Uma poética da delicadeza
O curta e o longa
Hoje eu quero voltar sozinho (2014), de Daniel Ribeiro, é um filme de longa-metragem baseado no curta Eu não quero voltar sozinho (2010), do mesmo diretor e roteirista, cujos 17 minutos você pode assistir acima. As mesmas personagens protagonizam as duas obras, mas entre suas narrativas não há qualquer sequência cronológica simples, nem algum tipo de complementaridade.
Cada filme explora de modo relativamente diferente a mesma narrativa básica sobre a descoberta do amor entre Leonardo (interpretado por Guilherme Lobo) e Gabriel (Fabio Audi). Ao retomar a narrativa do curta no longa, Daniel Ribeiro acrescenta personagens da família e da escola de Leo, aprofunda alguns aspectos muito rapidamente abordados no curta e se permite, essencialmente, reinventar vários elementos do filme anterior, como sugere o trailer do longa, que você pode assistir abaixo:
É como se o longa refizesse o curta, conferindo aos eventos narrados outra configuração dramática: o encontro e a amizade entre os garotos, na escola; a descoberta gradual do afeto e do amor, em meio às incertezas da adolescência; o desejo e o beijo, que se insinuam nos detalhes, transbordando-os ao se realizarem. De fato, tanto a trama – o modo de organização dos planos e das sequências na narrativa fílmica – quanto a fábula – a história composta imaginariamente pelo espectador a partir da experiência proporcionada pela trama – são diferentes entre o curta e o longa. Por exemplo: não apenas o beijo entre Leo e Gabriel é encenado de modo diferente, num momento diferente da narrativa, mas o modo como ocorre dentro da própria narrativa é também distinto – em suma, não é o mesmo beijo narrado de formas diferentes; são dois beijos diferentes.
Problemas de representação e políticas de identidade
Um dos temas comuns a ambos – a homossexualidade – é o que confere aos dois filmes parte de sua importância social, cultural e política. Num contexto em que o chamado “beijo gay” concentra grandes preocupações, projetadas nas narrativas de novelas de visibilidade nacional da televisão brasileira, associadas à reprodução da heteronormatividade dominante, a encenação dos beijos entre Leo e Gabriel se torna uma afirmação política contundente. Porém, a forma cinematográfica de representação da homossexualidade elaborada pelo diretor Daniel Ribeiro procura retirar do tema seu peso, sua espessura, sua gravidade. É com leveza e com delicadeza, sobretudo, que se constroem as tramas de ambos os filmes, como foi com sutileza, para alguns, que Abdellatif Kechiche procurou filmar Azul é a cor mais quente (2013).
Parte da delicadeza da direção de Daniel Ribeiro está associada ao fato de que não é em torno da homossexualidade que orbita o conflito dramático fundamental da narrativa, a saber, a busca de independência (explicitada na frase do título, Hoje eu quero voltar sozinho, que se refere ao fato de Leo costumar voltar da escola acompanhado pela amiga Giovana, interpretada por Tess Amorim). A busca de independência define as relações de Leo com sua família, com seus amigos e com o mundo, inclusive Gabriel. Efetivamente, é no fato de Leo ser cego que se concentram as apreensões de sua mãe (e em menor grau de seu pai), assim como a discriminação e o assédio de alguns de seus colegas de sala.
O fato de ser cego e de se descobrir gay dá a Leo uma posição singular, que permanece irredutível às políticas de identidade mais fechadas que caracterizam, frequentemente, os horizontes imaginativos dominantes diante de formas diversas de identidade. Leo não representa nem gays nem cegos, nele não se projetam transparentemente os anseios ou as ansiedades supostamente exclusivos de nenhuma dessas comunidades, definidas como minorias do ponto de vista socialmente dominante. Leo é duplamente minoritário em relação a seus colegas, mas não exclusiva ou unicamente minoritário, isto é, sua identidade não é a de uma só minoria social.
Por meio da marca minoritária dupla que se inscreve em Leo, o filme torna mais complexa a representação da classe média paulista que se dedica a construir. Ao narrar a classe média, o cinema brasileiro tende, em geral, a homogeneizar sua representação, a reproduzir um discurso de culpa diante do problema da desigualdade social e, sobretudo, a projetar uma atmosfera de inautenticidade sobre as personagens, suas ações e suas vidas, contrapostas (explícita ou implicitamente) à autenticidade dos mais pobres ou do “povo”. Em Eu não quero voltar sozinho e Hoje eu quero voltar sozinho, contudo, a classe média se revela relativamente heterogênea, as experiências das pessoas que a formam se mostram tão autênticas quanto quaisquer outras, e vários problemas cotidianos, ao mesmo tempo afetivos e existenciais, são explorados dramaticamente, com delicadeza e com paciência.
Sentidos, afetos e poética da delicadeza
Para a exploração dramática dos problemas cotidianos de adolescentes de classe média numa escola de São Paulo, os dois filmes de Daniel Ribeiro utilizam, abundantemente, a trilha sonora musical. Sobretudo no filme de 2014, as músicas pertencem ao espaço ficcional (à diegese) e projetam-se na construção da trama. Quando Belle & Sebastian aparecem em Hoje eu quero voltar sozinho, por exemplo, desempenham o papel de marcador simbólico na trama – é uma música deles que Gabriel apresenta a Leo a certa altura e que, a partir daí, delimitará o movimento de aproximação amorosa entre os dois (que passa, belamente, pela dança) – e de elemento de condensação dos estímulos sensoriais destinados aos espectadores – é por meio da música, e dessa música de Belle & Sebastian em especial, que o filme procura tocar os espectadores, conduzir suas emoções e fabricar seus afetos diante da narrativa.
A delicadeza e a paciência são mais evidentes no longa do que no curta, uma vez que a maior duração permite ampliar as instâncias e os sentidos da exploração dramática dos problemas cotidianos dos protagonistas adolescentes. Um exemplo significativo é o plano da entrada em cena de Gabriel, em que a oscilação do foco da imagem permite comunicar os sentidos do evento por meio da dimensão sensorial da narração cinematográfica. Nesse plano, cada espectador experimenta, temporariamente, a posição de Leo: primeiro ouvimos a voz de Gabriel, quando este abre a porta da sala e se apresenta, para apenas depois podermos ver e reconhecer seus traços, sua figura, seu corpo, enquanto entra na sala de aula e se dirige até a carteira atrás de Leo.
A certa altura, quando os dois garotos decidem ir ao cinema, o filme alcança uma interessante articulação metalinguística de sua narrativa. Gabriel narra verbalmente o que se passa visualmente na tela, para que Leo possa acompanhar o filme que assistem. Como espectadores, assistimos os dois, em meio às poltronas da sala de cinema, sem jamais experimentarmos o filme que veem como Gabriel, que pode ver o que se passa na tela. Ao assumir uma posição parcialmente análoga à de Leo, somos conduzidos a refazer nossa experiência do cinema, também diante de Hoje eu quero voltar sozinho, como uma experiência menos visual, mais auditiva e, em todo caso, mais aberta a outros sentidos.
Por meio dessa abertura a outros sentidos, sugerida sobretudo pelo longa, a experiência do cinema se mostra tão dramática quanto afetiva. A descoberta do afeto, na amizade e no amor, entre adolescentes de classe média, é ao mesmo tempo o assunto dramático dos filmes e o fundamento sensível da relação que a narração pretende estabelecer com os espectadores. Se os dois filmes podem ser entendidos como explorações dramáticas do afeto, seus efeitos nos espectadores decorrem das formas que articulam para a exploração afetiva do drama, do melodrama de formação em que consiste a narrativa. O que se delimita, entre as formas de exploração afetiva do drama articuladas por Eu não quero voltar sozinho e, sobretudo, por Hoje eu quero voltar sozinho é uma poética da delicadeza.