Categorias
Críticas

II Fronteira, dia 9: Mass for the Dakota Sioux e Harmonica

O nono dia do II Fronteira incluiu um dos melhores filmes de Bruce Baillie e uma incrível projeção ao ar livre de filmes da Canyon Cinema, entre tantas coisas que deixo pra depois.

Do nono dia do II Fronteira, talvez seja possível retirar o reconhecimento da diversidade de possibilidades da experiência cinematográfica, que o festival procura explorar com a curadoria ao mesmo tempo cuidadosa e ousada de cada uma de suas mostras. Ver Bruce Baillie em 16mm foi fabuloso, mas o momento mais impressionante do dia foi, sem dúvida, o da projeção ao ar livre de outros filmes da Canyon Cinema, também em 16mm, no Beco da Codorna.

Mass for the Dakota Sioux (1964), de Bruce Baillie, surge como uma alegoria da condição dos Sioux Dakota e, metonimicamente, dos povos indígenas em geral, nos Estados Unidos. Na sequência inicial, o som de aplausos se prolonga do plano de mãos que o motiva a um plano em que, por meio de um movimento para a frente, a câmera registra um corpo que tenta se levantar, aproximando-se de sua mão esquerda. Entretanto, o sentido alegórico que se insinua entre essas imagens permanece impreciso, indeterminado, opaco, embora provavelmente ligado a alguma ideia de desaparição ou de morte iminente.

Gradualmente, o restante do filme responde à opacidade do sentido alegórico da sequência inicial com o recurso estético da transparência – que caracteriza parte significativa da montagem dos planos de paisagens urbanas e industriais, de fábricas e de chaminés, de carros e de multidões, de trens e de prédios, de helicópteros e de estradas, de rostos e de casas, de cercas de arame farpado e de bandeiras nacionais, de monumentos e de desfiles militares. A transparência que torna possível as sobreposições não contradiz, contudo, a opacidade da alegoria que se insinua na sequência inicial, mas a desdobra e a aprofunda.

A sobreposição e o encadeamento das imagens filmadas por Baillie (que incluem imagens de imagens, isto é, registros de atualidades cinematográficas sobre políticos e guerras, assim como de peças de publicidade, por exemplo) tornam possível entrever o tema da diferença cultural (o primitivo, o selvagem, a alteridade) em desaparição, que se pode associar à alegoria de morte iminente da sequência inicial e ao sentido de perda que decorre da reivindicação da forma cultural da missa (um verdadeiro réquiem) e do uso de canto gregoriano na trilha sonora. O corpo reaparece no final, cercado pelas luzes da cidade, de seus carros, de suas mercadorias (uma loja de licores) e de seus espetáculos (a fachada de um teatro da Broadway), sob os olhares indiferentes ou apreensivos dos passantes, até que alguém se ajoelha ao seu lado e o recobre com um lençol, como um manto mortuário.

O cadáver é finalmente levado pelo que parecem ser dois enfermeiros (por seus jalecos brancos), e a vida segue seu curso. Os indícios dessa continuidade ultrajante aparecem nas conversas (de que não ouvimos qualquer som), no movimento das pessoas e dos carros (de que adivinhamos o caráter incessante e transbordante), nos gestos de comer e de beber, em restaurantes, nas ruas ou diante da televisão (dos quais a montagem descontínua oferece uma coleção inicial). O réquiem se completa com lirismo, enquanto as sobreposições entrelaçam paisagens de praia e do mar com figuras humanas mais ou menos próximas da câmera. A alegoria permanece opaca, em grande medida, em seus significados, mas talvez seja preciso reconhecer, em seu cerne, a busca de uma espécie de sobrevivência cinematográfica dos desaparecidos. Essa sobrevivência se revela, por exemplo, na experiência selvagem de filmagem e de montagem a que Baillie se dedica, assim como no sentido de primitividade de que estão investidas suas imagens e na alteridade irredutível que corresponde à opacidade da alegoria contida em Mass for the Dakota Sioux.

Uma bela fotografia de Michelle Barzotto que registra a beleza da projeção dos filmes da Canyon Cinema ao ar livre, no Beco da Codorna.

Harmonica (1971), de Larry Gottheim, foi um dos filmes projetados no Beco da Codorna, e foi durante sua exibição que o maravilhamento diante dessa experiência alcançou sua forma mais delicada e intensa, ao mesmo tempo. Todos os filmes que puderam ser exibidos ali foram atravessados pela atmosfera da projeção ao ar livre, e sua luminosidade conviveu com a lua que iluminava o céu. De certa forma, assim como a lua refletia sobre a noite de Goiânia a luz de um sol que já tinha se posto, a tela que se abria no Beco da Codorna refletia a luz vagaluminosa do projetor de 16mm (e da musicalidade do som que ele emite) sobre nossa noite – a noite de nossos olhos, nossa música. (Afinal, “o princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para nossa noite”, como diz Godard.)

Enquanto o jogo de luzes e sombras, de vagalumes e de sonoridades, estendia sobre a noite uma beleza singular, um suave vento soprava entre nós, e foi esse vento, essa brisa, que deu à projeção de Harmonica uma aura singular. O plano-sequência em que vemos um amigo de Larry Gottheim tocando uma gaita no banco de trás de um carro em movimento, durante cerca de 10 minutos, tornou-se, ao menos para mim, o que Benjamin define como a “aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”, na medida em que eu percebia e delirava, ao mesmo tempo, um jogo especular entre o vento que o amigo de Gottheim convoca para tocar junto com ele sua gaita, estendendo seu braço para fora da janela do carro, e o vento que atravessava o Beco da Codorna, refrescando o dia quente de Goiânia e agitando com pequenas ondas a superfície da tela em que víamos Harmonica.