“Eu falarei de mim a vocês”
Um plano-sequência de um microcosmo: uma lesma atravessa o seu cenário natural, e somos colocados a acompanhá-la bem perto, em close. A cena é longa, dura um minuto e meio. O tempo é uma prioridade em evidência. À medida que o pequeno molusco sai de cena, ouvimos uma voz, que se declara confessional ao nos dizer: “Meu nome é Joaquim. A minha vida não tem nada de particular. Vivo com o Nuno, somos casados. Juntos, demos a volta ao mundo. Ou o mundo passou por nós.” A voz determina uma perspectiva autobiográfica e oferece uma tonalidade afetiva ao ensejo da introdução: “Há dois anos, comecei a anotar num mapa os dias bons e os dias maus. Desisti ao fim de um mês, eram quase todos maus.” De maneira singela e intensa, já estamos envolvidos nas condições de experiências personificadas em Joaquim Pinto.
Soropositivo e portador de Hepatite C há vinte anos, Joaquim realiza E agora? Lembra-me tendo como leitmotiv a sua disposição em participar de tratamentos e ensaios clínicos ainda não aprovados. Dentre as múltiplas dimensões desdobradas pelo filme, escolhemos três para o nosso artigo: a sua forma de diário, a natureza da montagem de evidências e o campo de sua comunidade afetiva.
“Eu falo”: a voz do diário
O filme nos apresenta Joaquim através de sua voz: é ela quem nos expõe seu estado de ânimo e mapeia as suas condições narrativas. A voz de Joaquim exerce um papel fundamental: ela determina as condições para ele renascer no filme. Então, ela assume uma perspectiva realista e dramática para nos orientar sobre como os efeitos dos tratamentos evocam memórias e afetividades significativas. Em outras palavras, é através da oralidade que Joaquim nos encanta e provoca um sentimento de epistefilia, um desejo de conhecimento, de querer saber mais sobre sua biografia e seu mundo histórico.
Em muitos momentos, a câmera é posta como um confessionário, ou seja, Joaquim se dispõe a testemunhar a sua intimidade e dizer a respeito dos efeitos colaterais do tratamento, das correspondências trocadas com a amiga Jó (que também participa de experiências com drogas ainda não aprovadas) e sobre seu relacionamento com Nuno. Aqui, a ideia da câmera como um confessionário ganha mais relevância, pois a espiritualidade de Nuno se torna cada vez mais presente em Joaquim ao longo do filme. A ironia e o pessimismo presentes no começo do filme dão oportunidades para que citações bíblicas ganhem posição e clareza à medida que o relacionamento deles aflora em cena.
Ao mesmo tempo, Nuno emerge nas nuances da dramaturgia: se no começo do filme Joaquim diz que Nuno é tímido e abre mão de ‘estar no filme’ para ‘estar com ele’, aos poucos ele se revela um importante ator social porque o cuidado com o filme também torna-se um cuidado com o Joaquim. O relacionamento do casal é resultado da produção das próprias condições fílmicas. Não seria exagero dizer que a comunhão do casal em um só corpo se confunde com o clímax do filme: lê-se naquele momento a sensualidade de algo como “a vida basta em nós mesmos”. Ou, como foi bem colocado por Nuno Carvalho, a relação entre Joaquim e Nuno seria traduzível pela expressão “we stay alive for each other”.
Em torno de sua forma de diário, o filme encontra meios de explorar registros de alto teor emocional: a oralidade às vezes confusa, devido aos coquetéis clínicos, os depoimentos desiludidos dele e de Jó com os resultados dos tratamentos e a constante reverência aos cuidados de Nuno delineiam a narrativa através de forças afetivas muito comoventes.
“De mim”: o limite da montagem de evidências
As quase três horas de filme suscitam um tempo bergsoniano: uno e indivisível, o tempo não se manifesta de maneira linear e cumulativa, a sua natureza é perene e psicológica. Passado e presente estão imbricados e assim se redefinem. A narrativa aristotélica sequer é aventada: como ela seria possível na iminência da morte? Transitamos constantemente entre passado e presente, entre lembranças profissionais e memórias afetivas pessoais, como se nos fosse permitido assistir às gestalts de Joaquim.
Nichols afirma que os documentários baseiam seus pontos de vista na montagem de evidências. Em vez de organizar os cortes para dar a sensação de uma relação de causalidade e de tempo e espaço únicos, a montagem de evidências “organiza-os dentro da cena de modo que se dê a impressão de um argumento único, convincente, sustentado por uma lógica” (p. 58). Nichols quer dizer que esse tipo de montagem tem uma função comprobatória, pois o documentário demanda o nosso aprofundamento na história que se desenrola e nas afirmações que faz sobre uma determinada realidade histórica. Ou seja, a fim de persuadir, os documentários apelam para argumentos verossímeis e convincentes através da montagem de evidências.
Entretanto, é como se o registro das justaposições de E agora? Lembra-me demonstrasse os limites da montagem de evidências, pois que alegações verossímeis seriam possíveis diante de um corte que associa um plano médio da conversa entre Joaquim e Nuno e um close de uma abelha comendo um hambúrguer? Quantas afirmações seriam possíveis diante de um corte que opera a associação de uma tomada da paisagem do sítio de Joaquim com a cena de um avião supersônico subindo às alturas? Enfim, que “evidências” estão em jogo quando saltamos da cena de Joaquim sonolento, num banco de uma praça florida, diante do hospital, direto para a sequência de quase dois minutos do close de uma libélula que tenta se equilibrar em um galho? Vê-se que, às vezes, o documentário se propõe como estilhaços do espelho do real…
Apesar do aparente pessimismo, o filme de Joaquim ressoa com poética e lirismo. Através do que poderíamos chamar de uma edição libertária, desapegada de códigos e convenções tradicionais, ele entrecorta o realismo de seus testemunhos com belas cenas de seu sítio ou planos do cotidiano de seu tranquilo vilarejo, com as brincadeiras de seus quatro cães e, muitas vezes, com primeiros planos de insetos. Dessa forma, em E agora? Lembra-me, texto, dispositivo, discurso e história estão todos em movimento, isto é, o documentário autobiográfico de Joaquim Pinto promove uma intensa interpelação dos desejos – anseios e ensaios – de seus espectadores. O filme é endereçado a nós de modo que nossos conhecimentos e experiências possam reconfigurar a exposição das intimidades de seu narrador, assim como as suas performances sociais. Nesse sentido, um dos trunfos do filme é potencializar a intersecção entre as três dimensões subjetivas em jogo: a do cineasta, a do filme e a de seu espectador. Como sugere o título, a história de E agora? Lembra-me também é (e será) a história dos sucessivos sentidos que os espectadores têm atribuído (e atribuirão) a ele.
“Para vocês”: uma comunidade afetiva
O filme ainda nos ofereceria muitas chaves de interpretação, como as críticas de Joaquim à instrumentalização das práticas médicas, aos efeitos da crise econômica de 2008 e à indiferença ambiental por parte de seus vizinhos no campo. Por outro lado, também seria possível abordá-lo pela corajosa exploração de si, pela delicada relação que o casal mantém com seus cães e, last but not least, pelo fato de o filme evidenciar uma bela e harmoniosa relação homoafetiva.
Entretanto, temos a pretensão de fechar esse artigo rendendo uma homenagem ao realizador e a seu filme. Da mesma forma que Joaquim celebra as suas amizades e, permeando-as, nos oferece frames de sua identidade pessoal, seria interessante promover laços de pertença de seu filme com uma comunidade afetiva imaginada. Em outras palavras, além de seus espectadores, talvez também existam filmes que possam atender ao “Lembra-me”, nesse momento frágil e delicado de sua vida. Por exemplo, porque não pensar a voz de Joaquim no rastro da polifonia de Marlon Riggs e posicioná-las em perspectiva de modo a constituir uma referência na defesa dos amores proibidos?
Não seria interessante pensar a autobiografia de Joaquim sendo premiada em festivais internacionais como um reconhecimento das conquistas políticas de Harvey Milk? Enfim, quem sabe ainda a obra de Joaquim Pinto faça reverberar a magnitude de Um filme para Nick (1980), de Wim Wenders e Nicholas Ray. Em ambos os filmes encontramos a tensão entre viver e filmar o viver, entre apresentar e representar a vida. A grandeza dessas obras reside justamente em seus fracassos: elas demonstram que a magnitude da vida é superior à de qualquer representação.
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Fábio é Professor de Humanas em Pré-Vestibulares e Mestrando em História Social pela PUC-SP. Durante as férias letivas, ele é documentarista independente formado pela EICTV.
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