Guerra ou paz (2012), de Rui Simões, que abriu o I Fronteira, apresenta uma contundente reflexão sobre a guerra, sobre sua memória partilhada e sobre seus efeitos perturbadores. Sua motivação pessoal e seu sentido autobiográfico conferem ao filme seu impulso interrogativo, que às vezes se perde, contudo, devido à duração de certos depoimentos, enquanto a diversidade estilística que caracteriza o filme é capaz de sustentar a atenção espectatorial durante seu desenrolar.
Se o “coração das trevas” de que fala Joseph Conrad em seu famoso romance não deixou de existir, como diz uma das últimas vozes que soa no documentário produzido pela Real Ficção, fundada por Simões em 1986, e a guerra não é o estado de exceção, mas a regra, aquilo que parece ser normal, conhecer um de seus momentos mais dramáticos é fundamental para quem quer que deseje compreender o presente. Guerra ou paz participa do campo diversificado de formas de abordagem cinematográfica da guerra, especificamente da guerra colonial do regime fascista de António de Oliveira Salazar e, depois de 1968, de Marcello Caetano contra os povos das colônias portuguesas na África, que buscavam sua independência política, no contexto mais amplo dos movimentos de descolonização. A singularidade da abordagem de Simões decorre do grupo em que se concentra: desertores e refratários da guerra colonial portuguesa, isto é, aqueles que, efetivamente, afastaram-se da guerra, tentando escapar de seu agourento alcance.
O próprio diretor pertence a essa coletividade heterogênea, cujos depoimentos se entrelaçam, no filme, a imagens de arquivo dos desfiles do regime salazarista, de operações militares e dos locais envolvidos nos conflitos, mesmo que distantes entre si. Efetivamente, as imagens de arquivo – retiradas do primeiro documentário de Simões, Deus, Pátria, Autoridade (1976), e de O Salto (Le Saut, 1967), de Christian de Chalonge – ajuda a criar um lugar comum para os depoimentos, um espaço onde, no ritmo de uma montagem irregular, suas diferenças são reunidas pelo fio da memória coletiva. De fato, o filme mostra que a memória da guerra é também a memória daqueles que a recusam, que desafiam sua necessidade, que questionam sua legitimidade. É a essa memória menor da guerra que o filme dedica um estilo de abordagem documentária predominantemente convencional, mas aberto à invenção.
Uma das mais impactantes características do estilo de Guerra ou paz é seu uso sutil do que pode ser considerado um procedimento caracteristicamente experimental: a distorção de elementos sonoros. Para comunicar a natureza destruidora da guerra e a ideia de que a reivindicação de territórios africanos pelo regime fascista português é insustentável, Simões distorce o slogan colonial frequentemente repetido: “Angola é nossa!”. Enquanto as convenções ficcionais dominantes do estilo do filme narrativo incluem o uso de distorções visuais e sonoras para representar condições subjetivas, como o estado mental alterado de um personagem, o uso desse recurso expressivo para comunicar ideias permanece raro, se muito, no cinema documentário. Guerra ou paz coloca a distorção para funcionar como um instrumento conceitual, cujo significado suplementa a encenação mais convencional dos depoimentos como entrevistas.
O estilo documentário convencional não é um problema em si, especialmente se consideramos sua relação, dentro da construção formal do filme, com outros recursos expressivos. Ao alternar entre modos comuns de encenar entrevistas – quando os personagens são enquadrados principalmente em planos médios, e a câmera ocasionalmente se aproxima até um close up dos rostos e expressões – e formas menos comuns de comunicar ideias – a já mencionada distorção do slogan colonial ou o uso da animação para investir desenhos com diferentes significados – Rui Simões é capaz de manter a atenção do espectador na densa tecelagem de histórias do filme.
As histórias pessoais daqueles que fugiram de Portugal e de sua guerra colonial revelam uma parte menos conhecida do passado recente do pais, mas também se tornam uma forma de interrogar seu presente. Os movimentos de descolonização das décadas de 1960 e 1970 foram cruciais para a queda do regime fascista que governou Portugal e suas colônias africanas de 1933 a 1974. As histórias que compõem Guerra ou paz entrelaçam diferentes espaços sociais e locais culturais, às vezes codificando-os por meio do vocabulário da afiliação política institucional (fascismo, comunismo, partidos etc.), às vezes atribuindo a eles algum tipo de significado afetivo. Colonialismo, racismo, miscigenação e identidade cultural e nacional são alguns dos complexos temas que atravessam os depoimentos, cujo tecido permanece constituído por fundamentos afetivos e emocionais.
Enquanto vemos casos de famílias que se dividiram e se refizeram devido ao movimento de alguns de seus membros através de fronteiras nacionais, e amizades que se perderam ou que nasceram devido ao desterro, assim como novos mundos afetivos que foram inventados por causa da necessidade de viver além da guerra, o filme cria um retrato das transformações políticas que conduziram às promessas do retorno, quando voltar a Portugal depois do 25 de abril pareceria colocar um termo à aventura perversa do exílio. Mas assim como não há termo para o coração das trevas e para a guerra, não há termo para a luta por uma vida melhor. Guerra ou paz é também uma interrogação ambivalente, embora sugestiva, do presente. Quando uma de suas personagens, Myriam Zaluar, nascida no exílio depois que seu pai e sua mãe se conheceram na França, na década de 1960, lê uma carta endereçada ao Primeiro Ministro português, Pedro Passos Coelho, ela contundentemente recorda o itinerário dos pais, enquanto se recusa a repetir a experiência do exílio nos dias de hoje. Talvez, contudo, o exílio seja uma condição permanente dos menos privilegiados, especialmente na atual crise global. Mas a casa, alguma casa, pode ser encontrada em lugares inesperados, como muitos dos entrevistados descobriram. De fato, Guerra ou paz parece sugerir, em alguns momentos, que o cinema guarda uma singular potência de criar mundos em que é possível viver, finalmente, em casa.