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The Babadook: terror, fantasmagoria, luto

Um filme de fantasmas, uma narrativa de luto, um excelente terror. (Crítica de The Babadook (2014), de Jennifer Kent, publicada originalmente na Revista Janela.)

Este texto foi publicado na revista Janela em 18 de dezembro de 2014.

Trailer de The Babadook (2014), de Jennifer Kent

Preâmbulo metacrítico

O sucesso da estreia da australiana Jennifer Kent como roteirista e diretora de longa-metragem, com o terror The Babadook (2014), pode ser reconhecido pela boa recepção crítica, que se evidencia, por exemplo, pela pontuação de 98% no Rotten Tomatoes. Talvez ainda mais significativas sejam as recomendações ao filme, feitas por figuras importantes da história do terror como gênero narrativo.

O escritor Stephen King, autor de O iluminado (1977) – a cuja adaptação cinematográfica de 1980, dirigida por Stanley Kubrick, o filme de Kent foi comparado mais de uma vez -, afirmou que você não simplesmente assiste o filme, mas o experimenta: “You don’t watch it so much as experience it.”

Já o diretor William Friedkin, de O Exorcista (1973), inseriu o filme de Kent numa lista um tanto inusitada, dada sua diversidade, ao lado de Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, Alien (1979), de Ridley Scott, e Diabolique (Jeremiah S. Chechik, 1996).

Entre os críticos brasileiros, Pablo Vilaça mencionou o clássico do terror de Friedkin ao lado do filme de Kubrick já mencionado e de A hora do pesadelo (1984), de Wes Craven, assim como, a meu ver equivocadamente, a comédia Esqueceram de mim (1990), de Chris Columbus. Outros críticos mencionaram ainda as semelhanças com o Roman Polanski de O bebê de Rosemary (1968), por exemplo.

Sejam quais forem as referências que permitem situar The Babadook, por meio da comparação, no contexto do gênero terror, uma outra referência, talvez menos evidente nas imagens, me parece crucial para a compreensão do aspecto psicológico pronunciado do filme: Lars von Trier. Com formação como atriz no National Institute of Dramatic Art, da Austrália, e com experiência de trabalho em teatro, cinema e televisão, a roteirista e diretora Jennifer Kent acompanhou as filmagens de Dogville (2003), numa experiência que foi, sem dúvida, importante para sua formação como cineasta.

A própria diretora cita outras preferências e influências que podemos reconhecer em seu filme: David Lynch, John Carpenter, Carl T. Dreyer. No mapa composto pelos nomes de diretores e de filmes tão diversos, The Babadook aparece como um itinerário parcialmente original em um território conhecido.

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Fantasmas, reflexos, duplos

No roteiro e na direção, Kent demonstra conhecimento das principais convenções características dos filmes de terror, assim como desprendimento para introduzi-las numa trama que confere a seus personagens complexidade psicológica.

Os principais temas da trama do longa parecem ter sido retirados do curta-metragem que Kent escreveu e dirigiu em 2005, intitulado Monster (que você pode assistir abaixo), no qual vemos uma mãe e seu filho lidando com a presença de um monstro. Alguns recursos estéticos importantes também estão presentes nos dois filmes, como a caracterização do monstro (suas mãos, sobretudo), o posicionamento da câmera embaixo da cama e a representação acelerada do tempo, quando as personagens dormem, com a luz indicando a passagem do dia para a noite. De certa forma, o longa é uma exploração mais demorada e mais elaborada do que se propõe no curta, e em ambos podemos verificar o recurso a convenções importantes do terror.

Assista Monster (2005), curta-metragem de Jennifer Kent em que já aparecem alguns elementos do longa The Babadook (2014)

A bela fotografia de alto contraste assinada por Radek Ladczuk, a direção de arte detalhista de Karen Hannaford e Alex Holmes, o eficaz desenho de som de Frank Lipson, a música alternadamente sutil e forte de Jed Kurzel, a montagem ágil de Simon Njoo e a cuidadosa composição do livro Mister Babadook, projetado e ilustrado por Alex Juhasz, e reproduzido em sua tonalidade pela fotografia, estão entre os elementos que conferem ao filme sua riqueza estética e sua força fantasmagórica.

Se todo filme é um filme de fantasmasThe Babadook é uma experiência dupla, em que a fantasmagoria da narrativa (o fantasma como tema) é indissociável da fantasmagoria da técnica (o fantasma como forma de aparição da imagem cinematográfica). Amelia (interpretada por Essie Davis) é a mãe de Samuel (Noah Wiseman) e a viúva de Oskar (Ben Winspear), que morreu em um acidente no dia em que levava a esposa grávida para dar à luz. Pouco antes do aniversário de sete anos de seu filho e da morte do marido, Amelia procura lidar com os problemas de Samuel, atormentado por um suposto monstro.

A leitura do livro Mister Babadook desencadeia uma trama clássica de assombração, em que nada do que se vê ou se ouve está isento de suspeita, e toda imagem guarda alguma forma de suspense, de suspensão da certeza sobre os sentidos do real e do falso (dentro do universo ficcional da narrativa). Babadook é o protagonista de um estranho livro que Amelia encontra na estante do quarto do filho. Samuel escolhe o livro de capa vermelha para que sua mãe leia para ele antes de dormir, como faz todas as noites, numa cena familiar. Na leitura do livro, é o medo infantil de Samuel que se evidencia, com o reconhecimento do monstro Babadook, de quem ninguém pode se livrar, como diz o livro. Parte da narrativa do filme consistirá em dar a Amelia a medida do medo que seu filho sente.

Entre as convenções de filmes de terror de que Kent se apropria, encontra-se o uso de superfícies espelhadas que duplicam os corpos e o mundo. Lembro-me mais ou menos vagamente de vários filmes que utilizam espelhos para assustar o espectador. No plano típico que tenho em mente, alguma personagem está diante do armário aberto do banheiro, por exemplo, ignorando completamente alguma ameaçadora presença atrás de si, para descobri-la ao fechar o armário e revelar o reflexo de um monstro ou de uma presença familiar na superfície do espelho que assim se torna visível, com algum tipo de redundância sonora.

Em The Babadook, de modo diferente, os jogos de espelhos operam dentro de um processo gradual de construção da ambiência sensível e da experiência sensorial que as imagens oferecem ao espectador. São dois sentidos diferentes dos jogos de espelhos na mise en scène cinematográfica. No uso convencional, desenrola-se um enfático (e, por vezes, óbvio e previsível) jogo de revelação do desconhecido, de inscrição do fora-de-campo no campo da imagem, por meio do espelho. O desconhecido pode ser um monstro, conforme a expectativa mais comum, ou apenas um amigo ou familiar da personagem, numa quebra de expectativa que adia o conflito. No uso mais sutil de The Babadook, por outro lado, desenrola-se um jogo menos evidente e mais original, em que, em vez de revelar o desconhecido, o monstro ou o outro, em vez de estabelecer uma relação de suspense entre o campo e o fora-de-campo e de resolvê-la com a inscrição do que está fora no interior da imagem, os espelhos insinuam uma duplicação fantasmagórica da personagem de Amelia e insinuam um sentido simbólico da narrativa.

O arco dramático se desdobra em dois momentos. No primeiro, que gira em torno do livro Mister Babadook, estamos diante de uma trama de assombração e de uma experiência de terror diante de algo que não se sabe bem o que é, mas que se constrói, no filme, por meio de sons estranhos – como o sinistro “Baba-baba! Dook! Dook! Dook!” e o ruído que o acompanha – e de vestígios visuais, que têm frequentemente a consistência indecidível das alucinações: vultos e sombras, insetos, sonhos, desenhos nas páginas do livro e, de forma muito interessante, reflexos em superfícies espelhadas. No segundo momento, o monstro se revelará na figura da mãe, a ponto de vir habitá-la, literalmente, ao mesmo tempo em que se revela, finalmente, como sua memória do pai de Samuel e como sua própria tormenta interior. O que se apresentava como som e vestígio ganha corpo, a assombração ganha forma, o fantasma reivindica seu ilegítimo e perturbador direito de presença, o monstro Babadook não apenas se faz visível, como se apropria de Amelia, assume a sua forma visível, e não qualquer forma.

A memória de Oskar e a tormenta interior que Amelia não parece saber como enfrentar, mesmo quase sete anos depois da morte do marido, são uma parte dela mesma que ela reluta em reconhecer e em enfrentar, esquivando-se e fugindo como pode. Mas, mesmo na fuga, Amelia vai ao encontro de si mesma. Assim, os reflexos nas vitrines, que duplicam fantasmagoricamente a figura de Amelia e os espaços pelos quais ela circula em seu passeio, depois de sair mais cedo do trabalho por sugestão de seu colega Robbie (Daniel Henshall), e seu reflexo no espelho em sua casa, depois de receber as flores com que Robbie a presenteia mais tarde, no mesmo dia, definem uma modalidade específica dos jogos de espelhos que o filme explora: nessa modalidade, a reflexão especular é uma forma de revelação do sujeito, como se, em vez de trazer do fora-de-campo um novo elemento para vir habitar o campo da imagem, The Babadook fosse buscar no fora-de-si do sujeito, de Amelia (que fica cada vez mais fora de si), algo que venha transformar sua paisagem mental. Por meio dos reflexos, a sequência do passeio sugere que, mesmo tentando fugir de sua vida, de sua relação complicada com o filho, de seus sentimentos em relação à perda do marido anos atrás, Amelia pode apenas encontrar-se consigo mesma: o fora de si reconduz, finalmente, a um território desconhecido que não está fora, mas dentro.

O movimento da fuga termina por conduzir Amelia para dentro de si mesma, assim como a experiência do cinema como fuga não passa de uma fuga para casa: a personagem é, em parte, uma metáfora do espectador, na medida em que sua fuga contemplativa, no passeio ou, de forma mais significativa, diante da televisão, se converte na ocasião de uma confrontação com seus próprios fantasmas. Com efeito, assim como o espaço delimitado pelos reflexos nas vitrines implica seu encontro consigo mesma, o espaço da casa para a qual Amelia se vê forçada a voltar, e na qual se vê forçada a permanecer com o filho (que deixa de ir à escola), parece representar a arquitetura psíquica da fantasia que a sustenta (e que se projeta sobre o filho), precariamente, sobretudo no que concerne sua relação com a memória, com o fantasma do marido Oskar, que habita o porão, onde estão suas coisas.

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Os espelhos metafóricos e a memória do cinema

Os jogos de espelhos que compõem The Babadook assumem, então, uma modalidade suplementar. Enquanto, na primeira modalidade, num uso já bastante original, os reflexos especulares simbolizam a relação do sujeito consigo, a segunda modalidade aparece sob a forma dos espelhos metafóricos das páginas do livro Mister Babadook e, principalmente, das imagens da televisão que Amelia e Samuel assistem em diversos momentos. Quando descobrimos, na festa de aniversário de Ruby (Chloe Hurn), a prima de Samuel, filha de Claire (Hayley McElhinney), que Amelia já trabalhou, em algum momento, como escritora de “artigos para revistas, coisas de criança”, as páginas do livro podem aparecer como outro espaço de reflexão em que Amelia se encontra consigo mesma (e talvez se possa fazer, como muitos já fizeram, uma inferência excessiva, uma sobreinterpretação, não necessariamente equivocada por completo, de que o livro Mister Babadook é uma obra de Amelia – uma sobreinterpretação que pode encontrar alguma sustentação na sequência em que ela vai até a polícia, depois de queimar o livro: suas mãos estão sujas porque queimou o livro ou porque, antes disso, ela havia feito as novas ilustrações que cobriam as páginas antes em branco?).

Na tela da televisão, Amelia e Samuel encontram diferentes formas de fuga e de encontro consigo mesmos. De certa forma, The Babadook é um filme sobre o luto, e sobre as relações diferentes que Amelia e Samuel estabelecem com o fantasma do marido/pai morto. No filme, o que representa suas relações com o fantasma é, principalmente, a forma como se dispõem a frequentar o porão da casa. Nesse sentido, a interpretação da narrativa como uma alegoria da depressão, que foi sugerida pela própria diretora e proposta explicitamente por alguns críticos, acaba se mostrando parcial, incompleta, uma vez que ignora a dualidade do luto encenado no filme, que é ao mesmo tempo de Amelia e de Samuel, e não apenas da primeira.

Na relação de Amelia e de Samuel com o luto e com o fantasma que, nesse momento, permanece monstruoso, a tela da televisão desempenha um papel importante nos jogos de espelhos. Como um espelho metafórico, a tela da televisão duplica menos as figuras das personagens do que seus estados psicológicos, suas paisagens mentais. Nesse sentido, o efeito da mudança constante de canal, por meio do controle remoto, aprofunda a desorientação subjetiva de Amelia, enquanto o refúgio imaginário de Samuel junto a um mágico (cuja fala de apresentação, sobre como a vida pode ser maravilhosa, mas também traiçoeira, o garoto reproduz ao brincar) reitera a postura combativa que ele expressa diante do monstro, em mais de um momento, e ao usar as engenhocas que inventa como armas.

A tela da televisão abriga várias imagens, entre as quais destacam-se trechos do noticiário jornalístico e planos de filmes. De fato, ao enxertar a memória do cinema na tela da televisão, por meio de imagens de melodramas, de filmes de Georges Méliès e de desenhos animados, Kent cria uma constelação de espelhos das situações dramáticas encenadas na trama de The Babadook, enquanto a âncora do noticiário permite conferir à narrativa um efeito mais intenso de realidade. No noticiário, quando ela assiste uma notícia sobre uma mulher que esfaqueou o filho, alucina a visão de si mesma numa das janelas da casa. De certa forma, é a uma indeterminação da fronteira entre a suposta realidade das imagens do noticiário e a suposta ficção das imagens de cinema que o olhar de Amelia conduz as imagens.

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Com a citação do maravilhoso Le livre magique (1900), de Georges Méliès (cujo Un homme de tête, de 1898, também pude reconhecer), The Babadook vincula, de forma bastante complexa, o tema da passagem da fronteira entre livro e realidade, com o qual Méliès brinca generosamente, ao problema da indeterminação da fronteira que separa a realidade de Amelia das imagens fantasmagóricas que a perturbam. Vemos a figura do monstro Babadook dentro das páginas do livro mágico que, na vista cinematográfica original de Méliès, abriga incontáveis figuras. É como se o monstro Babadook, que é o fantasma do pai, que é o luto pela morte do pai, invadisse não apenas a casa de Amelia e Samuel, mas seu olhar, as imagens que ela vê na tela da televisão, até se instalar, finalmente, em seu corpo.

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Amelia vê o monstro Babadook numa das páginas do livro mágico de Méliès

O desfecho da trama não ocorre com o fim da assombração, com o desaparecimento do fantasma ou com a morte do monstro. Em vez disso, no lugar onde existiam duas relações diferentes e conflituosas com o fantasma, duas formas de luto que não coincidiam em sua economia psíquica, passa a existir uma relação comum com o fantasma, uma relação compartilhada, inscrita numa única economia psíquica, cujo fundamento simbólico é a contenção do monstro no porão da casa. Domesticar o monstro, conter o fantasma, assimilar a assombração: eis o que permite a Amelia e a Samuel retomarem suas vidas. O garoto voltará a frequentar uma boa escola, suas rotinas podem recuperar o ritmo da vida familiar a que aspiram, enquanto ambos participam da domesticação do monstro: Samuel coleta minhocas no gramado, Amelia as reúne numa tigela e as leva para o porão, onde são devoradas por uma indócil entidade que, agora, contida, aprisionada, restrita ao porão, como um monstro que se é capaz de controlar, como um fantasma que se consegue manter isolado, como uma memória que se consegue nutrir sem que tome conta do presente, parece ter adquirido, finalmente, algum direito de presença.