial e jurídica que se impôs, no âmbito da chamada Operação 2,80, sobre alguns dos estudantes envolvidos em recentes manifestações contra o aumento das tarifas do transporte coletivo na cidade de Goiânia, dentro de um contexto nacional (e mesmo internacional) mais amplo de conflitos distributivos, de intensificação da violência policial e de militarização do cotidiano.

A reconstituição dos acontecimentos é construída por meio da articulação entre imagens de arquivo, retiradas de programas de televisão e de vídeos gravados em telefones celulares e divulgados na internet, e depoimentos feitos para o filme, conforme o procedimento consagrado na tradição documentária de enquadramento frontal e de montagem de evidências. A diferenciação dos níveis discursivos (1) da televisão e da grande mídia, (2) dos manifestantes e, destacadamente, daqueles que foram presos, e (3) dos especialistas que, de modo mais ou menos próximo, acompanharam o processo e interviram em seu andamento conduz a uma abordagem multifacetada dos eventos, cuja atualidade é ressaltada por diversos entrevistados e pelos letreiros que informam os espectadores do filme sobre os destinos pessoais dos estudantes presos.

Enquanto o modo convencional de encenação e de montagem do documentário o torna palatável, sem dúvida, para uma parte do público que os realizadores (ligados ao grupo de mídia independente Desneuralizador) pretendem atingir, suas limitações reduzem a força do filme à atualidade e à urgência política de seus temas, relegando sua dimensão estética a um papel secundário. Embora tendam a operar em registros diferentes, as dimensões política e estética de um filme como Operação 2,80: e a revolta popular só aumenta estão articuladas, e as limitações estéticas da abordagem que o filme constrói contribuem, nesse sentido, para uma tendência de enfraquecimento de sua força política no decorrer do tempo. O que o documentário de Vilela e Xavier tem de urgência na atualidade tende a se rarefazer gradualmente, sob os lugares comuns de suas escolhas de linguagem, que não favorecem a persistência da atualidade temática sob a forma de atualidade da experiência estética.

A Militante (ficção, 24’, Pedro Novaes, 2016)

O curta de Pedro Novaes procura construir uma narrativa de suspense, situada numa atmosfera de clausura que o filme se esforça em construir, sobretudo por meio do som, como se fosse preciso suplementar o minimalismo espacial de seu espaço de encenação enclausurado – uma mise en scène cujo comedimento é motivado pela temática da narrativa  com o excesso de sentido de seu trabalho de som – de sua mise en bande redundante. De fato, a redundância do trabalho de som encontra evidente motivação na narrativa: a protagonista a que se refere o título está o tempo todo dentro de um galpão, no qual transita entre uma cozinha improvisada, uma cama mal arranjada e uma porta que se abre sobre um espaço que é tão fundamentalmente invisível quanto enfaticamente audível. Desse espaço, outros três personagens emergem, com notícias sobre o conflito não nomeado que transcorre lá fora e pistas sobre o que está acontecendo.

A clausura da personagem corresponde à desorientação espectatorial em relação ao contexto em que ela se insere: assim como ela, tentamos construir, por meio das pistas oferecidas pela trama fílmica, um quadro mais amplo de inteligibilidade da narrativa e, sobretudo, do papel de cada personagem na mesma. O filme procura perturbar as expectativas que sua trama insinua, e seu desfecho dá à protagonista a força que parecia estar ausente em sua cegueira anterior, isolada dentro do galpão, grávida de uma criança e de planos de fuga, cercada por paredes e por telas nas quais vê tanto uma antiga novela televisiva brasileira e trechos de um noticiário oriental (aqui, as imagens das telas funcionam como reforço da clausura) quanto o bebê que carrega e um mapa que revela o espaço da ação, Goiânia e suas imediações (e, nesse caso, as imagens das telas funcionam como abertura e perturbação da clausura).

Efetivamente, nem o espectador nem a protagonista chegam a construir um quadro geral completo dos acontecimentos e das traições que relacionam os três personagens masculinos. Se o desfecho investe a protagonista com uma força que parecia estar ausente, trata-se de uma força ainda cega, de uma força que deriva da cegueira como condição de sua ação no contexto do conflito. A Militante tem uma nítida abertura alegórica, que não se fecha, contudo, em uma interpretação precisa de suas coordenadas e figuras. A recusa de um desfecho aderente a interpretações simbólicas e alegóricas mais claras confere ao filme parte de sua força – em sua trama dramática, o minimalismo estético quase prevalece sobre o excesso de sentido – e, paradoxalmente, parte de sua fraqueza – a persistente desorientação impede que se experimente a narrativa e seu desfecho como algo mais do que um inseguro prazer diante do descarte do que não compreendemos plenamente.

Enzo (ficção, 17’, Daniel Sena, 2016)

O curta de Daniel Sena se destaca pela variabilidade de seus procedimentos de encenação, articulando enquadramentos diagonais que sustentam a quarta parede da ficção e enquadramentos frontais nos quais a quebra da quarta parede desloca o propósito narrativo das sequências a partir da exploração de sentidos que se poderia denominar atmosféricos. O filme também se destaca pela precisão calculada de sua montagem, que obedece a nítidas motivações narrativas e reforça a orientação fundamental do filme de subordinar a atmosfera de horror na qual transita a um encadeamento narrativo. Seu desfecho oferecerá a ocasião de uma síntese dessa relação entre atmosfera e narrativa.

O plano inicial do filme propõe uma espécie de jogo especular, por meio da quebra da quarta parede: o espectador talvez se veja, por alguns instantes, na imagem de Enzo, que come pipoca até que sua boca começa a sangrar. O desencadeamento da narrativa coincide com uma espécie de reconstrução da quarta parede, que se confirma com o corte para o plano seguinte, no qual o sangue se explica como um dos elementos da situação psicológica de Enzo, e com o consequente desdobramento cinematográfico da mobilidade dos pontos de vista que sustenta a narrativa. No desenrolar da trama, os momentos da interação entre os dois irmãos e dos diálogos envolvendo a figura do médico revelam duas dificuldades que afetam a qualidade da experiência proposta pelo curta: por um lado, o indeciso trabalho dos atores tende, com frequência, a uma teatralidade que a narrativa fílmica recusa e que tende a rarefazer a força do ritmo do filme; por outro lado, o ritmo do filme também se reduz e se deixa contaminar, igualmente, com uma certa indecisão, que é evidente, por exemplo, no enquadramento simultâneo de Enzo e do médico, sem cortes, durante o diálogo que travam.

A dissociação entre imagens visuais e sonoras que se alcança na sequência final conduz ao aprofundamento da atmosfera de horror que o filme procura explorar, subordinando o modo de apresentação da narrativa à condição cognitiva do protagonista, numa síntese que inverte a relação predominante até ali entre narrativa e atmosfera. Há, inicialmente, uma subordinação dos efeitos de atmosfera (ligados à condição cognitiva do protagonista e a sua dissociação em relação ao real) ao sentido narrativo (ligado ao suspense em torno do mistério sobre o que teria acontecido com a mãe de Enzo e de seu irmão). A trama fílmica conduz gradualmente à inversão dessa relação, confirmada pelo seu desfecho, com a subordinação da continuidade narrativa à dissociação em relação ao real: o que vemos e o que ouvimos não coincidem, e a dissociação em relação ao que é ou não a realidade diegética torna indecidível o desfecho dramático do curta, que é, por isso, original em relação às convenções de gênero de filmes de terror e de suspense em que o filme busca parte de suas referências.

Lápis Sem Cor (ficção, 15’, Iuri Moreno, 2016)

A estética publicitária que caracteriza a produção de Lápis Sem Cor é evidente em suas escolhas de figurino, de cenário e de caracterização de personagens – em suma, em todo o seu trabalho de direção de arte, que é tão bem-sucedido em seu apuro plástico quanto baseado em clichês que são repetidos sem qualquer deslocamento de suas coordenadas, a não ser por uma espécie de distensão temporal. A duração do filme dificulta a sustentação eficaz dos efeitos da estética publicitária no contexto da narrativa cinematográfica. De fato, a ambivalência da distensão temporal da estética publicitária confere ao filme de Iuri Moreno seu sentido exemplar no contexto audiovisual contemporâneo, ao mesmo tempo em que evidencia seus limites.

Por um lado, há uma promessa que Lápis Sem Cor compartilha com produções muito maiores e muito menores: a promessa de um deslocamento formal da publicidade a partir da demora cinematográfica, de uma perturbação estética da velocidade pela elaboração narrativa e imagética que um filme pode alcançar.

Por outro lado, enquanto a promessa permanece não realizada – uma vez que não há deslocamento ou perturbação da estética publicitária, mas reprodução -, os temas abordados pela narrativa aparecem como se fossem indiferentes a suas formas cinematográficas, como se não houvesse efeitos da estética publicitária que o filme reproduz sobre os temas que aborda.

Ainda Existe (documentário, 15’, Pedro Diniz, 2015)

O título do documentário de Pedro Diniz sobre o universo dos carros de boi em Goiás define o horizonte fechado que caracteriza seu modo de abordagem. O recurso a entrevistas e depoimentos, conforme a convenção das cabeças falantes (talking heads) convive, em Ainda Existe, com alguns fragmentos de observação direta, nos quais se destaca a tentativa de explorar a sonoridade dos carros de boi, exacerbando na mise en bande do filme a estridência do ruído que emitem.

Dessa forma, o filme parece interessado em oferecer ao espectador não apenas uma visão distanciada, e sim uma experiência sensorial audiovisual do carro de boi, embora a construção estética dessa experiência permaneça aquém de suas pretensões, uma vez que o fenômeno do carro de boi é, ao mesmo tempo, dissociado da história mais ampla a que pertence – a história da modernidade colonial, para resumi-lo do modo mais sintético possível – e mitificado como um signo isolado de um passado em desaparição, de um passado idealizado e perdido, que não pode ser objeto de qualquer tipo de compreensão ou de conhecimento, já que é tão somente objeto de nostalgia.

Além de impedir que se produza, em Ainda Existe, qualquer conhecimento efetivo do carro de boi como fenômeno histórico, a nostalgia que marca a abordagem do filme esvazia o sentido de perturbação insinuado em sua exploração da sonoridade, que se converte apenas em incômodo esvaziado de sentido para o espectador. O filme representa o processo de desaparição do carro de boi como uma alegoria da perda. De fato, o título do filme é justo com suas intenções e com o que o orienta: dizer que algo “ainda existe” é dizer que isso está destinado a deixar de existir, isto é, é assumir que a história tem um sentido final pré-definido e, além disso, que esse sentido suposto tem um valor negativo auto-evidente. A idealização do passado impede seu (re)conhecimento e prejudica a compreensão do que está em jogo no presente.

Tentação (ficção, 10’, Érico José, 2016)

O enredo de Tentação é tão novelesco quanto seu título: depois de ver seu relacionamento chegar ao fim, o protagonista enfrenta o fascínio e o perigo de se entregar a um novo interesse amoroso; quando se vê envolvido na tentação, a que ao mesmo tempo resistira e aspirara, o ex reaparece e tudo termina abruptamente.

Sem mostrar o que acontece em seguida, o filme de Érico José evita aprofundar o sentido melodramático evidenciado pelas motivações de sua narrativa, sobretudo no diálogo telefônico que a desencadeia, atravessado por clichês de conflito que o espectador reconhece com rapidez (embora, talvez, com alguma dificuldade, devido à apresentação de um excesso de informações dramáticas em poucas falas de apenas um dos lados da conversa). O que desloca os clichês do diálogo telefônico inicial, o sentido melodramático das motivações da narrativa e o caráter novelesco do enredo que caracterizam a trama de Tentação é o conteúdo de sua fábula: os principais personagens do conflito dramático são homossexuais.

A representação de um conflito característico da dramaturgia televisiva brasileira por meio de personagens gays confere ao filme sua relativa novidade, mas os recursos estéticos empregados permanecem atrelados à herança daquela dramaturgia de TV, que retira qualquer ambiguidade das ações das personagens e sobrecarrega os elementos diegéticos com sentido dramático, como se evidencia na exploração de bebidas e de jogos para reiterar os significados das personagens e de suas relações entre si: a bebida alcoólica como metáfora do perigo, a posição de “vítima” no jogo de detetive como metáfora da sedução etc. Ao conferir a elementos diegéticos diversos um sentido dramático específico, Tentação impede que o deslocamento dos clichês novelescos que o orientam alcance uma profundidade mais radical.

Tartarus (ficção, 15’, Cássio Domingos, 2016)

Tartarus é um filme pretensioso sobre um problema atual: a escravidão. A necessária postura ético-política de condenação de todas as formas de submissão de pessoas ao trabalho forçado, no que se define, juridicamente, como “condições análogas à escravidão”, confere à abordagem dramática do problema um sentido de obviedade que empobrece a narrativa do filme de Cássio Domingos e restringe suas possibilidades críticas, uma vez que permanecemos cegos, do início ao fim, ao que torna possível a existência da escravidão.

O discurso da voz off que narra o filme procura explicar tudo, preencher toda lacuna e neutralizar toda ambivalência, enquanto suas imagens reproduzem a univocidade da voz off. Se é preciso condenar inequivocamente a existência de trabalhadores e trabalhadoras submetidos a condições análogas à escravidão, a representação cinematográfica desse problema só contribuirá para essa condenação na medida em que sensibilize o espectador para a situação efetivamente existente em toda a sua complexidade – expondo sua realidade, revelando suas intensidades, desdramatizando e desestetizando sua experiência – e também torne possível compreendê-la – investigando suas causas, questionando seus efeitos. Entretanto, Tartarus dramatiza e estetiza a escravidão, convertendo-a em um fenômeno inexplicável, resultado tão somente de uma violência transcendente, de um Mal absoluto e opaco, cuja incompreensível existência podemos apenas lamentar.

A estetização e a dramatização da escravidão correspondem à univocidade do discurso da voz off e manifestam-se na tipificação óbvia das personagens, por meio de figurino, maquiagem e, sobretudo, direção de atores. A conversão das personagens em tipos estereotipados obedece a uma clara oposição maniqueísta entre vítimas e vilões. O maniqueísmo dramático corresponde ao apelo do filme a um elemento tão dramaticamente improvável quanto distante de seu tema: a referência à mitologia grega antiga contida no título, que não é apenas um comentário extra-diegético e metafórico, mas se justifica na própria narrativa. A referência a Tartarus, uma das regiões mais profundas e tenebrosas do mundo inferior de Hades e uma prisão terrível, é devidamente explicada pelo discurso da voz off e reitera tanto o sentido óbvio da tipificação das personagens quanto a mistificação do fenômeno da escravidão como Mal absoluto e, portanto, opaco a qualquer tentativa de compreensão e de confrontação prática e efetiva.

Símile (experimental, 4’, Julio César Mahr, 2016)

O único filme experimental exibido na Curta Mostra Goiás de 2016 é também um dos únicos em que se verifica o recurso a imagens anteriores como uma espécie de arquivo audiovisual de que é preciso ter alguma consciência. Entretanto, assim como ocorre com os demais filmes (que, de modo geral, demonstram pouca consciência das heranças que os marcam em sua relação com as convenções estéticas da ficção e do documentário, associadas aos modos jornalísticos, publicitários e melodramáticos dominantes), Símile demonstra pouca consciência das heranças a que se vincula (e dos riscos que corre) no campo do cinema experimental e da arte contemporânea.

As imagens de arquivo de que o filme de Julio César Mahr se apropria representam momentos simbólicos da história da humanidade e são apresentadas em forma de projeção, enquanto um ator interage com elas, conforme procedimentos característicos da tradição artística da performance. O título do filme enfatiza a dimensão de imitação na interação entre o ator e o conteúdo das imagens projetadas. O simbolismo das imagens, acentuado por sua descontextualização (que retira a importância de sua dimensão informativa), tende a convertê-las em estereótipos, ao mesmo tempo em que desvincula-as da história, a que passam a se referir como um desfile de clichês, como um pastiche pós-moderno de referências do passado transformadas em signos disponíveis para consumo no presente.

Efetivamente, o modo de relação com as imagens que está em jogo em Símile tende a se identificar com a apropriação pelo consumo, que retira delas toda contundência de crítica e toda potência de perturbação, em contraposição a outras possibilidades, nas quais se estabelecem relações de deslocamento do presente e da perspectiva de futuro a partir do arquivo do passado. O momento que condensa de forma mais significativa o sentido consumista da relação de Símile com o arquivo do passado é aquele em que o filme se apropria de imagens filmadas no momento da abertura dos campos nazistas do Terceiro Reich. O horror dos campos se converte em capital simbólico na economia pós-moderna das imagens, de que Símile participa sem que reste tensão alguma. O que resta é apenas a obscenidade repetitiva de uma época que insiste em repetir o passado por desconhecê-lo.

Do Gramofone à Grande Tela (documentário, 24’, Carlos César Santos, 2015)

O documentário de Carlos César Santos obedece aos procedimentos convencionais padronizados de uma grande reportagem, e seu tema é a memória das salas de cinema da cidade de Anápolis, desde o início do século XX. O sentido nostálgico da reconstituição dessa memória limita o aprofundamento da pesquisa apresentada no filme.

A pesquisa também é prejudicada pelo alcance muito abrangente da perspectiva do filme. O resultado é uma obra que orquestra discursos mais ou menos informativos com outros mais ou menos afetados, sem retirar deles questões que ultrapassem o lugar comum da ideia de perda de um passado idealizado.

Idealizar o passado, como sempre, é uma das melhores formas de ignorar sua complexidade e de consolidar uma perspectiva acomodada diante das disputas que o constituem. Dessa forma, em Do Gramofone à Grande Tela, o universo das salas de cinema de Anápolis aparece alheio às políticas de classe social, de gênero e de raça que o atravessam, assim como distante da geopolítica internacional da circulação cinematográfica que vem se instalar nele.

Mademoiselle do Rap (documentário, 20’, Raphael Gustavo da Silva, 2016)

Mademoiselle do Rap é um documentário sobre Lulu Monamour, uma figura importante no cenário artístico goiano, e o diretor Raphael Gustavo da Silva busca articular uma abordagem documental mais diversificada do que os demais filmes que foram exibidos na Curta Mostra Goiás de 2016.

O recurso mais comum dos depoimentos convive com a exploração das possibilidades performáticas da protagonista do documentário, que culmina numa sequência de encenação. Entretanto, a diversificação de suas estratégias não impede Mademoiselle do Rap de construir uma abordagem que parece estar aquém da complexidade de sua protagonista e, sobretudo, de sua participação em um contexto mais amplo que a ultrapassa e a constitui.

Em documentários focados em uma só personagem, é comum que a figura do diretor (ou uma parte da equipe) também acabe se destacando como uma espécie de interlocutor privilegiado da protagonista. Duas das consequências da emergência dessa situação de interlocução como fundamento da realização do próprio filme, nesses casos, são a ênfase na dimensão ética da relação entre diretor/equipe e sujeito filmado, por um lado, e o aumento da importância das decisões de diretor/equipe na construção de uma representação que possa fazer jus à complexidade da protagonista e do contexto em que se insere. No caso de Mademoiselle do Rap, nenhuma dessas consequências é explorada de modo mais direto ou aprofundado.

Três propostas sobre curadoria

Parece evidente que o esforço de amostragem e a vontade panorâmica que caracterizaram a curadoria da Curta Mostra Goiás de 2016 resultaram numa seleção pobremente integrada, sem contundência temática, formal ou crítica. Além disso, o sentido específico a que apontam os filmes selecionados corresponde a uma noção de cinema convencionalmente consagrada pelos protocolos da publicidade mais estereotipada, do jornalismo mais superficial e do melodrama mais pesado e moralista.

Embora provavelmente majoritária e influente, a noção de cinema favorecida pela curadoria da Curta Mostra Goiás de 2016 deve ser interrogada, para não dizer abandonada, por meio de um esforço crítico ativo, que deve incidir tanto na esfera da atividade crítica propriamente dita (como procurei fazer aqui) quanto na esfera da curadoria como exercício crítico. Nesse sentido, gostaria de terminar este texto com três propostas pontuais sobre curadoria que, embora tenham sido pensadas com base no contexto específico aqui discutido, talvez façam sentido também em outros contextos:

1. A curadoria é uma atividade crítica que, como tal, deve assumir seu sentido normativo. Nenhuma curadoria é descritivamente completa, uma vez que toda curadoria terá lacunas inevitáveis em sua composição, mas toda curadoria é normativamente orientada, isto é, favorece necessariamente (mesmo que talvez inconscientemente) um determinado tipo de tema, forma ou processo criativo. De fato, ao não considerar sua própria normatividade, a curadoria estará apenas evitando reconhecer uma de suas características constitutivas.

2. É preciso debater curadoria. É preciso explicitar os critérios de curadoria que orientam as seleções de filmes em diferentes festivais, mostras etc. É preciso abrir espaços para debater critérios de curadoria, seleções de filmes e até mesmo decisões de programação. Proponho que os festivais e as mostras passem a reservar espaços para esse tipo de debate, nos quais as pessoas responsáveis pelas curadorias apresentassem seus critérios e suas motivações, pudessem ser questionadas por realizadores e realizadoras, a partir de perspectivas diferentes. Proponho também que os textos de curadoria sejam ampliados nos catálogos para incluir a apresentação de informações mais completas sobre o processo de seleção dos filmes.

3. Deve-se evitar ao máximo o que denominei aqui esforço de amostragem e vontade panorâmica na realização de curadorias. Devem ser privilegiados critérios curatoriais baseados em recortes temáticos, em escolhas formais, em formatos e/ou em características de estrutura produtiva, por exemplo, e não em qualquer tipo de pretensão generalizante baseada em contextos geográficos e/ou históricos. Mesmo quando há um sentido mais abrangente na proposta curatorial, é preciso pensar em que tipo de cinema ela favorece, uma vez que toda curadoria é também um gesto de intervenção num espaço mais amplo de disputa por visibilidade.