No oitavo dia do II Fronteira, escolhi destacar um percurso composto por figuras diversas (talvez incomensuráveis) da experiência asiática. Há a Tailândia conturbada que se adivinha em Night Watch,a exuberância lírica da pobreza de Manila em Ruined Heart e, finalmente, o sopro do Livro dos Mortos do Tibet nas meditações plásticas de Quick Billy em torno da vida e da morte.
Night Watch (2014), de Danaya Chulphuthiphong, de que seria preciso acompanhar o ritmo intenso com mais atenção, evidencia as possibilidades e os limites do documentário experimental como forma de testemunho da história. Conforme uma linhagem que se pode reconhecer no movimento descontínuo que liga o humanismo revolucionário de Vertov ao cosmopolitismo do último Godard, em Nigth Watch, a pulsação da montagem procura assimilar o ritmo do mundo e a duração entrecortada dos eventos históricos. Aqui, especificamente, trata-se de um golpe de estado e da efervescência que o acompanha, visível nas ruas, nos movimentos das pessoas, nas imagens da televisão.
Ruined Heart: Another Lovestory Between a Criminal and a Whore (2014) é mais uma das rapsódias filipinas de Khavn (cuja assinatura propõe um jogo similar ao do cachimbo de Magritte: “This is not a film by Khavn”). As paisagens de Manila se sucedem numa série de cenas musicais, quase sem diálogo. A fotografia é assinada por Christopher Doyle, bastante conhecido pela exuberante serenidade dos planos de Amor à flor da pele, de Wong Kar-Wai. De modo talvez inusitado, Doyle explora com frequência a inconstância e a aparência de precariedade da câmera na mão, enquanto a construção das cenas evidencia a intimidade lírica e corrosiva que é característica da relação de Khavn com a pobreza, a violência e as ruínas.
Ao mesmo tempo, há uma diferença significativa nesse filme. Trabalhar com atores profissionais de outros países (o japonês Tadanobu Asano no papel do criminoso do título, a mexicana Nathalia Acevedo no papel da prostituta) conduziu Khavn a explorar, de modo enfático, seus protagonistas, destacando seus corpos na encenação (junto com alguns outros atores), em meio aos figurantes. Em outros de seus filmes, há uma redução dessa distância entre protagonistas e figurantes ao ponto de anular seus efeitos e de converter todo corpo encenado em corpo figurante, isto é, em elemento da paisagem artística que Khavn compõe, a cada vez, com uma mistura paradoxal de irreverência e delicadeza. Aqui, a distância se preserva, embora a economia das relações entre protagonistas e figurantes não seja convencional, como demonstram sequências tão diversas quanto a da orgia, a do passeio no parque ou a da brincadeira com crianças.
A apresentação inicial das personagens confere um sentido típico a sua atuação, enquanto o desenvolvimento da trama assume um sentido perturbador. Se, por um lado, o sentido típico das atuações corresponde à inscrição do filme em relação a uma tradição de “histórias de amor entre um criminoso e uma prostituta”, como diz o título, por outro lado a aparente repetição do mesmo (“another lovestory…”) envolve, igualmente, uma série de elementos estranhos, que impedem a plena identificação da trama às estruturas de roteiro que o título sugere ou mesmo àquelas a que o gênero musical está associado. Os elementos estranhos orquestrados por Khavn para dar à mesma história uma configuração diferente são diversos: da poesia das palavras do belíssimo verso “Eu sou o poema do mundo”, “I am the world poem”, ao gesto contemplativo que instaura intervalos de poesia visual e interrompe o andamento comunicativo da narrativa (como na dança da prostituta no interior do ônibus em que ela e o criminoso tentam escapar juntos). O que os reúne me parece ser um gosto pelo excesso, uma espécie de sensibilidade barroca terceiro-mundista que se entrega tanto à composição de um retrato da crueldade da existência quanto à exploração de um lirismo da vida frágil que resiste, apesar de tudo, no coração do mundo.
Quick Billy (1971), de Bruce Baillie, me parece tão difícil de abordar – porque tão delicado e ao mesmo tempo avassalador em seu fluxo de imagens, em sua poesia visual, em sua força meditativa – quanto um poema escrito numa língua estrangeira de que conheço apenas algumas palavras. Ao mesmo tempo, o conteúdo do poema é evidentemente pessoal, íntimo e denso, o que dificulta ainda mais a comunicação de sua experiência, sua tradução em outras formas ou palavras.
O sentido autobiográfico das imagens, que alcança sua expressão mais contundente na intimidade da representação do prazer sexual, decorre do contexto em que Bruce Baillie as criou, alguns meses depois de ser diagnosticado com hepatite. É de sua relação com a morte que as imagens retiram parte de sua beleza, assim como de seu encontro com o Livro dos Mortos do Tibet, o Bardo Thodol (Patrícia Mourão falou sobre esses e outros elementos autobiográficos do filme no debate que sucedeu a sessão; recomendo também a leitura dessa breve entrevista). O rolo final, no qual se encena uma espécie de faroeste, conforme uma língua menos estrangeira para quem pensa no cinema como drama, parece dar a alguns dos motivos explorados nos rolos anteriores uma forma narrativa: a relação fugaz entre corpo e alma, a morte como passagem etc.
De fato, se o cinema é a língua escrita da realidade, como argumenta Pier Paolo Pasolini, e sua unidade básica de significação é o plano (que é composto por ‘cinemas’, isto é, por objetos do mundo, como as palavras da língua são feitas de ‘fonemas’, suas unidades básicas de articulação), Quick Billy explora as possibilidades da invenção da língua do cinema (isto é, da poesia, do cinema de poesia). Se entendemos o cinema como língua escrita da realidade, inventar uma língua equivale a rarefazer a realidade, a interromper ou a perturbar sua inscrição referencial e indiciária, sem que com isso se procure estabelecer ou restabelecer a segurança de uma semelhança icônica ou a solidez de uma convenção simbólica.
Em Quick Billy, a poesia equivale uma busca da sobrevida nas imagens, contra as diversas formas de morte que as habitam, seja em sua dimensão indiciária (a imagem como rastro do que se perdeu irremediavelmente), em sua dimensão icônica (a imagem como máscara que preserva a semelhança do que desapareceu) ou em sua dimensão simbólica (a imagem como signo convencional cujo caráter genérico corresponde ao apagamento irreversível de alguma singularidade). Na sobrevida que se busca nas imagens, Baillie encontra, igualmente, a sua sobrevida.