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II Fronteira, dia 5: de Les éclats a I comme Iran

Do quinto dia do Fronteira, comento filmes tão diversos quanto bonitos, em torno dos quais não consigo dizer muito mais do que: “Obrigado”.

O quinto dia da segunda edição do Fronteira encerrou a retrospectiva dos filmes de Sylvain George com uma obra impressionante e deu início às mostras competitivas de longas e de curtas.

Les éclats (ma gueule, ma revolte, mon nom) dá continuidade ao primeiro filme de Sylvain George, Qu’ils reposent en révolte. Seu tema central – as condições em que vivem (e morrem) os imigrantes que passam pela cidade de Calais, no norte da França, em direção ao Reino Unido – aparece novamente por meio de uma montagem que não pretende esgotar seus sentidos, nem se apropriar de seu conteúdo como uma série de figuras num discurso político previamente estabelecido. Eis onde reside grande parte da força dos filmes de George: uma paciência em meio ao urgência, um trabalho cuidadoso do fragmento no cerne da experiência avassaladora da captura total da vida por dispositivos de controle.

Mais do que eu possa me reconhecer (2014), de Allan Ribeiro, é ao mesmo tempo um filme sobre o tempo e sobre a amizade, sobre a arte, sobre um artista singular e seu lugar no mundo e sobre como as imagens registram alguns traços da vida. A sequência inicial, em que vemos, por meio de imagens registradas pela câmera de Allan, o artista Darel Valença Lins e sua exploração das possibilidades de uma câmera de vídeo digital. Vemos também algumas imagens filmadas por Darel, nas quais Allan e Douglas Soares aparecem de passagem, mas sua visibilidade pertence ao interior dos planos filmados por Allan, que buscam no viewfinder da câmera de Darel seu olhar aparelhado, até que o artista decide simplesmente apagar o que acabara de registrar. Dessa forma, as imagens de Darel se perdem poucos instantes depois de terem sido registradas, e o que resta é apenas uma visão secundária e bastante precária – a imagem dentro da imagem, o vídeo dentro do vídeo. Em meio à amizade que se insinua desde o início como o fundamento da relação entre Allan e Darel, a perda das imagens introduz o problema do tempo, de sua passagem irreversível e de sua memória possível, que se desdobra, no restante do filme, em outras “cenas”.

Darel é um artista visual, cujas pinturas e gravuras aparecem no filme ao lado de trechos de suas experiências artísticas com o vídeo, que consistem, basicamente, na exploração das possibilidades de encadeamento entre diferentes planos (por meio do uso de um gravador de DVD como equipamento de edição, o que implica uma perda de qualidade das imagens, cuja alta resolução original se perde como se perderam aquelas imagens da sequência inicial) e de combinação entre imagens e músicas. A escolha de se apropriar das músicas clássicas utilizadas por Darel em suas obras de videoarte para construir o filme e seu andamento cuidadoso deu a Ribeiro um importante recurso de fabulação, isto é, de construção de narrativa, por um lado, mas também, de modo mais importante, de fabricação e de invenção de sentidos.

Quando decide apresentar a sequência final do filme ao som de uma música estrangeira ao repertório de Darel, Ribeiro intensifica a um extremo de imensa beleza esse princípio de fabulação que habita a montagem de seu filme. O ápice dessa intensificação talvez seja o plano em que vemos Darel filmando a si mesmo enquanto filma, numa das tantas derivas especulares que ele gosta de explorar, e é como se a câmera de Allan estivesse diante dele, quando, de fato, Darel está sozinho durante toda a sequência (que extrapola o espaço da casa em que o filme permanece na maior parte do tempo e mostra um passeio de carro pelas ruas da cidade). Aqui, a montagem insinua – seria mais preciso dizer: fabula – uma espécie de falso raccord entre as duas instâncias de imaginação que conversam durante todo o filme, Allan e Darel. Na falsidade desse raccord reside grande parte do jogo de Mais do que eu possa me reconhecer, que também está presente no título: para dizê-lo de modo apressado, um jogo de transbordamento dos espelhos no excesso das imagens de vídeo.

Depois da projeção do filme, o diretor participou de uma ótima conversa com o público, mediada pelo Ewerton Belico. Ouve aí que vale muito a pena:

Depois do debate, fora da sala, em meio aos movimentos do público do Cine Ouro, não consegui dizer muita coisa sobre o filme pro Allan, a quem simplesmente agradeci. Reitero o agradecimento: não quero parabenizar você pelo filme que fez, nem simplesmente dizer que é um bom filme, que essa ou aquela característica dão a ele uma rara qualidade, pois tudo isso seria insuficiente; eu digo obrigado como quem reconhece que, afinal, alguns filmes são presentes para seus espectadores, e não há retorno possível a esse pequeno dom. Resta apenas gratidão, e é essa mesma gratidão que sinto diante de cada um dos filmes sobre os quais escrevo aqui.

Occidente (2014), de Ana Vaz, e I comme Iran (2014), de Sanaz Azari, se destacaram, para mim, na primeira sessão da competitiva de curtas. Espero poder rever cada um deles, para que consiga escrever algo mais do que algumas impressões desmemoriadas muito improvisadas. Seja como for, me parece que Occidente consegue condensar, em suas imagens e em sua montagem hipnótica, uma interrogação contundente da história do colonialismo e de sua memória persistente em tempos que, com pressa, já foram chamados de “pós-coloniais”. Não consigo encontrar outro nome para a montagem do filme de Ana, mas é bom explicar que, se há hipnose na relação que o filme constrói com o espectador, é talvez a hipnose dos clarões em que se pode entrever, em meio às descontinuidades da história, as linhas embaralhadas dos tempos (há um sentido anacrônico aí), uma hipnose que revela, em vez de iludir, ou que revela por meio de uma espécie de ilusão crítica. (Como disse, preciso rever o filme, porque isso aí talvez não passe de uma sequência de impressões muito vagamente expressas em palavras.)

I comme Iran revela os sentidos políticos do aprendizado de uma língua: em Bruxelas, a diretora Sanaz Azari tem aulas de persa com Behrouz Majidi, com base em um livro escolar que expressa a ideologia da Revolução Iraniana que derrubou o Xá Reza Pahlavi, em fevereiro de 1979, quando o Aiatolá Khomeini assume o poder e instaura um regime teocrático de orientação islâmica no país. Se o fundamento do filme é uma cuidadosa mise en scène da sala de aula, das palavras e de sua escrita, das imagens que habitam as páginas do livro, o didatismo que Azari confere ao andamento da trama fílmica funciona como uma espécie de ilusão destinada a capturar a atenção do espectador, de modo a introduzir informações cruciais e, ao mesmo tempo, lampejos poéticos cuja beleza resguarda uma grande inquietação política. A introdução de imagens de arquivo permite que o filme extrapole o contexto da sala de aula, num movimento que já está insinuado nas conversas da diretora com seu professor e nos lampejos poéticos diante das imagens do livro. O trabalho de montagem que entrelaça todos esses elementos me parece ser comparável a um trabalho de tecelagem (e espero rever o filme para tentar compreender melhor o cuidadoso tecido que daí decorre).