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Jogos de espelhos e de ecos

Este texto foi publicado originalmente no catálogo da quarta edição da Mostra de Cinemas Africanos, que ocorreu de 10 a 17/07/2019, no CineSesc São Paulo. A imagem destacada acima é do filme Nora (2008), de Alla Kovgan e David Hinton.

A força formativa e transformativa do documentário diante do mundo histórico que compartilhamos define um modo cinematográfico que abriga diferentes possibilidades de construção da experiência do cinema. Na amostragem contida nesta Mostra de Cinemas Africanos, encontramos documentários que articulam abordagens biográficas, derivas autobiográficas, estudos observativos de espaços sociais e políticos, percursos analíticos por espaços afetivos e psíquicos. A amostragem é diversa e irredutível a generalizações homogeneizantes, embora atravessada por recorrências, evidenciando a efervescência do documentário em diferentes paisagens das africanidades no mundo contemporâneo.

Koka, o Açougueiro (2018), do húngaro Bence Máté, se passa no bairro de Manshiyat Naser, conhecido como “cidade de lixo”, na região metropolitana de Cairo, no Egito. Habitado predominantemente por cristãos coptas, o bairro abriga uma espécie de tradição que o filme registra e encena, mesmo que provavelmente de modo simplificado: combates entre homens do bairro, por meio de pombos. Os animais, que vivem em torres construídas por seus donos, são marcados com carimbos de identificação; em cada combate, os adversários os soltam em uma das ruas do bairro, retornando às suas respectivas torres para aguardar o retorno; quem tiver o maior número de animais com seu próprio carimbo de identificação vence o combate. No filme, depoimentos e conversas delimitam o espaço do jogo em que Koka, um dos praticantes dos combates de pombos, emerge como protagonista. Ao revelar o espaço social da “cidade de lixo”, o filme de Máté evita reiterar o peso da pobreza, desenvolve uma abordagem ágil do jogo e busca conferir a seus personagens o reconhecimento de um olhar curioso – que, contudo, em alguns momentos parece se reduzir a um vetor de exotização de suas existências. Na exotização, o filme talvez revele a presença de um espelho incontornável para o olhar espectatorial, que deve confrontar sua própria tendência de exotizar.

Quando Eli Jacobs-Fantauzzi acompanha DJ Jigüe (Isnay Rodriguez Agramonte) em um retorno à cidade natal do músico, Santiago de Cuba, a abordagem ágil do espaço social dessa e de outras cidades (da capital Havana até Palma Soriano) confere ao filme Bakosó: Afrobeats de Cuba (2019) uma estética similar à dos videoclipes musicais do gênero bakosó, uma espécie de versão cubano-caribenha do afrobeat, associado à figura do nigeriano Fela Kuti. DJ Jigüe guia a travessia fílmica pelo universo musical diaspórico do que ele denomina “afrofuturismo tropical”, conversando com outros músicos, artistas e produtores, e elaborando comentários em voz over em que reflete sobre heranças geracionais e históricas dos cimarrones e quilombos para a inventividade do bakosó. Jacobs-Fantauzzi associa artifícios da imagem, como time-lapses, jump cuts, acelerações e desacelerações, à alternância mais convencional entre voz over, depoimentos (registrados nos moldes da tradição documental das “cabeças falantes”) e conversas (frequentemente registradas com a mobilidade da câmera na mão, em meio às paisagens urbanas ou domésticas, e também ao trabalho de composição das músicas). Os artifícios reincidem também nas sequências performáticas que remontam à relação do protagonista com sua avó e às práticas religiosas e rituais da santería. Nessas sequências, o filme constrói uma encenação mítica entrecortada, que suplementa o discurso (pan)africanista de DJ Jigüe, sua defesa da música como “linguagem universal” e a estética afrofuturista do bakosó. Essa relação mítica entrecortada pode ser lida como um espelho metafórico da experiência diaspórica da relação com as origens africanas: o retorno às origens existe somente como invenção, encenação e fantasia; sua tecelagem convoca mitos e ritos de relação com a terra, como modo de reconfigurar espaços imaginativos historicamente desarticulados; sua temporalidade demarca um ritmo truncado, atravessado por repetições, que entrecorta a experiência da duração.

Pela ternura (2016), de Alice Diop, explora o espaço dos herdeiros e herdeiras da diáspora contemporânea, das migrações recentes e das paisagens transculturais da Europa metropolitana. Esse espaço social habitado por descendentes de imigrantes é acessado por meio de conversas da diretora (filha de senegaleses, nascida em Paris) com quatro jovens homens dos banlieues (periferia) parisienses. O movimento insinuado pelo título do filme é o movimento das conversas, distribuídas em quatro sequências. As vozes de Régis, Rachid, Patrick e Anis ressoam – com relatos sobre suas amizades, interesses sexuais e amorosos, experiências da masculinidade como padrão violento e impositivo, como mandato ou injunção de agressividade – sobre imagens que “encarnam”, como se lê nos créditos finais, cada uma das sequências – nas quais as personagens transitam por paisagens da cidade, comem e bebem, viajam a Bruxelas, onde visitam uma rua diante de mulheres expostas como prostitutas, em vitrines iluminadas por luzes coloridas. Por meio de uma abordagem visual observacional, de uma abordagem sonora baseada na inscrição das vozes a partir do fora de campo e do eventual registro direto de conversas, o filme revela os espaços afetivos e psíquicos que se projetam sobre os espaços sociais habitados pelos descendentes da diáspora contemporânea. A violência das formas dominantes de masculinidade reflete, de modo especular, a violência da diáspora como experiência do desterro, mesmo para aqueles e aquelas que nasceram em solo francês, e o filme insinua a promessa vagamente luminosa – talvez ilusória, mas recorrente como uma luz de vagalume no fundo do espelho cinematográfico – do reconhecimento dos afetos irrepresentáveis do amor.

Em A Luta de Silas (2017), as diretoras Anjali Nayar e Hawa Essuman compõem um retrato biográfico de Silas Siakor, ativista liberiano e fundador do Sustainable Development Institute. Por meio de depoimentos do protagonista e de sua esposa, inscritos recorrentemente sob uma trilha musical marcante, ainda que sutil, e acompanhados eventualmente de letreiros informativos, o filme transita entre a atuação política de Silas e aspectos de sua vida pessoal. Ao lado de depoimentos de outras pessoas associadas à luta contra o avanço do desmatamento sobre territórios habitados por diferentes comunidades, a figura de Silas opera como uma instância de mediação. A perspectiva do filme é cosmopolita (como as trajetórias de suas diretoras e a plataforma de ferramentas de denúncia e relatórios de violações de direitos que auxilia Silas e seus companheiros de luta, chamada TIMBY e fundada por Nayar em 2013). Enquanto Silas emerge como uma voz de contestação que se encaminha para um lugar na política institucional da Libéria, a ordem neoliberal global que seu ativismo contesta e confronta é condensada na figura da presidente Ellen Johnson Sirleaf (2006-2018). Com seu formato mais convencional e suas doses de apelo emocional, o filme evidencia a complexidade das articulações entre histórias locais e projetos globais que caracterizam as dinâmicas da globalização: se estamos frequentemente diante do “quintal” de Silas, como sugere o título da plataforma de ferramentas de ativismo TIMBY (“This is My Backyard”), os movimentos da montagem nos fazem atravessar diferentes paisagens e cenários em que Silas inscreve seu pleito, projetando globalmente sua experiência local como parte de uma reivindicação de outros modos de desenvolvimento e de globalização.

O africano que queria voar (2016), de Samantha Biffot, elabora uma abordagem biográfica reveladora de outros fluxos globais. A trajetória pessoal de Luc Bendza, que vai do Gabão à China e se torna um ator no interior da importante tradição chinesa de filmes de artes marciais, permite reconhecer a persistência do fundamento eurocêntrico da ordem neoliberal global, que reproduz o imaginário racista sobre a África, e as linhas de fuga delineadas por outras derivas mundiais. Depoimentos do protagonista, de familiares e amigos, relatam e discutem o racismo das imagens negativas de africanos e negros projetadas a partir do Ocidente, ao mesmo tempo em que reconhecem os estereótipos que tinham aprendido sobre a China, decorrentes da predominância de visões ocidentais e também do próprio sucesso dos filmes de artes marciais, que motivaram Bendza a deixar Koulamoutou, onde praticava como podia o kung fu e fez seu próprio filme, para ir ao famoso Templo de Shaolin, aos 15 anos. Imagens de arquivo mostram aspectos da trajetória (comentada por diversas das pessoas envolvidas) que o conduz ao casamento com uma chinesa, à permanência na China e ao sucesso profissional nas artes marciais e no cinema. A biografia de Bendza espelha e ecoa a possibilidade de outras relações, refletindo a heterogeneidade do processo de globalização.

Quando Atanásio Cosme Nyusi entra em cena em A Dança das Máscaras (2019), de Sara CF de Gouveia, o entrelaçamento entre a vida pessoal do personagem e a vida política de seu país enseja uma travessia pela história de Moçambique, por meio da mediação cultural e simbólica da dança Mapiko. Atanásio conversa com seu filho Natepo sobre a dança tradicional dos Makonde. A força estética da dança e a potência política das elaborações artísticas a ela associadas configuram um recurso performático, que suplementa procedimentos formais mais usuais, a que o filme recorre, como depoimentos e registros de conversas. Além disso, o papel das máscaras na dança Mapiko materializa uma deriva fantasmagórica que é constitutiva da relação entre o filme, a trajetória de Atanásio e a história do país, vista da perspectiva de um artista, uma prática artística e uma etnia que estiveram envolvidas na luta anticolonial e no combate em favor da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). As máscaras espelham as fantasmagorias do passado; os sons das máscaras definem o ritmo dos passos de dança que ecoam, com seus movimentos, as instabilidades da história e os levantes em busca da vida possível no futuro. É no jogo de espelhos e ecos que o cinema torna possível configurar um mundo a ser habitado por um povo, mesmo que esse povo ainda não exista.

Lua Nova (2018), de Philippa Ndisi-Herrmann, representa uma deriva autobiográfica da artista queniano-germânica, baseada na reflexão ensaística, em primeira pessoa, sobre o próprio filme. Há um movimento associado predominantemente à produção das imagens, que conduz desde a apresentação do filme como projeto em busca de financiamento até o início de seu desenvolvimento como processo instável de relação com a cidade de Lamu, na ilha homônima no litoral do Quênia, em meio às transformações introduzidas pela proposta de criação de um grande porto e pela instalação de usinas termelétricas no local. Em Lamu, o filme e a cineasta se transformam, configurando um segundo movimento no decorrer do projeto de montagem, no qual se articulam registros da experiência coletiva testemunhada pela cineasta (em observações da vida comum, em conversas com as pessoas da cidade etc.) e um diário de sua experiência singular de escolha e cultivo da fé islâmica do sufismo, baseada na experiência interior e na contemplação mística do mundo, ao mesmo tempo em que sustenta um modo de vida parcialmente ocidentalizado, que descumpre mandamentos islâmicos (como a interdição ao consumo de bebidas alcoólicas). O processo de descoberta do mundo a partir de Lamu se entrelaça ao processo de descoberta espiritual de Ndisi-Herrmann como sufista, em um jogo de espelhos e de ecos que transforma as imagens visuais e sonoras inscritas em seu interior. Eis parte da potência frágil do cinema: as vozes que se insinuam música; os encontros que desencadeiam a faísca do convívio; as fotografias e as filmagens que são memória e imaginação; a potência de um movimento que é rastro do passado e invenção de olhares destinados ao futuro.

A potência frágil do cinema pode ser uma potência de fuga e de abertura. Em Nora (2008), de Alla Kovgan e David Hinton, a dançarina Nora Chipaumire revisita sua vida, desde seu nascimento na Rodésia (atual Zimbábue), em 1965, até o momento presente, morando em Nova York. Por meio de coreografias alegóricas abertas, entrecortadas por letreiros escritos em primeira pessoa, o filme encadeia performances executadas pela artista e por pessoas dos locais de filmagem, em Moçambique. Ao som da trilha sonora original assinada por Thomas Mapfumo e de outras músicas, assistimos a reconstituições metafóricas de episódios significativos da trajetória de Nora, assim como da história de seu país. As diferentes sequências configuram quadros alegóricos em movimento, desdobrando a dupla articulação da narrativa (entre história pessoal e história coletiva) por meio da dança e do recurso a artifícios de encenação e de montagem. A intervenção estética persistente no espaço cênico e nos registros de imagem e som explicita uma dimensão transformativa, que permanece mais ou menos latente em todo documentário, tornando manifesta a artificialidade de qualquer tentativa de abordar o mundo histórico que compartilhamos. Se o documentário é um modo cinematográfico formativo e transformativo, a potência frágil que abriga se irradia entre presente, passado e futuro, e seu jogo de espelhos e de ecos não opera na sincronia de uma simultaneidade de elementos, mas na anacronia e na heterocronia de uma articulação disjuntiva de traços sensíveis.