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Especular a fruta

Tive a alegria de contribuir para o catálogo da exposição Inservíveis, realizada no Museu de Arte da UFPR no ano passado, que foi recentemente publicado no repositório institucional da universidade. Escrevi sobre Receta para rendir la fruta, de Wiki Pirela, que está disponível no canal de Youtube da artista e pode ser assistido a seguir. Meu texto se intitula, talvez de modo um pouco óbvio, “Especular a fruta”, e tento falar mais da casa extranha que Wiki Pirela nos apresenta. Reproduzo o texto abaixo. O catálogo tem muito mais e é muito bonito. Agradeço pelo convite a Ronaldo Corrêa e Yasmin Fabris, responsáveis pela coordenação da exposição e do excelente processo que conduziu ao catálogo.



A cena inicial é breve e densa. Em seu cerne, o espaço da casa e o tempo da relação entre a filha e sua mãe, tal como se reconstitui como recordação, se abrem como uma matéria memorial e imaginativa. Antes da figuração lúdica do espaço doméstico entranhado como recordação, o cenário se apresenta sob o ruído metálico de uma frequência estranha, inscrevendo na aparente familiaridade da casa uma aspereza inquietante, que permanece irredutível. Unheimlich, extranha, a casa é recomposta por meio da combinação entre a constituição plástica do fundo pintado, a consistência volumétrica de algumas figuras destacadas em primeiro plano e o registro videográfico que, delimitando a cada vez o campo da imagem, entrecorta o jogo cênico com pulsações rítmicas, associadas a uma voz que vem do extracampo.

O fundo se estende como um pano ou uma tela e mostra o esboço de uma representação em perspectiva de um piso azulado, com duas paredes que se encontram, decoradas com um motivo visual amarelo em formato de trevo, destacando-se do vermelho dominante, abrigando, do lado esquerdo, um quadro em preto e branco e, do lado direito, a abertura de uma porta para um corredor em que se prolonga o mesmo piso azulado, acompanhado de uma parede amarela. No centro do registro videográfico, avoluma-se uma espécie de oratório secular, armário diminuto ou casa de brinquedo – um móvel amarelo com portas que resguardam, por sua vez, uma cena suplementar, em miniatura, que veremos assim que as pequenas portas forem abertas por duas mãos transcendentes, que vêm de cima como mãos de um gigante ou de uma divindade. Acima da cena suplementar, como um título inscrito na moldura que a delimita, lemos uma pergunta sobre a possibilidade da fuga: “¿Huir?”. Mas quem se pergunta sobre a fuga?

Na cena em miniatura, encontramos o mesmo dispositivo de duplicação e deslocamento, baseado na combinação entre superfície e volume, que organiza a cena inicial. Dessa vez, são os contornos ou as materialidades de uma cozinha que se afiguram. O som metálico persiste, a imagem escurece, e passamos ao registro videográfico de uma tigela com uma manga amarela. A câmera filma de cima para baixo, na vertical, e vemos uma mão que vem de baixo, dessa vez, uma mão mundana que, em sua imanência insuperável, busca alcançar a fruta. Voltamos, então, à mesma cena inicial, mas ela já é outra: no lugar do móvel amarelo, há uma cadeira; sobre ela está um telefone com a palavra “Caracas” escrita no aparelho. Então, vinda de cima, uma mão disca duas vezes o número 1 e retira o aparelho do gancho, dando início ao movimento do discurso verbal que atravessará o restante da obra.

É, portanto, uma ligação telefônica que, após a dupla abertura do espaço da casa, vem abrir seus tempos múltiplos, com o relato da recordação de um ensinamento materno: “Minha mãe me ensinou a extrair toda a carne da fruta.” / “Mi madre me enseñó a sacarle toda la carne a la fruta.” O som desaparece junto com a imagem do telefone fora do gancho. Imergimos brevemente no escuro e no silêncio, para emergir em uma repetição ou reencenação da recordação, no presente, com o registro videográfico da tigela com a manga amarela, que agora nos faz ver o trabalho das mãos ao descascar a fruta, enquanto a voz continua seu relato. Dirigindo-se a alguém, eventualmente a quem assiste ao vídeo, a quem o encontra em uma exposição ou em uma plataforma de vídeos na internet, por exemplo, aquela que fala se refere à sua mãe, relata uma memória múltipla da mãe, narra uma lembrança recorrente, que em português denominamos pretérito imperfeito, descrevendo e fazendo imaginar uma ação que se repetia, que se fazia a cada vez de novo em mais de um momento do passado.

A voz é da artista que assina a obra, que elabora suas cenas e reencena a recordação enquanto narra seu relato memorial. Mas quem fala sempre se divide. Por um lado, quem fala é mais de um: não um indivíduo, alguém que assina a obra como autora, mas divíduo. É todo o espaço da identificação como empatia que se oferece, aqui, para qualquer espectador, como um convite a imaginar e a imaginar-se no lugar de quem fala, compartilhando algo. Por outro lado, quem fala é menos de um: parte sem parte. É o fundamento da distância que pode conduzir, assim, à não identificação – e deve conduzir ao reconhecimento de que, na cena de um discurso, é sempre de uma partilha que se trata: não a comunhão da empatia e da identificação plena, que captura o comum como comunidade fechada, mas a disjunção de uma abertura à diferença, de uma desidentificação.

Na distância demarcada pelo telefonema, a chamada se desenrola como um discurso interior que, contudo, se projeta e se dispersa para fora. A filha vê a mãe na tela da memória, reconhecendo-se a partir desse contraponto, desse aprendizado, desse contracampo ausente: “eu coloco isso em prática, eu a vejo.” / “lo pongo en práctica, la veo a ella.” Não chegamos a ver a mãe, cuja lição a filha tinha resumido logo antes, dessa forma: “Aproveitar ao máximo, que renda mais.” / “Aprovechar el máximo, que rinda más.” Vemos a manga sendo descascada, enquanto a filha não apenas narra as ações da mãe para “fazer render a fruta” / “rendir la fruta”, mas revela seus sentidos metonímicos (não se trata apenas da fruta, mas também da batata e, portanto, de toda forma de comida) e metafóricos (não se trata apenas de formas de lidar com a falta de comida, mas de maneiras de confrontar a pobreza e a privação). Assim, a filha interpreta as ações da mãe: “Admiro a forma como de uma batata extraía milhares de pratos. Tem o dom de multiplicar o pão e o vinho. […] Ampliando tudo com nada.” / “Admiro la forma en que de una papa sacaba miles de platos. Tiene el don de multiplicar el pan y el vino. […] Extendiendo todo con nada.”

Vemos então sua boca, enquanto come a manga que acaba de descascar, e assim o registro videográfico confere uma consistência sinestésica à recordação, sugerindo, talvez, alguma lembrança do sabor da fruta, das texturas de suas fibras, da leveza de seu suco. O enquadramento aproximado convoca, em especial, o sentido do tato, conferindo uma densidade háptica às mãos e à boca em seus encontros múltiplos com a textura da fruta. Falando da mãe, sem falar à mãe, enquanto agora as mãos abrem e escavam minuciosamente um abacate, para não perder nenhuma carne da fruta, a voz apelará ainda ao sentido do olfato, referindo-se ao cheiro da pobreza como “algo decomposto” / “algo descompuesto”, “esquecimento” / “olvido”: “Cheira a fazer render as frutas, a roupa, a passagem.” / “Huele a rendir las frutas, la ropa, el pasaje.” É neste ponto que o som metálico do início do vídeo reaparece, assim que a voz enumera as inumeráveis estratégias que a pobreza exige para “rendir”, para fazer render com o pouco que se tem: “Cheira a fazer render o corpo. A fazer render a água que não basta. A pôr velinhas no banheiro. A legislar a luz. Minha família não cheira a livros, cheiramos a trabalho. A violência.” / “Huele a rendir el cuerpo. A rendir el agua que no llega. A poner velitas en el baño. A decretar la luz. Mi família no huele a libros, olemos a trabajo. A violencia.”

É talvez da possibilidade de fugir da pobreza que parte o vídeo de Wiki Pirela, inscrevendo sua cena múltipla sob a questão da possibilidade da fuga: “¿Huir?”. Mas para ela, como quem configura a dupla cena que abre o vídeo e como assinatura que ancora seu discurso, o que significa “fugir”, afinal? O que pode ser uma fuga quando o que está em jogo é a relação com a memória (da mãe, da casa, da infância etc.)? Se, no passado, foi preciso (aprender a) fazer render a fruta, para extrair toda a sua carne e, assim, fazer render também o corpo, em meio à pobreza, na enunciação videográfica em que o trabalho expressivo se desenrola o que se configura é uma articulação entre trabalho de memória e jogo de espelhos imaginativo, para fazer da memória da fruta um objeto de especulação, seja no sentido filosófico (especular como investigar, frequentemente de modo experimental e exploratório, sem ancoragem empírica, com ampla margem de abstração) ou no sentido econômico (especular como investir, frequentemente de modo a jogar com a incerteza do futuro, sem ancoragem no valor imediato ou direto do que é objeto da especulação). Nessa encruzilhada especulativa, a carne extraída da fruta se transforma, finalmente, em desperdício. Nesse movimento, a partir do que se entranha como memória do ensinamento materno, o que se insinua é um estranhamento em relação ao presente: “Minha mãe me ensinou a extrair toda a carne da fruta. E agora eu a desperdiço.” / “Mi mamá me enseñó a sacarle toda la carne a la fruta. Y ahora yo la desperdicio.” Da memória entranhada ao presente estranhado, na casa extranha que se encena desde o início como um espaço fragmentário, lacunar, atravessado por elipses, a especulação videográfica de Wiki Pirela se encerra com o fim da ligação telefônica.