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Isto não é um filme (2011), de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb

Como uma afirmação política que não depende da representação direta e explícita de todos os seus sentidos, Isto não é um filme impõe um dever de imaginação ao espectador.

A imaginação do mundo

Isto não é um filme como cinema político

Isto não é um filme é cinema político: não há verdade mais evidente e, ao mesmo tempo, mais enganadora sobre as imagens que Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb registraram e editaram, e que foram contrabandeadas como se fossem um filme, para serem exibidas em festivais de cinema realizados fora do Irã, em 2011, escapando da censura imposta pelas cortes do país a Panahi.

Parte significativa da visibilidade concedida à obra decorre de sua inegável importância política, associada à defesa de direitos civis básicos no contexto do regime repressivo da República Islâmica. De fato, nenhuma interpretação de Isto não é um filme pode se desfazer facilmente de alguma referência à situação em que se encontra Panahi. Em 2010, sob a acusação de fazer propaganda contra o regime, o diretor foi condenado a 6 anos de prisão (os quais cumpre em regime domiciliar), além de ter sido proibido de fazer filmes, de escrever roteiros, de deixar o país e de conceder declarações à mídia por 20 anos.

As imagens mostram Panahi em seu apartamento em Teerã – enquanto come, fala ao telefone com amigos ou com sua advogada, encena um roteiro não autorizado pelos censores iranianos, navega na internet, alimenta a iguana de sua filha, observa a cidade pela janela ou entre os vasos de plantas da varanda. Dizer que constituem uma forma de cinema político é reconhecer uma verdade que os créditos finais convertem em evidência definitiva: Isto não é um filme é um manifesto em defesa da liberdade de expressão. Suas imagens representam a situação específica de Jafar Panahi, literalmente, e o contexto problemático dos direitos humanos no Irã, alegoricamente. O movimento entre a singularidade da situação do cineasta e a generalidade das violações a que está associada, entre o indivíduo e a coletividade, define o horizonte político do cinema como um problema de representação (e de censura à representação).

O que há de enganoso na classificação das imagens de Isto não é um filme como cinema político decorre, efetivamente, de sua insuficiência como representação, da insatisfação que as atravessa, da abertura insaciável que as movimenta. Uma câmera registra o dia de Panahi antes da chegada de Mirtahmasb, que assume o controle do aparelho e desempenha, então, o papel de diretor e cinegrafista.

Pouco antes de Mirtahmasb deixar o apartamento, ele diz a Panahi que deve continuar filmando, que é preciso documentar seus dias, mesmo que seja com as imagens precárias do telefone celular. “O importante é que as câmeras permaneçam ligadas”, afirma Mirtahmasb, que mais tarde acrescenta: “Acho que o importante é documentar”.

É como se o arquivo dos dias pudesse fazer frente às razões de Estado – as imagens do cotidiano contra a narrativa oficial da censura, a pulsão anarquívica contra o arquivo fechado do poder. Diante do mundo, Isto não é um filme permanece insaciável, como se fosse preciso buscar sempre mais imagens, mais representações, justamente quando o contato com o mundo se torna mais difícil.

O mundo lá fora

Interditado a Panahi pela sentença de 2010, o contato com o mundo se torna o principal problema e o motivo mais recorrente de Isto não é um filme – o que me parece justificar a referência do título à pintura “La trahison des images”, que consagrou, sob a assinatura de René Magritte, em 1928-29, a frase “Ceci n’est pas une pipe”, “Isto não é um cachimbo”, como emblema da crítica da representação.

O telefone celular, a televisão e o computador com acesso à internet são os principais instrumentos que Panahi utiliza para ultrapassar as fronteiras do espaço doméstico em que permanece confinado. É por meio desses aparelhos que se desdobra a relação entre o interior do apartamento, em que a câmera e o cineasta permanecem presos, e o exterior das ruas, que se insinua sobretudo por meio de sons que preenchem a paisagem urbana, ao lado das notícias sobre a família de Panahi, que permanecerá até mais tarde fora de casa para evitar a confusão associada às festividades de fogos, Chahārshanbe Suri (que antecedem o ano novo persa, Nowruz), nas quais a polícia frequentemente atua para reprimir a população e suas comemorações.

Se a prisão domiciliar documentada pelas imagens é, igualmente, uma alegoria da censura como tentativa de restrição governamental das formas de contato com o mundo, os aparelhos intervêm na lacuna produzida pela censura, para fazer com que Isto não é um filme possa se inscrever num devir-filme.

Para sair do espaço de seu apartamento, Panahi faz uso dos aparelhos e das formas de relação com a alteridade do mundo que cada aparelho configura. Nesse contexto, são as câmeras e as telas que assumem o papel mais crucial de intensificação da pulsão anarquívica e que conferem às imagens documentais uma dimensão ficcional fundamental.

Em primeiro lugar, diante da câmera de Mirtahmasb, Panahi narra, comenta e encena parte de um roteiro não autorizado, sobre uma garota chamada Maryam, que foi admitida na universidade para estudar artes, mas é proibida por seus pais, que a trancam em casa e partem em viagem.

Em segundo lugar, na sua relação com a tela da televisão em que mostra trechos de seus filmes, Panahi discute o que está em jogo na criação cinematográfica e na relação entre a virtualidade prevista do roteiro e a atualidade imprevisível das filmagens, isto é, entre a rigidez do conceito e a fluidez da realidade.

A potência política das imagens da encenação e dos comentários de Panahi sobre seus filmes decorre do agenciamento da imaginação espectatorial. Nesse sentido, Isto não é um filme impõe um dever a cada espectador: o dever de imaginar, a partir das imagens e das palavras de Panahi em seu apartamento, o dever de, por meio da imaginação, desvelar o devir-filme das imagens, transformar sua sucessão no filme que elas podem apenas insinuar, sem realizar por completo, enfim, fazer o filme que Panahi pode apenas contar, em seu desconsolo.

Eis a potência política da imaginação, que desloca o privilégio da representação, que se instala na dimensão ficcional das imagens documentais e que perturba a inserção de Isto não é um filme na tradição do cinema político, entendida usualmente como uma tradição de representação da política por meio do cinema. Se há cinema político nas imagens assinadas por Panahi e MIrtahmasb, sua força não decorre da mera representação de temas políticos, mas da interrogação de suas próprias possibilidades.

O fogo das ruas

O dever imaginativo de desfazer o título Isto não é um filme – de recuperar, na crítica da representação, a potência política da imaginação – se torna quase insustentável diante do plano final, em que Panahi filma Hassan, o “irmão de Nasrin, cunhado de Akbar, o zelador”, primeiro com seu telefone celular, depois com sua câmera digital de melhor resolução. Hassan chega ao andar do apartamento de Panahi, para buscar o lixo, no momento em que Mirtahmasb está de saída.

O jovem está substituindo Akbar, pois Nasrin está prestes a dar à luz e ambos foram para Isfahan, onde querem que seu filho nasça. Hassan conversa com Panahi, que pergunta a ele qual é sua ocupação. Ao responder que estuda artes na universidade, Hassan parece despertar a curiosidade de Panahi, ecoando a figura de Maryam, protagonista do roteiro encenado anteriormente. Com a câmera nas mãos, Panahi finalmente sai de seu apartamento e acompanha Hassan no elevador, recolhendo o lixo de cada andar, até chegar embaixo para levar o lixo para fora do prédio.

Nas ruas, que antes apenas se insinuavam por meio de sons e nas notícias recebidas pelo telefone, pode-se vislumbrar o fogo avermelhado de uma festa que permanecerá distante da câmera. Antes de atravessar o portão do prédio e desaparecer lá fora, Hassan diz: “Sr. Panahi, por favor, não saia. Eles o verão com a câmera.” Panahi permanece com a câmera no interior do prédio, aquém do portão, registrando o fogo das ruas, ingovernável, como um espelho em que se reconhece, inquieta, a potência política da imaginação.