Categorias
Entre-imagens

Jacques Derrida e os fantasmas do cinema

Uma tradução comentada da entrevista que Jacques Derrida concedeu à conhecida revista Cahiers du Cinéma, publicada em 2001.

Derrida na Cahiers du Cinéma: “O cinema e seus fantasmas”

Em abril de 2001, a conhecida revista Cahiers du Cinéma publicou uma entrevista com o filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004), assinada por Antoine de Baecque e Thierry Jousse. A seguir, apresento uma tradução comentada do texto em francês, no qual os interlocutores tentam compreender as relações entre o pensamento de Derrida e a experiência do cinema. O texto da entrevista aparece como citação, com as perguntas em negrito. Todo o resto são meus comentários, que são uma espécie de acompanhamento, ora harmônico, ora em contraponto, numa deriva suplementar e, portanto, acessória.

Conhecido (ou mal conhecido) pela suposta dificuldade de suas obras, Derrida costuma se fazer entender de outros modos nas entrevistas que concede, embora a complexidade de seu pensamento permaneça evidente. Três exemplos disso me parecem interessantes, porque foram textos que acompanharam minha leitura de alguns de seus livros mais densos, como Gramatologia, Margens da filosofia e A escritura e a diferença. Os três exemplos são conversas registradas em momentos e em contextos bastante distintos, embora todos estejam atravessados por inquietações comuns: Posições, Da hospitalidade e De que amanhã…

Entre as inquietações que atravessam a obra de Derrida, encontra-se o tema dos fantasmas, dos espectros, da espectralidade. Em seu projeto de desconstrução da metafísica da presença, está em jogo, entre outras questões, o reconhecimento de que mesmo a suposta presença a si do sujeito é assombrada por ausências, por lacunas, pelo que se poderia denominar espectros de alteridade (nos mais diversos sentidos da palavra, muito além das políticas de identidade), que são como um exterior constitutivo, um acidente essencial (e nesses paradoxos reside parte do desafio do pensamento de Derrida, que os leva a sério e aprofunda seu jogo).

É significativo, por exemplo, que, ao abordar o pensamento de Karl Marx, associado ao materialismo, Derrida escolha falar dos “espectros de Marx”, disso que permanece, portanto, entre o material e o imaterial, disso que é forma sem corpo, ou corpo sem forma, disso que é fantasma, em suma, e assombra o presente, o contemporâneo (impedindo sua contemporaneidade a si, isto é, seu fechamento e sua plenitude sem faltas), a partir de um outro tempo, um tempo disjunto e desconjuntado (out of joint) cujo modelo Derrida encontra em Hamlet, de Shakespeare, na figura do fantasma do pai.

A entrevista publicada na Cahiers du Cinéma se intitula “O cinema e seus fantasmas”, e é possível entrever, desde o título, as relações possíveis entre o que se lê nas páginas da revista e o conceito de espectralidade, tal como elaborado em Espectros de Marx, por exemplo. A chamada para o texto antecipa uma informação que Derrida oferece na conversa:

Quando um filósofo confessa uma “fascinação hipnótica” pelo cinema, é por acaso que seu pensamento o leva ao encontro dos fantasmas das salas escuras?

O texto de introdução cita algumas das obras em que Derrida aborda a imagem, em geral, inclusive a imagem cinematográfica. Também é mencionado um dos filmes mais conhecidos sobre Derrida, assim como o livro a ele relacionado:

Encontrar Jacques Derrida para uma revista como os Cahiers não é algo que ocorra naturalmente. Antes de tudo, porque, durante bastante tempo, Jacques Derrida parecia se interessar apenas no fenômeno da escrita, em seu traço, na fala, na voz. Mas afinal houve alguns livros, Mémoires d’aveugle, em torno de uma exposição no Louvre, Echographies de le télévision, conversa em torno desse meio de massa com Bernard Stiegler, que atestava um interesse novo pela imagem… E afinal, ainda, um filme, D’ailleurs Derrida, realizado por Safaa Fathy, e um livro, Tourner les mots, co-escrito com a autora do filme, tomando enfim, num embate resoluto, a experiência do cinema. Não era preciso mais nada para que nós fôssemos apresentar algumas questões a um filósofo que, se confessa não ser cinéfilo, tem contudo um verdadeiro pensamento do dispositivo cinematográfico, da projeção e dos fantasmas ao encontro dos quais todo espectador normalmente constituído experimenta uma irresistível vontade de ir. A fala de Derrida, que ressoa na entrevista que segue, não é, então, nem aquela de um especialista, nem aquela de um professor que fala do alto de um saber imponente, mas muito simplesmente aquela de um homem que pensa e que retorna à ontologia do cinema, iluminando-a com uma nova luz…

Um breve mapa das aproximações possíveis do pensamento derridiano em relação à imagem e ao cinema começa a se formar. Mas há mais. Outra referência importante é o filme Ghost Dance (1983), de Ken McMullen, que Derrida citará em uma de suas respostas (e que você pode assistir abaixo). Depois da entrevista, foi lançado ainda o filme Derrida (2002), de Kirby Dick e Amy Ziering Kofman. Se ambos abordam aspectos do que aparecerá na entrevista na Cahiers, parece ser de Ghost Dance o privilégio de antecipar, explicitamente e de maneira central, a questão incontornável dos fantasmas, definida desde o título. Seja como for, os caminhos para chegar aos fantasmas, assim como o emaranhado de sentidos que os circunscreve, permanecem múltiplos, e qualquer escolha de itinerário terá um fundamento tão contingente quanto qualquer outra.

Biografemas: o cinema como fuga, o direito à selvageria, os fantasmas

A escolha dos entrevistadores, expressa na primeira pergunta, define um ponto de partida trivial, embora denso: é uma pergunta com sentido biográfico. De fato, em algumas de suas obras, Derrida interroga as relações entre biografia e pensamento filosófico, explorando detalhes biográficos das vidas (e das mortes – em O cartão postal, aliás, ele sugere o conceito de “a-vida-a-morte”, la-vie-la-mort) de filósofos e de pensadores com os quais dialoga e retirando dessa exploração consequências diretas para a compreensão de conceitos e de temas que, convencionalmente, são tratados em separado. Em vez de pressupor a separação entre vida e filosofia, entre biografia e pensamento, Derrida questiona o nexo que os entrelaça. Nesse sentido, ao perguntarem sobre a vida de Derrida e o cinema, os entrevistadores fazem do trivial – detalhes biográficos, aparentemente pouco relevantes – uma forma de retomar temas do pensamento derridiano e de insinuar uma abordagem similar àquela que o filósofo aplica a outros pensadores.

Como o cinema entrou na sua vida?

Muito cedo.Em Argel, mais ou menos aos 10-12 anos, no fim da guerra e depois no imediato pós-guerra. Era uma saída vital. Eu morava em um subúrbio da cidade, El Biar. Ir ao cinema era uma emancipação, o distanciamento da família. Eu me lembro muito bem de todos os nomes dos cinemas de Argel, eu os revejo: o Vox, o Caméo, o Midi-Minuit, o Olympia… Ia provavelmente sem grande discernimento. Eu via tudo, os filmes franceses rodados durante a Ocupação, e sobretudo os filmes americanos que voltaram depois de 1942. Eu seria incapaz de citar títulos de filmes, mas eu me lembro do gênero de filmes que eu via. Um Tom Sawyer, por exemplo, do qual recordava certas cenas esses dias: uma gruta onde Tom está fechado com uma garota. Excitação sexual: eu me dou conta de que um garoto de 12 anos pode acariciar uma menina. Eu tinha mais ou menos a mesma idade. Uma boa parte da cultura sensual e erótica vem, bem se sabe, pelo cinema. Aprendemos o que é um beijo no cinema, antes de o aprendermos na vida. Eu me lembro desse prazer erótico de menino. Eu seria incapaz de citar outra coisa. Pelo cinema, tenho uma paixão, é uma espécie de fascinação hipnótica, eu poderia ficar horas e horas em uma sala, inclusive para ver coisas medíocres. Mas eu não tenho, de forma nenhuma, a memória do cinema. É uma cultura que, em mim, não deixa rastro [trace, um dos conceitos mais importantes do pensamento derridiano]. É gravado virtualmente, eu não esqueci nada, eu tenho também cadernos onde anoto, para me lembrar, títulos de filmes dos quais não me lembro de nenhuma imagem. Eu não sou, de forma alguma, cinéfilo no sentido clássico do termo. Antes um caso patológico. Durante os períodos em que vou muito ao cinema, sobretudo no exterior, quando estou nos Estados Unidos, onde passo meu tempo nas salas, uma repressão constante apaga a lembrança dessas imagens que me fascinam, entretanto. Em 1949, eu cheguei a Paris, no preparatório para a Escola Normal Superior [en khâgne], e o ritmo continuou, várias sessões por dia às vezes, nas incontáveis salas do Quartier Latin, o Champo sobretudo.

A resposta de Derrida introduz alguns temas, sem destinar a eles mais do que algumas palavras, em meio à inscrição do relato em meio aos nomes próprios que delimitam sua vida em Argel, em meados dos anos 1940. A experiência do cinema como fuga, em relação à família e, logo depois, ao trabalho, abre um campo de exploração das relações entre cinema (especificamente no contexto da sala escura de projeção) e erotismo (sobretudo naquilo que o erótico exige de fantasia recorrente, de projeção repetitiva, de fantasma maquinal).

Talvez seja possível entre-ler – assim como se fala em entrever, em ver entre, em ver na penumbra de um entre-lugar, será preciso talvez falar em entre-ler, em ler entre, em ler no espaçamento inconstante das entrelinhas -, talvez, eu dizia, seja possível entre-ler, nas palavras de Derrida sobre cinema e erotismo, um eco de Georges Bataille e de sua atenção às relações entre erotismo e morte, uma vez que, da morte, toda memória é impossível, assim como, para Derrida, a experiência do cinema aparece como uma experiência sem rastro [trace]. Na segunda pergunta, e sobretudo na resposta a ela, o tema do erotismo se desdobra ainda mais amplamente:

Qual é para você o fato primeiro do cinema na infância? Você fala de sua dimensão erótica, que é certamente capital no processo de aprendizagem das imagens. Mas é uma relação com os gestos, uma relação com o tempo, com o corpo, com o espaço?

Se não são os nomes dos filmes, nem as histórias, nem os atores, que deixaram alguma impressão em mim, é certamente uma outra forma de emoção que encontra sua fonte na projeção, no mecanismo [ressort, a mola, o impulso] mesmo da projeção. É uma emoção totalmente diferente daquela da leitura, que imprime em mim uma memória mais presente e mais ativa. Digamos que na situação de “voyeur“, no escuro, eu desfruto de uma liberação inigualável, um desafio às proibições de todo tipo. Se está ali, diante da tela, voyeur invisível, autorizado a todas as projeções possíveis, a todas as identificações, sem a menor sanção e sem o menor trabalho. Eis talvez o que me traz o cinema: uma maneira de me liberar das proibições e sobretudo de esquecer o trabalho. É também por isso, sem dúvida, que essa emoção cinematográfica não pode, para mim, assumir a forma de um saber, nem mesmo de uma memória efetiva. Uma vez que essa emoção pertence a um registro totalmente diferente, ela não deve ser um trabalho, um saber, nem sequer uma memória. Sobre o que se impressionou em mim do cinema, eu sublinharia igualmente um aspecto mais sociológico ou histórico: para um pequeno argelino sedentário, o cinema era a graça de uma viagem extraordinária. Viajávamos como loucos com o cinema. Sem falar dos filmes americanos, exóticos e próximos ao mesmo tempo, os filmes franceses falavam com uma voz muito particular, eles mexiam com corpos reconhecíveis, mostravam paisagens e interiores impressionantes para um jovem adolescente como eu, que nunca tinha ultrapassado o Mediterrâneo. O cinema era, assim, a cena de uma aprendizagem intensa nesse momento. Os livros não me trouxeram a mesma coisa: esse transporte direto e imediato até uma França que me era desconhecida. Ir ao cinema era uma viagem imediatamente organizada. Quanto ao cinema americano, ele representou, para mim, que nasci em 1930, uma expedição sensual, livre, ávida de tempo e de espaço a conquistar. Foi em 1942 que o cinema americano chegou a Argel, acompanhado do que também fez muito rapidamente sua potência (inclusive de sonho), a música, a dança, os cigarros… O cinema queria dizer, antes de tudo, “América”. Aí o cinema me seguiu, durante minha vida de estudante, que era difícil, angustiada, tensa. Nesse sentido, ele agia frequentemente sobre mim como uma droga, a diversão por excelência, a evasão inculta, o direito à selvageria.

O tema do cinema como fuga se amplifica: sua sedução é a de oferecer alguma forma de liberação em relação ao que é proibido, e algum tipo de esquecimento do trabalho. A relação do cinema com o erotismo se torna mais específica, com o surgimento da figura do voyeur (termo que optei por não traduzir, dadas suas associações com o vocabulário da psicanálise, que se revela desde já crucial no pensamento derridiano).

O olhar projetivo do voyeur, aberto “a todas as identificações”, se destina à deriva da viagem. O voyeur viaja como louco. Diante dos fantasmas de outros lugares, o voyeur se entrega ao entorpecimento da diversão, e a deriva de seu olhar reivindica “a evasão inculta, o direito à selvageria”. Esse tema de uma relação selvagem entre espectador e imagem é solicitado explicitamente pelos entrevistadores, na pergunta seguinte:

O cinema não permite, precisamente, e ainda mais do que as outras artes, uma relação “não cultivada” entre espectador e imagem?

Sem dúvida. Pode-se dizer que é uma arte que permanece popular, mesmo se é injusto para aqueles que, produtores, realizadores, críticos, a praticam com muito refinamento ou experimentação. É mesmo a única grande arte popular. E eu, espectador bastante ávido, permaneço, me situo mesmo, do lado do popular: o cinema é uma arte maior da diversão. É preciso efetivamente lhe conceder isso. Do grande número de filmes que vi quando eu era estudante, interno no liceu Louis-le-Grand, de fato me lembro apenas de L’Espoir, de Malraux, no cineclube do liceu Montagne, você vê que é pouco como relação “cultivada” com o cinema de outrora. A seguir, meu modo de vida me afastou um pouco do cinema, limitando-o a momentos precisos em que ele desempenha sempre esse papel de pura emoção de evasão. Quando estou em Nova York ou na Califórnia, vejo um número incalculável de filmes americanos, o que vier, e os filmes mais comentados, pois eu sou muito bom como público. É um momento em que tenho a liberdade e a possibilidade de reencontrar essa relação popular com o cinema que me é indispensável.

A ênfase na ideia de diversão (divertissement) inscreve a experiência do cinema reivindicada por Derrida no campo do entretenimento, especificando o tipo de cinema a que suas ideias se referem: embora ele fale mais frequentemente em termos gerais, sobre cinema, sua experiência e seu pensamento refletem (sobre) um cinema possível, entre outros. A relação selvagem, não cultivada, com a imagem cinematográfica – que Derrida associa à própria definição do cinema que apresenta: “uma arte maior da diversão” – é, ao mesmo tempo, ávida e livre.

Derrida define o cinema de uma forma específica, associada a um tipo particular de filmes, e faz de outros tipos uma possibilidade menor, mesmo que reconheça a injustiça com quem busca “refinamento ou experimentação”. É importante notar que estas duas palavras não descrevem as únicas possibilidades alternativas, nem tampouco se referem a características que estariam necessariamente ausentes do cinema de entretenimento. Além disso, os filmes em que Derrida se concentra no decorrer da entrevista (Ghost dance, D’ailleurs DerridaShoah) não pertencem ao tipo de filmes que se pode designar por meio do conceito de diversão.

O que se observa, aqui, é a repetição de um movimento comum no pensamento sobre cinema: o estabelecimento de uma definição está associado à delimitação de uma norma, isto é, o prescritivo (o que o cinema deve ser: no caso, evasão, diversão etc.) se introduz no cerne do descritivo (o que o cinema é: no caso, a experiência subjetiva do ávido espectador chamado Jacques Derrida, os diversos tipos existentes de cinema etc.). Ao falar sobre cinema, mesmo que reivindique o “direito à selvageria”, Derrida cultiva um determinado pensamento, o que estabelece uma incômoda tensão (que ele reconhece) entre sua experiência singular de espectador e o lugar de fala em que a entrevista o coloca. É o que se explicita em seguida:

Imagina-se que, quando você está numa sala em Nova York ou na Califórnia, num espaço desvinculado de sua vida de saber universitário, a tela continua a impressionar sobre você imagens que vêm diretamente de sua infância ou de sua adolescência…

É uma relação privilegiada e original com a imagem, que preservo graças ao cinema. Sei que existe em mim um tipo de emoções ligadas às imagens e que vêm de muito longe. Isso não se formula sob o modo da cultura erudita ou filosófica. O cinema permanece, para mim, um grande gozo escondido, secreto, ávido, guloso, e portanto infantil. É preciso que ele permaneça assim, e é sem dúvida o que me incomoda um pouco para falar com vocês, uma vez que o lugar dos Cahiers significa a relação cultivada, teórica, com o cinema.

Mas o que é interessante é que essa relação com o cinema, seguramente diferente, repousa contudo, frequentemente, sobre o mesmo tipo de filmes. Tradicionalmente, o repertório Cahiers é o cinema americano, e não o mais prestigioso, as séries B, os pequenos filmes, os autores trabalhando no sistema hollywoodiano…

Eu diria então que os Cahiers, por dandismo intelectual, por um não-conformismo cultivado, dedicam-se a uma série de filmes à qual eu me entrego, por um gozo mais infantil. Tudo é permitido no cinema, inclusive essas aproximações entre figuras heterogêneas de públicos e de relações com a tela. No interior de uma mesma pessoa, aliás. Há, por exemplo, uma concorrência, em mim, entre ao menos dois olhares diante de um filme, ou mesmo diante da televisão. Um vem da infância, puro gozo emocional; o outro, mais erudito, severo, decifra os signos emitidos pelas imagens em função de meus interesses ou de questões mais “filosóficas”.

A tensão incômoda entre os olhares selvagem e cultivado sobre o cinema é interior ao espectador como sujeito, que ora se entrega ao gozo, ora procura decifrar os sentidos das imagens. A forma como Derrida se expressa permite associar suas reflexões sobre o cinema a duas zonas de debate importantes da teoria do cinema: aquela que gira em torno da psicanálise e aquela que concerne à semiologia. (Para situá-las no campo dos estudos de cinema, recomendo obras como a de Dudley Andrew, As principais teorias do cinema, ou a de Robert Stam, Introdução à teoria do cinema.)

Se o diálogo com psicanálise e semiologia assombra a fala de Derrida, sua interlocução com os dois campos é fundamental em toda a sua obra, como atestam alguns dos livros já citados, além de Estados-da-alma da psicanálise, por exemplo. Em todo caso, a entrevista tenderá a seguir o rastro da temática dos fantasmas, que se inscreve no campo da psicanálise e que confere outros sentidos às tentativas semiológicas de decifração dos processos de significação.

Em um livro, Ecografias da televisão, você fala diretamente de cinema. Das imagens mais geralmente, da televisão precisamente, mas também do cinema, através do filme que você rodou. Você associa então o cinema a uma experiência particular, aquela da fantasmalidade [fantômalité]…

A experiência cinematográfica pertence, do começo ao fim, à espectralidade, que eu relaciono a tudo o que se pôde dizer do espectro na psicanálise – ou à natureza mesma do rastro [trace]. O espectro, nem vivo nem morto, está no centro de alguns de meus escritos, e é assim que, para mim, um pensamento do cinema seria talvez possível. Aliás, as ligações entre espectralidade e cinematografia são a ocasião de numerosos escritos, hoje. O cinema pode colocar em cena a fantasmalidade, quase frontalmente, por certo, como uma tradição do cinema fantástico, os filmes de vampiro ou de espíritos [revenants], certas obras de Hitchcock… É preciso distinguir isso da estrutura espectral, do começo ao fim, da imagem cinematográfica. Todo espectador, quando em uma sessão, coloca-se em comunicação com um trabalho do inconsciente que, por definição, pode ser aproximado do trabalho da obsessão segundo Freud. Ele o denomina a experiência do que é “estranhamente familiar” (unheimlich). A psicanálise, a leitura psicanalítica, está em casa no cinema. Em primeiro lugar, psicanálise e cinematografia são efetivamente contemporâneas; numerosos fenômenos ligados à projeção, ao espetáculo, à percepção desse espetáculo, possuem equivalentes psicanalíticos. Walter Benjamin tomou rapidamente consciência disso, ele que aproximou quase imediatamente os dois processos, a análise cinematográfica e psicanalítica. Mesmo a visão e a percepção do detalhe em um filme estão em relação direta com o procedimento psicanalítico. A ampliação não somente amplia, o detalhe dá acesso a uma outra cena, uma cena heterogênea. A percepção cinematográfica não tem equivalente, mas ela é a única a poder fazer compreender pela experiência o que é uma prática psicanalítica: hipnose, fascinação, identificação, todos esses termos e procedimentos são comuns ao cinema e à psicanálise, e está aí o signo de um “pensar junto” que me parece primordial. Aliás, uma sessão de cinema é apenas um pouco mais longa que uma sessão de análise. Vai-se ao cinema se fazer analisar, deixando aparecer e falar todos os seus espectros. Pode-se, de maneira econômica (em relação a uma sessão de análise), deixar os espectros retornarem a você na tela.

Todo filme é um filme de fantasmas. A imagem cinematográfica tem uma “estrutura espectral”, que dá a todo espectador a ocasião de experimentar o que lhe é “estranhamente familiar”, unheimlich. A todo espectador, quer dizer: a qualquer espectador, cuja posição se torna, ao mesmo tempo, individual e coletiva, solitária e comum, numa partilha que Derrida reconhecerá em uma resposta posterior, ao falar na “singularidade”, em vez da “comunidade”, que a experiência do cinema produz como posição espectatorial.

Não é simplesmente por elaborar narrativas de gêneros como o suspense ou o terror, sobre fantasmas, espíritos e assombrações, que o cinema se revela espectral. Não é como cinema fantástico, apenas, isto é, como um tipo específico de filmes, que o cinema se revela atravessado pelos fantasmas. A “fantasmalidade”, o fantasmático, o fantasmagórico não pode ser reduzido ao fantástico, ao fantasioso: eis um dos pressupostos do conceito de espectralidade e de sua aplicação ao campo do cinema.

A espectralidade é parte da experiência cinematográfica em geral, em qualquer gênero, em qualquer tipo de filme, pois todo filme oferece a qualquer espectador alguma experiência do unheimlich. Esse é um dos conceitos psicanalíticos mais fascinantes que Sigmund Freud propôs, e que costuma ser traduzido em inglês como uncanny. Em português, assim como em francês, unheimlich aparece frequentemente como o estranhamente familiar, o étrangement familier. Nas edições da obra de Freud em português, as traduções do texto “Das Unheimliche” variam entre “Inquietante estranheza” (na tradução a partir do inglês que foi a única disponível por um bom tempo, até onde sei), “O estranho” (na tradução publicada pela Imago) e “O inquietante (na tradução de Paulo César de Souza, mais recente, publicada pela Companhia das Letras).

Todo filme é um filme de fantasmas. Cada espectador convoca seus fantasmas, suas fantasias, para habitar as imagens que se projetam diante de seus olhos, e encontra nelas ainda outras assombrações que podem tocá-lo, movê-lo, de alguma forma. O modo como todo espectador se reconhece, se projeta e se desloca, ao entrar em contato com imagens de cinema, evidencia o sentido da inquietude que a experiência do cinema desperta, e que a aproxima da prática da psicanálise.

Derrida coleciona as aproximações entre cinema e psicanálise: seu nascimento contemporâneo, no fim do século XIX; todo um conjunto de procedimentos comuns aos dois (“hipnose, fascinação, identificação”); até mesmo a duração das sessões de cinema e das sessões de análise – tudo isso é signo, segundo Derrida, de um “pensar junto” que associa cinema e psicanálise de forma “primordial”.

Regimes de crença: fantasma, capital, singularidade

Depois de situar sua experiência pessoal do cinema como fuga e como “direito à selvageria”, assim como suas concepções sobre a imagem cinematográfica, associando sua “estrutura espectral” à teoria do fantasma na psicanálise, Derrida explicita uma questão suplementar, que seria seu interesse pensar em relação ao cinema, embora não apenas a ele: a questão da crença.

Você dizia que poderia escrever sobre um aspecto bem específico do cinema, quer dizer…

Se eu escrevesse sobre cinema, o que me interessaria seria sobretudo seu modo e seu regime de crença. Há no cinema uma modalidade do crer totalmente singular: inventou-se, há um século, uma experiência sem precedentes da crença. Seria apaixonante analisar o regime do crédito em todas as artes: como se crê em um romance, em certos momentos de uma representação teatral, no que está inscrito na pintura e, é claro, o que é uma coisa totalmente diferente, no que o cinema nos mostra e nos conta. No cinema, crê-se sem crer, mas esse crer sem crer permanece um crer. Na tela, com ou sem as vozes, lida-se com aparições nas quais, como na caverna de Platão, o espectador crê, aparições que são idolatradas, às vezes. Uma vez que a dimensão espectral não é nem aquela do vivo, nem aquela do morto, nem aquela da alucinação, nem aquela da percepção, a modalidade do crer que aí se aplica deve ser analisada de uma maneira absolutamente original. Essa fenomenologia não era possível antes do cinematógrafo, pois essa experiência do crer está ligada a uma técnica particular, ela é histórica do começo ao fim. Com essa aura suplementar, essa memória particular que nos permite nos projetar em filmes de antanho. É por isso que a visão do cinema é tão rica. Ela permite ver aparecer novos espectros, ao mesmo tempo em que se guarda em memória (e se projeta sobre a tela, por sua vez) os fantasmas assombrando os filmes  vistos.

Como se existissem vários extratos de fantasmalidade…

Sim. E certos cineastas tentam jogar com essas diferentes temporalidades dos espectros, como Ken McMullen, o autor de um filme, Ghost Dance, no qual interpretei um papel. Há a espectralidade elementar, que está ligada à definição técnica do cinema; e no interior da ficção, McMullen coloca em cena personagens assombrados pela história das revoluções, por esses fantasmas que ressurgem da história e dos textos (os comunos, Marx etc.). O cinema permite assim cultivar o que se poderia chamar “enxertos” de espectralidade, ele inscreve traços de fantasmas sobre uma trama geral, a película projetada, que é ela mesma um fantasma. É um fenômeno apaixonante e, teoricamente, é o que me interessaria no cinema como objeto de análise. Memória espectral, o cinema é um luto magnífico, um trabalho de luto magnificado. E ele está pronto a se deixar impressionar por todas as memórias enlutadas, isto é, pelos momentos trágicos ou épicos da história. São então esses enlutamentos sucessivos, ligados à história e ao cinema, que, hoje, “fazem caminhar” as personagens mais interessantes. Os corpos enxertados desses fantasmas são a matéria mesma das intrigas do cinema. Mas o que é recorrente nesses filmes, sejam europeus ou americanos, é a memória espectral de uma época onde não havia ainda cinema. Esses filmes são fascinados pelo século XIX, por exemplo, a lenda do Oeste nos westerns de Eastwood, a invenção do cinema em Coppola, ou a Comuna no filme de Ken McMullen. Da mesma maneira, o cinema trabalha cada vez mais frequentemente a referência de um livro, de um quadro ou de uma fotografia. Nenhuma arte, nenhuma narrativa pode hoje ignorar o cinema. A filosofia também não, aliás. Digamos que ele pesa com seu peso de fantasmas. E esses fantasmas são, de maneiras muito diversas e frequentemente muito inventivas, incorporados pelos “concorrentes” do cinema.

A questão da crença é, igualmente, a questão do crédito. Nessa passagem entre duas palavras que, embora ligadas etimologicamente, costumam ser empregadas em contextos muito diferentes entre si, está em jogo a interrogação do cinema não apenas como imagem espectral, mas como atividade econômica atravessada pelos fluxos abstratos do capital. A experiência do crer que o cinema torna possível equivale a um momento da história da técnica e, nesse sentido, participa tanto da esfera da representação (imagética) quanto da esfera da circulação (econômica). As perguntas e respostas se encadeiam até que Derrida explicita a necessidade de pensar essa relação entre as aparições em forma de imagens e o “mercado mundial de olhares”: “é preciso pensar juntos”, diz ele, mais adiante, “o fantasma e o capital”.

Pensar o cinema como um aparelho espectral exige que se reconheça a existência de diversos extratos, de diversas camadas de espectros, que são enxertadas umas sobre as outras. A metáfora do enxerto, que deve ser relacionada à ideia de escrita, demanda a interrogação da temporalidade do cinema, da multiplicidade de tempos que se inscrevem na imagem cinematográfica, que é uma forma de “memória espectral”.

Se há tempo e memória na imagem de cinema, sua experiência está vinculada à experiência do luto que atravessa os tempos da história, seus “momentos trágicos ou épicos”, como afirma Derrida, mas, também, seria preciso acrescentar, seus momentos insignificantes, vazios, seus tempos mortos. Há no cinema uma potência singular de acolhimento dos tempos do mundo, tanto em seus momentos mais significativos, dramáticos, “trágicos ou épicos” (este parece ser o objeto privilegiado dos filmes que Derrida prefere assistir), quanto em seus momentos sem sentido, sem rumo, sem desfecho, em que o tempo parece ter parado.

Por que o cinema é a mais popular das artes, e continua a sê-lo?

Para responder a essa questão – a grande questão -, é preciso reunir vários tipos de análise. Em primeiro lugar, uma análise “interna” do meio cinematográfico que levaria em conta a imediaticidade das emoções e das aparições tais como elas se imprimem sobre a tela e no espírito dos espectadores, em sua memória, em seu corpo, em seu desejo. Em seguida, uma análise “ideológica” que faz com que essa técnica espectral de aparições seja muito rapidamente relacionada a um mercado mundial de olhares, permitindo que toda bobina impressionada seja reproduzida em milhares de cópias suscetíveis de tocar milhões de espectadores no mundo inteiro, e isso quase simultaneamente, coletivamente, dado que se o cinema fosse uma forma de consumo estritamente individual ou mesmo doméstica, isso não funcionaria. Esse cruzamento é inédito, pois ele reúne num tempo muito curto a imediaticidade das aparições e das emoções (tal como nenhuma outra representação a pode propor) e um investimento financeiro que nenhuma outra arte pode igualar. Para compreender o cinema, é preciso pensar juntos o fantasma e o capital, este último sendo ele mesmo uma coisa espectral.

Quando tenta diferenciar os “tipos de análise” que se deve dedicar ao cinema, me parece que o vocabulário teórico utilizado por Derrida é restrito, do ponto de vista do debate atual na teoria do cinema. Seria preciso, por exemplo, reconhecer alguns problemas em sua forma de descrever a experiência do cinema, como a ênfase na suposta “imediaticidade” da relação entre espectador e imagem. Não há nada de imediato na experiência do cinema: a relação entre espectador e imagem é assombrada por fantasmas, como Derrida mesmo argumenta, e atravessada por mediações sociais, culturais e históricas (como enfatizam teóricos do dispositivo, como Jean-Louis Baudry, ou aqueles mais ligados aos estudos culturais e ao multiculturalismo, como Robert Stam e Ella Shohat), assim como cognitivas (como enfatizam teóricos cognitivistas, como David Bordwell e Noël Carroll).

Em todo caso, com base no vocabulário teórico limitado que utiliza, Derrida sugere caminhos de investigação não trilhados, ou pouco frequentados, com base em uma inventividade conceitual rara. Ao falar em “mercado mundial de olhares”, por exemplo, ou na necessidade de “pensar juntos o fantasma e o capital”, Derrida aponta para questões bastante complexas, como a configuração de um regime global de circulação de formas de olhar e de modos de constituição do sujeito do olhar a elas relacionados, um problema que ultrapassa, sem dúvida, o campo dos estudos de cinema (e que preocupa teóricos ligados ao campo de estudos da cultura visual, por exemplo, como Jonathan Crary, em Técnicas do observador ou Suspensões da percepção).

A relação de Derrida com o vocabulário limitado que articula para falar de cinema é similar àquela que ele assume, com o rigor e a criatividade filosófica que lhe são caros, diante da herança da filosofia ocidental e de seu projeto metafísico. Sem possibilidade de saída, sem qualquer linguagem fora daquela que foi constituída e que se impõe como uma herança, Derrida procura trabalhar com os conceitos, com as palavras, com a escrita, para deslocar e inverter, a partir de dentro, as hierarquias, a ordem habitual, os sentidos convencionais da linguagem filosófica, isto é, de toda linguagem.

Por que o cinema “funciona” unicamente graças à comunidade de visão, à sala de projeção? Por que os espectros aparecem a grupos antes que a indivíduos?

Comecemos por compreender isso do ponto de vista dos espectadores, da percepção e da projeção. Cada um projeta alguma coisa de íntimo sobre a tela, mas todos esses fantasmas pessoais se cruzam em uma representação coletiva. É preciso, portanto, avançar prudentemente com a ideia de comunidade de visão ou de representação. O cinema, é sua definição mesma – aquela da projeção em sala -, chama o coletivo, o espetáculo e a interpretação comunitárias. Mas, ao mesmo tempo, existe uma desvinculação fundamental: na sala, cada espectador está só. É a grande diferença em relação ao teatro, cujos modo de espetáculo e arquitetura interior contrariam a solidão do espectador. É o aspecto profundamente político do teatro: a audiência é uma e exprime uma presença coletiva militante, e, se ela se divide, é em torno de batalhas de conflitos, da intrusão de um outro no seio do público. É o que me faz frequentemente infeliz no teatro, e feliz no cinema: o poder de estar só diante do espetáculo, a desvinculação que a representação cinematográfica supõe.

Seu problema é de vinculação?

Eu não gosto de saber que existe um espectador ao meu lado, e eu sonho, ao menos, em me encontrar só, ou quase, numa sala de cinema. Portanto, eu não empregaria a palavra “comunidade” para a sala de cinema. Eu também não empregaria a palavra “individualidade”, muito solitária. A expressão que convém é a “singularidade”, que desloca, desfaz o vínculo social, e o refaz [rejoue, re-joga] de outra forma. É por isso que existe na sala de cinema uma neutralização de tipo psicanalítico: eu estou a sós comigo mesmo, mas entregue ao jogo de todas as transferências. E sem dúvida é por isso que eu gosto tanto do cinema, e que ele é, para mim, de certa maneira, indispensável, mesmo se eu vou pouco. Existe, na base da crença no cinema, uma extraordinária conjunção entre a massa – é uma arte de massa, que se dirige ao coletivo e recebe representações coletivas – e o singular – essa massa está dissociada, desvinculada, neutralizada. No cinema, eu reajo “coletivamente”, mas aprendo também a estar só: experiência de dissociação social que deve muito, aliás, sem dúvida, ao modo de existência da América. Essa solidão diante do fantasma é um teste [épreuve] maior da experiência cinematográfica. Essa experiência foi antecipada, sonhada, esperada pelas outras artes, literatura, pintura, teatro, poesia, filosofia, bem antes da invenção técnica do cinema. Digamos que o cinema precisava ser inventado para preencher um certo desejo de relação aos fantasmas. O sonho precedeu sua invenção.

Se todo filme é um filme de fantasmas, a “estrutura espectral” da imagem cinematográfica não é uma estrutura compartilhada plenamente pelos espectadores. Na experiência do “estranhamente familiar” que o cinema oferece a todo espectador, a posição que se ocupa diante das imagens é, ao mesmo tempo, individual e coletiva, solitária e comum. Ao problematizar a ideia de “comunidade de visão ou de representação”, Derrida chama a atenção para a complexidade política do cinema, que, segundo ele, não é tão evidentemente político quanto o teatro, mas também não pode ser reduzido a uma forma de experiência individual.

A palavra alternativa que Derrida propõe é “singularidade”, e nesse sentido seu pensamento sobre o cinema não é redutível nem à ênfase política que caracteriza as abordagens da Grande Teoria (embora o nome de Derrida esteja, sem dúvida, associado a esse contexto), nem a um certo individualismo metodológico que caracteriza as abordagens ligadas ao cognitivismo (para compreender o debate entre Grande Teoria e cognitivismo, ver o livro Teoria Contemporânea do Cinema, volume 1).

A possibilidade de estar só diante do espetáculo faz do espectador cinematográfico uma figura dividida entre seus fantasmas e os fantasmas coletivos, situando seu trabalho de fantasia diante da imagem cinematográfica naquela “brecha na velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado”, como escreve Walter Benjamin. É a Benjamin que reenvia, igualmente, a temática do “teste”, da relação com o cinema como uma experiência de teste que é representativa da proliferação de situações de teste na modernidade. Mas, enquanto Benjamin destaca a situação do ator diante dos aparelhos como um teste que reproduz as condições de testes a que qualquer espectador de um filme pode ser submetido, Derrida identifica o teste a que o espectador está submetido, especificamente, na experiência do cinema, com sua “solidão diante do fantasma”.

Testemunho, tempo e representação: Shoah e o irrepresentável

A “solidão diante do fantasma”: o cinema não propõe uma experiência comunitária nem uma experiência individualista, mas uma forma de partilha da singularidade. Os fantasmas da tela (a estrutura espectral da imagem cinematográfica, isto é, a fantasmalidade da técnica) refletem ou refratam os fantasmas de todo espectador, de cada espectador, em sua singularidade (a espectralidade do sujeito do olhar e da escuta fílmicos, de seu corpo diante dos corpos imateriais que vê e ouve, de suas memórias que se sobrepõem às memórias registradas ou narradas nas imagens).

Sem dúvida, a noção de comunidade recusada por Derrida é uma noção simplista, que não corresponde à complexidade de reflexões sobre o tema que filósofos contemporâneos têm proposto, como Giorgio Agamben ou Roberto Esposito, entre outros, como Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot. Nas ciências sociais, igualmente, o conceito de comunidade não corresponde à noção de compartilhamento sem ruídos, sem fraturas, sem lacunas, que parece ser o que Derrida tem em mente ao usar o termo. De certa forma, aliás, suas considerações sobre a singularidade insinuam um movimento de revisão do conceito de comunidade que outros filósofos e pesquisadores operam também.

É por isso que escrevi que o cinema propõe uma forma de partilha da singularidade: uma comunidade, uma partilha, que se inscreve necessariamente na singularidade mais inequívoca de cada espectador. A relação do espectador com a imagem, que é também sua relação com seus fantasmas, é sempre mediada pela partilha que o constitui, por sua inscrição em coletividades diversas que configuram sua posição de sujeito. A imagem não é imediata, nem como emoção, nem como conceito, nem como representação. Sua consistência não é a de uma simples fantasia, nem a de um documento.

Na pergunta seguinte, a conversa se aproxima do problema da relação entre cinema e documento, que os entrevistadores formulam por meio da menção da noção de testemunho. É um dos problemas mais interessantes da entrevista: como sustentar um pensamento sobre o cinema como espectralidade e, ao mesmo tempo, afirmar a potência de testemunho da imagem cinematográfica? Em outras palavras: como um fantasma pode prestar testemunho? A resposta de Derrida procura interrogar os sentidos documentais da imagem cinematográfica, reconhecendo a ausência de crédito que as afeta, no direito ocidental, em contraposição ao investimento de crédito no verbal e no escrito.

Num livro recente sobre Maurice Blanchot, você retorna a uma questão que lhe é cara, já abordada, sobre a imagem, em Ecografias da televisão: o estatuto do testemunho. É igualmente uma questão central para o cinema: isso a que pode servir o cinema, isso em que ele pode crer. O cinema testemunha, tenta prová-lo [tente d’en faire la preuve]…

No direito ocidental, o documento filmado não tem valor de prova. Existe, na nossa ideia ocidental da crença, uma desconfiança irredutível em relação à imagem em geral e à imagem filmada em particular. Isso pode ser interpretado como uma forma de arcaísmo, a ideia de que somente a percepção, o verbal ou o escrito em sua presença real têm direito à crença, são críveis. Nunca se adaptou esse direito à possibilidade do testemunho filmado. Inversamente, pode-se também dizer que essa desconfiança jurídica em relação à imagem filmada leva em conta a modernidade da imagem cinematográfica, a reprodutibilidade infinita e a montagem das representações: a síntese sempre possível que liga a crença à ilusão. Uma imagem, ainda mais no cinema, é sempre passível de interpretação: o espectro é um enigma, e os fantasmas que desfilam nas imagens são mistérios. Pode-se, deve-se acreditar neles, mas isso não tem valor probatório. Tomem o caso Rodney King em Los Angeles, onde todo o sistema da acusação repousava sobre uma fita de vídeo fortuitamente gravada por uma testemunha do espancamento do negro pela polícia. A testemunha podia fornecer apenas essas imagens, ela tinha visto pelo olho de sua câmera, e essa fita esteve no centro de discussões e de interpretações abundantes, até não ter mais fim. Se a testemunha tivesse visto e tivesse relatado fatos, sua fala, de uma certa maneira, teria sido mais probatória. A imagem dos fatos, se ela correspondia a um estado da sociedade e suscitou uma espécie de revolta, em particular na comunidade negra, era paradoxalmente menos digna de crença da parte da justiça e da autoridade branca. Mais fundamentalmente, é a questão da impressão [empreinte, impressão, impressão digital, pegada] que é colocada por esse desafio: a impressão genética é mais crível, melhor acreditada que a impressão cinematográfica.

A “impressão”, aqui, é tanto a pegada quanto a impressão digital, de origem genética. Derrida está interessado em questionar a recusa de crédito ao documento filmado. O caso que menciona evidencia os interesses políticos do filósofo na luta anti-racista, especificamente no contexto dos Estados Unidos, em que se pode contrapor a “comunidade negra” à “autoridade branca” da “justiça”, como se à primeira não fosse concedida qualquer possibilidade de participar da segunda.

Em vez de continuar no caminho interrogativo aberto pelo exemplo dado por Derrida, os entrevistadores conduzem a conversa de volta para o contexto mais específico do cinema, com a citação de um filme imprescindível, Shoah (1985), de Claude Lanzmann, um “filme-testemunho”, uma “apresentação sem representação” de falas sobre o “irrepresentável”:

A propósito do filme como impressão, o que você pensa de um filme como Shoah, de Claude Lanzmann?

É um filme-testemunho. Mas ele confere aos testemunhos um papel verdadeiramente maior, uma vez que recusa sistematicamente as imagens de arquivo, para encontrar no presente as testemunhas, sua fala, seu corpo, seus gestos. É portanto, também, um grande filme da memória, que restitui a memória contra a representação e contra, bem entendido, a reconstituição. O presente impede a representação, e creio que, nesse sentido, Lanzmann ilustra da melhor forma o que pode ser o rastro [trace] no cinema. Shoah não cessa de capturar impressões, rastros, toda a força do filme e sua emoção dependem desses rastros fantasmais sem representação. O rastro é o “isso teve lugar aí” [ça a eu lieu là] do filme, sua sobrevivência. Pois todas essas testemunhas são sobreviventes: eles viveram isso e o dizem. O cinema é o simulacro absoluto da sobrevivência absoluta. Ele nos conta isso de onde não retornamos, ele nos conta a morte. Por seu próprio milagre espectral, ele nos designa o que não deveria deixar rastro. Ele é, portanto, duas vezes rastro: rastro do testemunho ele mesmo, rastro do esquecimento, rastro da morte absoluta, rastro do sem-rastro, rastro do extermínio. É o resgate [sauvetage], pelo filme, do que resta sem salvação [sans salut], a salvação aos sem-salvação [le salut aux sans-salut], a experiência da sobrevivência pura que testemunha. Penso que em face “disso”, o espectador é capturado. Essa forma encontrada para a sobrevivência é irrecusável. Ela é certamente uma ilustre ilustração do cinematógrafo falante.

O que é isso que, em Shoah, lhe parece especificamente cinematográfico?

Essa apresentação sem representação da fala testemunhal é cativante [saisissante] por que ela é “filme”. Shoah teria sido muito menos forte e crível enquanto documento puramente audível. A apresentação do rastro não é nem uma simples apresentação, nem uma representação, nem uma imagem: ela toma corpo, concede esse gesto à fala, conta e se inscreve numa paisagem. Os fantasmas sobreviveram, eles são re-presentificados [re-présentifiés], eles aparecem em toda a sua fala fenomenal, fantástica, isto é, espectral (sobreviventes que retornam [des survivants-revenants, que poderia se desdobrar numa deriva equívoca: sobreviventes-espírito, sobreviventes-fantasma, sobreviventes-assombrações?]). A força de Shoah, antes de ser histórica, política, arquivística, é, portanto, essencialmente cinematográfica. Pois a imagem cinematográfica permite que a coisa mesma (uma testemunha que falou, um dia, em um lugar) seja não reproduzida, mas produzida de novo “ela mesma aí” [“elle-même là”]. Essa imediaticidade do “ele mesmo aí” [lui-même là”], mas sem presença representável, produzida a cada visão, é a essência do cinema, assim como do filme de Lanzmann.

Essa maneira de apresentar o irrepresentável, em Shoah, também tornou suspeitas toda reconstituição e toda representação do extermínio. Como você explica isso?

O que aparece ao desaparecer em Shoah, essa ausência de imagens diretas ou reconstituídas do que “isso” foi, isso de que se fala, nos coloca em relação com os eventos da Shoah, isto é, o irrepresentável ele mesmo. Enquanto todos os filmes, quaisquer que sejam suas qualidades ou seus defeitos, por outro lado – essa não é a questão -, que representaram o extermínio podem apenas nos colocar em relação com alguma coisa de reprodutível, de reconstitutível, isto é, o que não é a Shoah. Essa reprodutibilidade é um terrível enfraquecimento da intensidade da memória. A Shoah deve ser, a um tempo, no “isso teve lugar” [“ça a eu lieu”] e no impossível que “isso” tenha tido lugar e seja representável.

A força de Shoah depende muito da gravação da voz. É uma coisa à qual você é bastante sensível. Você gravou, por exemplo, leituras de texto, Feu la cendre e Circonfessions, onde sua intervenção está inteiramente na sua voz…

Shoah é muito mais que uma gravação de falas… Mas, para responder à sua questão, sim, a gravação das falas é um dos fenômenos maiores do século XX. Ela dá à presença viva uma possibilidade de “estar aí” [“être là”] de novo sem nenhum equivalente, sem nenhum precedente. A grandeza do cinema, certamente, foi a de integrar a gravação da voz em um momento de sua história. Não foi um adicional, um elemento suplementar, mas, bem antes, um retorno às origens do cinema permitindo realizá-lo melhor ainda. A voz, no cinema, não acrescenta alguma coisa; ela é o cinema pois de mesma natureza que a gravação do movimento do mundo. Não creio de forma alguma na ideia de que seria preciso separar as imagens – cinema puro – da fala; elas são da mesma essência, aquela de uma “quase-apresentação” de um “ele mesmo aí” do mundo, cujo passado será, para sempre, radicalmente ausente, irrepresentável em sua presença viva.

Montagem, escrita, espectralidade

Um dos problemas fundamentais que todo pensamento sobre cinema deve abordar é a questão da montagem. No pensamento de Derrida, é possível encontrar uma contundente metáfora da montagem no conceito de escrita (assim como a escrita de Derrida se apropria, parcialmente, de procedimentos de montagem). Mais geralmente, seria preciso pensar as relações entre a montagem cinematográfica e diversas formas de escrita, da literatura à filosofia. Na entrevista, a discussão sobre a montagem conduzirá à interrogação das diferenças e semelhanças entre filme e livro, entre cinema e discursividade, tomando como referência, sobretudo, o filme D’ailleurs Derrida.

Uma outra especificidade do cinema concerne a montagem. O que você pensa dessa técnica que permite montar, remontar, desmontar? O cinema, em sua matéria mesma, sem dúvida, levou mais longe o uso da reflexão sobre a narratividade. Pode-se estabelecer um vínculo entre o conceito de “desconstrução” que você forjou e a ideia de montagem no cinema?

Não há aqui sincronização real, mas essa aproximação me importa. Há entre a escrita de tipo desconstrutivo que me interessa e o cinema um vínculo essencial. É a exploração na escrita, seja aquela de Platão, Dante ou Blanchot, de todas as possibilidades de montagem, isto é, de jogo sobre os ritmos, de enxertos de citações, de inserções, de alterações de tons, de alterações de línguas, de cruzamentos entre as “disciplinas” e as regras da arte, das artes. O cinema, nesse domínio, não tem equivalente, salvo, talvez, a música. Mas a escrita é como que inspirada e aspirada por essa “ideia” da montagem. Além disso, a escrita, ou, digamos, a discursividade, e o cinema estão envolvidos na mesma evolução técnica, e portanto estética, aquela das possibilidades cada vez mais finas, rápidas, aceleradas, oferecidas pela renovação tecnológica (computadores, Internet, imagens de síntese). Existe, doravante, de uma certa maneira, uma oferta ou uma demanda de desconstrução desigual, tanto na escrita quanto no cinema. Tudo se resume a saber o que fazer com isso. O recortar-colar, a recomposição dos textos, a inserção sempre mais rápida de citações, tudo o que o computador permite, aproxima cada vez mais a escrita da montagem cinematográfica, e inversamente. Se bem que o cinema está se tornando, paradoxalmente – enquanto a tecnicidade se incrementa ainda mais – uma disciplina mais “literária”, e inversamente: é evidente que a escrita, há algum tempo, participa um pouco de alguma visão cinematográfica do mundo. Desconstrução ou não, um escritor sempre foi um montador. Hoje, ele o é ainda mais.

Você mesmo se sente cineasta ao escrever?

Não creio abusar ao dizer que, conscientemente, quando escrevo um texto, projeto uma espécie de filme. Eu tenho seu projeto e eu o projeto. O que me mais interessa na escrita é menos, como se diria, o “conteúdo” do que a “forma”: a composição, o ritmo, o esboço de uma narratividade particular. Um desfile de potências espectrais produzindo certos efeitos bastante comparáveis ao desenrolar de um filme. Isso é acompanhado de uma fala, que eu trabalho como que sobre uma faixa à parte [sur une bande à part: estaria Derrida citando Bande à part (1964), de Jean-Luc Godard? Suponho que não, mas uma tarefa interessante seria desdobrar uma leitura de suas ideias a partir desse equívoco contido na expressão que ele utiliza da língua francesa, entre o coloquialismo e a referência ao título do filme…], por mais paradoxal que pareça. É cinema, incontestavelmente. Quando e se tenho prazer ao escrever, é com isso que tenho prazer. Meu prazer não é, antes de tudo, dizer “a” verdade, ou o “sentido” da “verdade”, ele depende da encenação [mise en scène, um dos conceitos mais importantes da teoria do cinema e, em especial, da crítica que se consolidou na revista Cahiers du Cinéma], seja pela escrita nos livros ou pela fala no ensino. E tenho bastante inveja desses cineastas que, hoje, trabalham na montagem com máquinas ultra-sensíveis, permitindo compor um filme de uma maneira extremamente precisa. É o que busco constantemente na escrita ou na fala, mesmo se, no meu caso, esse trabalho é mais artesanal, e se tenho a fraqueza de crer que o “efeito” de sentido ou o “efeito” de verdade é ainda o melhor cinema.

Gostaria de partir novamente do filme D’ailleurs Derrida, de Safaa Fathy, no qual você é ao mesmo tempo o assunto e o ator. Essa experiência, me parece, lhe conduziu a pensar acerca do funcionamento da máquina cinema (em termos de filmagem ou de montagem) e sobre o cinema em geral.

Há vários tempos nessa experiência, que eu teria a tentação de nomear “filme de aprendizagem”, como se fala em “romance de aprendizagem” ou “romance de formação”. Além de tudo o que pude indiretamente aprender, compreender ou abordar do cinema, nada vale essa experiência inflexível que deixa pouco espaço para a retirada do corpo [qui laisse peu de retrait au corps]. Pude compreender muitas coisas sobre o cinema em geral, sobre a tecnologia, sobre o mercado (porque houve problemas de produção, entre Arte e a companhia Gloria). Nesse sentido, esse foi um “filme de aprendizagem”. Por outro lado, você faz alusão ao fato de que, em Tourner les mots (nldr, le livre que Jacques Derrida a tiré de cette expérience de cinéma), eu me designo como o Ator. Eu brinquei [J’ai joué, eu joguei, eu interpretei um papel], escrevendo esse texto, de colocar maiúsculas nas palavras Ator e Autor; era um jogo [c’était un jeu, era uma brincadeira], mas um jogo sério, eu devia interpretar [je devais jouer, eu devia jogar, eu devia brincar como] o que se suponha ser meu próprio personagem, que é, ele mesmo, apenas um personagem (cada um de nós tem vários personagens sociais). Portanto, trata-se, para mim, de interpretar [jouer] como Ator vários dos meus personagens, tais como eles tinham sido escolhidos pelo Autor, que tinha um grande número de escolhas prévias [partis pris] que me foi necessário levar em conta. Por exemplo, o Autor, Safaa Fathy, escolheu [a pris le parti] me subtrair ao espaço francês, ela deliberadamente escolheu me mostrar em outros lugares, reconstituindo genealogias mais ou menos fantásticas, na Argélia, na Espanha, nos Estados Unidos. Eu precisei aprender a superar minhas próprias inibições quanto à exibição diante da câmera e a me dobrar às escolhas prévias [partis pris] do Autor. Em um primeiro tempo, depois da filmagem e da montagem (na qual eu nunca participei), nós escrevemos, cada um de seu lado, os textos que foram recolhidos em Tourner les mots. Isso me permitiu dizer um certo número de coisas que não substituem o filme, mas jogam com ele.

O texto redistribui o filme em uma outra dimensão e em uma outra ordem; há um vínculo na medida em que os dois se olham e se completam.

O filme e o livro são, ao mesmo tempo, vinculados um ao outro e radicalmente independentes. Tento mostrar como, em um certo número de seus encadeamentos de imagens, o filme depende do idioma francês, do idioma intraduzível, como, por exemplo, a palavra “d’ailleurs”. Coloquei nesse texto a questão da língua francesa, na medida em que ela determina, do interior, o curso das imagens e na medida em que ela deve passar a fronteira, uma vez que se trata de um filme co-produzido por Arte e destinado a ser imediatamente mostrado em países europeus de língua não francesa. Que se iria fazer com a tradução? A princípio, as palavras são traduzíveis (ainda que a experiência seja aqui, a cada passo, assustadora), mas o que vincula as imagens e as palavras não o é, e comporta, portanto, problemas originais. É preciso aceitar que um filme seja, em sua especificidade cinematográfica, vinculado a idiomas intraduzíveis e, portanto, que a tradução tenha lugar sem perder o idioma cinematográfico que vincula a palavra à imagem.

Não há um outro problema que você pôde perceber no interior da disjunção entre o ver e o falar?

Sim, é um dos riscos mais interessantes do filme. É o que sublinha o título do livro. “Tourner les mots” [“Rodar as palavras”] significa evitar as palavras, rodear [contourner] as palavras, fazer com que o cinematográfico resista à autoridade do discurso; ao mesmo tempo, tratava-se de revirar [tourner] as palavras, isto é, de encontrar frases que não fossem frases de entrevistas, de cursos, de conferências, frases já propícias a uma tomada cinematográfica; enfim, é preciso entender rodar [entendre tourner], se escutar a rodar [s’entendre à tourner], no sentido de filmar as palavras. E como filmar as palavras que se tornam imagens, que sejam inseparáveis do corpo, não apenas da pessoa que as diz, mas do corpo, do conjunto icônico, e que no entanto permanecem palavras, com sua sonoridade, seu tom, o tempo das palavras? Essas palavras podem ser às vezes arrancadas em uma improvisação, ou mesmo lidas, já que há algumas passagens lidas pelo ator ou legíveis num cartaz de rua. Os lugares nunca são identificados, eles se fundam uns nos outros, eles compartilham os traços [traits, as características] que têm em comum o sul da Califórnia, a Espanha, a Argélia, lugares litorâneos, meridionais; e, no único momento em que se pode identificá-los por um nome próprio, é algo que se lê em silêncio, em um cartaz de rua. É uma experiência que se quer propriamente cinematográfica e que, contudo, não sacrifica o discurso submetido à lei fílmica. Surge frequentemente, no filme, a questão do endereço, da destinação, da indeterminação do destinatário. Quem endereça o que a quem? O que conta na imagem não é simplesmente o que está imediatamente visível, mas antes as palavras que habitam as imagens, a invisibilidade que determina a lógica das imagens, isto é, a interrupção, a elipse, toda essa zona de invisibilidade que pressiona a visibilidade. E, nesse filme, a técnica da interrupção é muito hábil – eu falo, frequentemente, de anacoluto, ao me referir a isso, e também Safaa Fathy. Essa interrupção da imagem não rompe o efeito da imagem, ela leva mais longe a força a que a visibilidade dá impulso. A sequência interrompida é reencontrada em outro momento do filme, ou não é reencontrada, e cabe ao destinatário, o que se chama espectador, se reencontrar ou não, deixar correr, seguir a costura [faufilage] ou não. Em consequência, a imagem como imagem é trabalhada em seu corpo pela invisibilidade. Não forçosamente a invisibilidade sonora das palavras, mas uma outra invisibilidade, e creio que o anacoluto, a elipse, a interrupção formam talvez aqui que o filme guarda de próprio. O que se vê no filme tem menos importância, sem dúvida, do que o não dito, o invisível que é lançado como um lance de dados [un coup de dès], substituído [relayé] ou não (cabe ao destinatário responder) por outros textos, por outros filmes.

É um filme sobre o luto (a morte dos gatos, a morte de minha mãe) e é um filme enlutado de si mesmo. Em toda obra, há um sacrifício assim; entretanto, na escrita de um texto ou de um livro, ainda que seja preciso também jogar fora, sacrificar, excluir, as restrições são menores, elas são menos exteriores; quando se escreve um livro, não se está submetido, como é o caso aqui, a uma lei comercial ou midiática tão dura, tão rígida. É por isso que o livro foi uma espécie de respiração.

Será preciso reconhecer o invisível como algo fundamental para a experiência do cinema, sugere Derrida, “o invisível que é lançado como um lance de dados”. O coup de dès é, sem dúvida, uma referência ao importante poema de Stéphane Mallarmé, de 1897, intitulado “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard” – “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Se Mallarmé reconhece, nos espaços em branco da página em que escreve seu poema, uma parte constitutiva da poesia, transformando a escrita poética em uma forma de montagem, Derrida sugere que o espaço em branco e o vazio são constitutivos da imagem cinematográfica, conferindo a sua visibilidade um fundamento ou um horizonte de invisibilidade.

O que você diz sobre sua experiência do filme reenvia a conceitos mais gerais sobre o cinema e a televisão, como a questão do espectro.

O tema da espectralidade é exposto como tal no filme. Assim como o luto, a diferença dos sexos, a destinação, a herança. A espectralidade retorna regularmente, inclusive como imagem, uma vez que se vê o espectro de minha mãe, um gato fantasma, um gato siamês se assemelha ao gato morto como um irmão. Esse tema é tratado de maneira a um tempo discursiva e icônica. E, por outro lado, eu tinha abordado, em Ecografias da televisão, essa questão da dimensão espectral da imagem televisiva ou cinematográfica, a questão da virtualização. É um problema político, que aparece igualmente em Espectros de Marx. Tudo isso forma uma rede inextricável de motivos que são filmados como se filma o próprio cinema, sendo o cinema um exemplo do que está em questão aqui. Dito de outro modo, é como se as imagens espectrais viessem dizer: nós somos imagens espectrais (mas sem especular sobre o academicismo da autoridade, sobre a sui-referencialidade especular). Como filmar um espectro que diz: eu sou um espectro? Com naturalmente o lado um pouco perturbador, mesmo sinistro, da sobrevida [survie]. Pois sabemos que uma imagem pode sobreviver, como um texto. Poder-se-ia ver essas imagens não somente após a morte de meu pequeno irmão, de meu gato, de minha mãe etc., mas após minha própria morte. E isso operaria da mesma maneira. Isso depende de um efeito de virtualização intrínseca que marca toda reprodutibilidade técnica, como diria Benjamin. É um filme sobre a reprodutibilidade técnica: vê-se a um tempo a natureza mais selvagem, o fluxo e o refluxo das ondas na Califórnia, na Espanha ou na Argélia, e as máquinas a reproduzir, a gravar, a arquivar.

O fantasma foi pensado em um certo momento na teoria do cinema, mas hoje essa ideia vai contra a concepção dominante da imagem, a saber, a de que haveria uma consistência do visível à qual se deveria crer.

Em uma ideologia espontânea da imagem, esquece-se frequentemente de duas coisas: a técnica e a crença. A técnica, a saber, que lá onde se supõe que a imagem (a reportagem ou o filme) nos coloca diante da coisa mesma, sem trapaças nem artifícios, queremos esquecer que a técnica pode transformar, recompor, artificializar a coisa de modo absoluto. E afinal há esse fenômeno bastante estranho, que é aquele da crença. Mesmo em um filme de ficção, um fenômeno de crença, de “fazer como se”, guarda uma especificidade muito difícil de analisar: “crê-se” mais em um filme. Crê-se menos ou de outro modo em um romance. Quanto à música, é ainda outra coisa, ela não implica a crença. Uma vez que exista representação romanesca ou ficção cinematográfica, um fenômeno de crença é carregado pela representação. A espectralidade é um elemento em que a crença não está nem assegurada, nem contestada. É por isso que creio que seja preciso vincular novamente a questão da técnica àquela da fé, no sentido religioso e fiduciário, a saber, o crédito atribuído à imagem. E ao fantasma. Em grego, e não somente em grego, fantasma designa a imagem e o espírito [le revenant, o que retorna]. O fantasma é um espectro.

O que você pensa das imagens filmadas da liberação dos campos em relação aos textos escritos?

Shoah é tanto um texto linguístico quanto um corpus de imagens. São “palavras rodadas”, de uma certa maneira. Uma fala filmada não é uma fala capturada em película tal e qual, é uma fala interpretada, por exemplo, interrompida, relançada, repetida, colocada em situação. Tornar uma obra (pois o arquivo é também uma obra) acessível é submeter uma interpretação a uma interpretação.

A potência da imagem foi mais forte do que o texto de Antelme – A espécie humana – que na época não teve um impacto assim tão forte?

Nem mesmo agora. É um testemunho maior, mas não tem a potência de difusão de uma obra cinematográfica. Não quero ter que escolher entre os dois. Não creio que um possa substituir o outro. Por outro lado, há em A espécie humana muitas imagens. É também um livro-filme de uma certa maneira. Shoah é um filme-texto, um corpo de falas, uma fala incorporada. O tempo da descoberta dos testemunhos, o caminho do insconsciente que conduz aos arquivos é uma coisa que merece reflexão. Há um tempo (técnico e físico) para a conclusão política do recalque [la levée politique du refoulement]. Eu relia recentemente (para falar disso em outro lugar) as Reflexões sobre a questão judaica, de Sartre, que foi escrito depois da guerra, e com algumas páginas escritas em 1944. A maneira como ele fala dos campos, muito breve, é bastante estranha. Ele os conhecia ou não? Depois da guerra, não se colocava a questão do que havia ocorrido em Auschwitz. O nome Auschwitz (sem falar no nome Shoah) era inaudível, desconhecido, ou tinha permanecido sob silêncio. Necessária psicanálise do campo político: do luto impossível, do recalque. Benjamin é ainda, aqui, uma referência necessária: ele vinculou a questão técnica do cinema e a questão da psicanálise. Ampliar um detalhe é próprio à câmera e à análise psicanalítica. Ampliando o detalhe, faz-se outra coisa além de ampliá-lo, muda-se a percepção da coisa mesma. Acede-se a um outro espaço, a um tempo heterogêneo. Essa verdade vale para o tempo dos arquivos e do testemunho.

Você pensa que a imagem é uma inscrição da memória ou uma confiscação da memória?

Os dois. É imediatamente uma inscrição, uma conversação, seja da imagem mesma, no instante em que é captada, seja do ato de memória de que fala a imagem. No filme D’ailleurs Derrida, eu evoco o passado. Há ao mesmo tempo o momento em que eu falo e o momento de que eu falo. Isso cria já duas memórias implicadas uma na outra. Mas como essa inscrição está exposta ao recorte, à seleção, à escolha interpretativa, ela é, ao mesmo tempo que uma chance, uma confiscação, uma apropriação violenta, e pelo Autor e por mim mesmo. Quando eu falo do meu passado, voluntariamente ou não, seleciono, inscrevo e excluo. Conservo e confisco. Não creio que haja arquivos somente conservadores, é o que tento destacar num pequeno livro, Mal de arquivo. O arquivo é uma violenta iniciativa de autoridade, de poder, é uma tomada de poder pelo porvir [avenir], ele pré-ocupa o porvir; ele confisca o passado, o presente e o porvir. Sabe-se muito bem que não há arquivos inocentes.

(Entrevista realizada no dia 10 de julho de 1998, em Paris, por Antoine de Baecque e Thierry Jousse, depois no dia 6 de novembro de 2000, por Thierry Jousse. Retranscrita e formatada por Stéphane Delorme.) [Tradução para o português: Marcelo Ribeiro.]

Uma resposta em “Jacques Derrida e os fantasmas do cinema”

Os comentários estão desativados.