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O macaco com a câmera na mão

Assista aos imensos curtas de Leo Pyrata e leia o texto que escrevi sobre eles, publicado no catálogo da segunda edição do Fronteira e reproduzido aqui com a autorização do festival.

Este texto foi originalmente publicado no catálogo da segunda edição do Fronteira e é reproduzido aqui com a autorização da direção artística do festival.

Meus agradecimentos a Camilla Margarida, Henrique Borela, Marcela Borela e Rafael Parrode pela maravilha que é o Fronteira e particularmente pela oportunidade de conhecer e de discutir, no catálogo, os curtas do Leo Pyrata, a quem agradeço, por sua vez, pelos curtas, que seria possível descrever como filmes menores, mas imensos.

Esboço sobre os curtas de Leo Pyrata

Há um conto de Kafka [trata-se de “Um relatório para uma academia”, que cito aqui na tradução de Modesto Carone publicada no livro Um Médico Rural (Brasiliense, 1990)] em que um “ex-macaco” que “entrou no mundo dos homens e aí se estabeleceu” relata aos “senhores da Academia” sua trajetória, que se inicia na Costa do Ouro e termina nos “grandes teatros de variedades do mundo civilizado”. Pedro Vermelho – como se tornou conhecido devido à cicatriz deixada por um tiro que resvalou por seu rosto no momento de sua captura – recorda sua “pregressa vida de macaco”, com base em relatos de terceiros e em suas memórias que ainda sobrevivem, e observa que, ao “retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco”, comete distorções. O relatório que o estranho narrador do conto de Kafka apresenta aos “senhores da Academia” reconstitui, em linhas gerais, sua luta “contra a natureza do macaco” e seu “salto” na “comunidade humana”.

Quando a voz de Leo Pyrata reivindica a figura do “macaco com a câmera na mão” contra o peso da “vivência”, da experiência acumulada sob a forma de conhecimento sobre o cinema e a história das imagens, em uma das conversas reproduzidas em Cuauhtémoc (2012), sua paráfrase desloca o humanismo da formulação que remonta a Dziga Vertov e ao seu conhecido filme de 1929, Um homem com uma câmera, por meio da introdução do macaco no lugar de sujeito ideal da invenção cinematográfica. Se, para Pedro Vermelho, tratava-se de encontrar, em sua ascensão à condição humana (por meio da imitação dos homens), uma saída viável em relação ao cativeiro em que foi levado a viver depois de sua captura, para Leo Pyrata, trata-se de buscar, no devir-animal do “macaco com a câmera na mão”, uma forma de destruição da experiência que conduza, por meio da barbárie (isto é, da desarticulação da linguagem, da perturbação da convenção comunicacional, da desfiguração da forma expressiva), à abertura de um espaço de experimentação de que será preciso fazer, algum dia, o cauteloso mapa (em vez disso, o que apresento aqui são apenas algumas aproximações indecisas, talvez insustentáveis – se muito, o esboço parcial de um mapa, mal desenhado sobre um guardanapo).

O rigoroso caos da orquestração de diversas formas poéticas da barbárie sob a assinatura de Leo Pyrata não é capaz de reduzir ou de rarefazer a heterogeneidade que as caracteriza, numa estética da disjunção. Em termos visuais, a pobreza da baixa definição de imagem convive com a vertigem da acumulação de informações fragmentadas, e a disritmia de sua cadência na tela perturba o sentido de movimento que habita toda imagem de cinema. Em termos sonoros, a pobreza da baixa qualidade de registro direto acompanha a densidade buscada com as escolhas de contraponto musical e de organização do material sonoro, de modo geral. Enquanto a precariedade dos aparelhos de registro – o celular, a câmera digital barata, a webcam etc. – constitui uma das formas da barbárie, isto é, um dos modos do devir-macaco que os curtas usam para inquietar os sentidos do cinema, a organização elaborada do material registrado – a imagem filmada por Pyrata, a imagem encontrada na internet etc. – evidencia um pensamento da montagem, cuja gramática deve ser buscada tanto em alguma memória do cinema – a vanguarda, o experimental, o marginal, o cinema com sotaque – quanto em alguma memória da cegueira que caracteriza toda forma de familiaridade, de hábito, de costume, de habitação, de convenção – em suma, a memória da cegueira que define nossa relação mais comum com as imagens que nos circundam.

Filme Pornografizme (2011)

A relação com a memória da cegueira é o que está em jogo, por exemplo, no método de desenquadramento que rege a apropriação de imagens de pornografia disponíveis na internet, em Filme Pornografizme (2011). Os procedimentos formais de desenquadramento são, basicamente, dois: a redução da nitidez (que resulta em contornos borrados, perturbando o enquadramento a partir de seu interior) e a ampliação de áreas específicas recortadas de imagens maiores (que faz coincidir desenquadramento e re-enquadramento). Aos procedimentos de desenquadramento se acrescenta o encadeamento das imagens, que as descontextualiza e as inscreve numa montagem descontínua, e o contraponto musical, que divide o curta em dois momentos (além dos créditos). Com isso, o filme compõe uma espécie de narrativa do consumo pornográfico, por meio da exploração do efeito zapping, conforme a consagrada tradição da videoarte. O resultado é a retirada das imagens pornográficas do regime de visibilidade que as caracteriza, que as destina ao consumo e ao esquecimento, e a sua devolução a uma esfera de uso comum em que alguma memória das imagens se torna possível, em que algum afeto vem inscrevê-las novamente na história do cinema.

O gesto de retirar as imagens pornográficas de seu contexto de consumo imediato (e de esquecimento, uma vez que o olhar pornográfico esgota rapidamente as imagens que o alimentam e busca sempre mais imagens) produz um estranhamento parcial de seu modo de operação, na medida em que torna visíveis aspectos da mitologia que as orienta. Quando, por exemplo, sob a música mais pesada que demarca o primeiro momento do curta, os contornos borrados de um plano em que se adivinha um corpo seminu refletido num espelho convertem o prazer visual suposto na economia da pornografia em beleza plástica, a cegueira diante do que parece familiar cede lugar a uma nova visibilidade paradoxal, que reside no impreciso, no borrado, no confuso – vemos muito pouco, de modo muito impreciso, mas vemos o que teria permanecido invisível no contexto pornográfico original da imagem. Nesse primeiro momento do curta, de modo geral, os procedimentos de desenquadramento e a paisagem soturna da música convidam o espectador ao estranhamento.

No final do primeiro momento e na passagem para o segundo, o desenquadramento por meio do recorte e da ampliação de detalhes das imagens pornográficas originais revela e destaca, no cerne de sua composição, uma série de elementos estranhos – um gato que se lambe, um boneco do Garfield em pelúcia (e há todo um programa de montagem surrealista, baseada em formas de associação livre, no encadeamento entre o gato e o boneco do gato), flores estampadas na parede. A música delimita uma relação de fruição diante do estranho que se descobre nas imagens, enquanto a potência de estranhamento que o filme tinha projetado sobre as imagens por meio de procedimentos formais se revela, igualmente, constitutiva de seu conteúdo, das figuras que preenchem sua superfície, da irradiação do inesperado punctum que reivindica os afetos do olhar. O estranhamento que emerge das próprias imagens, e não dos procedimentos formais do curta, alcança seu ápice na sequência final, em que a câmera-pinto aparece como o símbolo incontornável da economia das imagens pornográficas e, ao mesmo tempo, como uma revelação paródica e diabólica – e, portanto, crítica – de sua própria mitologia.

Élégie à Rimbaud (2011)

O sentido diabólico da relação entre o “macaco com a câmera na mão” e as imagens se encontra também na reivindicação da poesia de Arthur Rimbaud, um dos representantes mais ilustres da tradição artística dos malditos, por meio dos latidos de Rimbaud, o cachorro de que Pyrata se despede em Élégie à Rimbaud (2011). Quando o cachorro late, em meio às brincadeiras com pinhas que o despertam da letargia de seu sofrimento derradeiro, Pyrata inscreve na tela os versos do poema “L’Éternité”, de Rimbaud, como se fossem legendas. Se o homem Rimbaud escreveu a eternidade como o encontro em fuga do mar e do sol, o cachorro Rimbaud late a eternidade, nas imagens do vídeo, no tempo do eterno retorno da brincadeira no quintal.

Depois da poesia, isto é, depois da brincadeira, isto é, depois da eternidade latida por Rimbaud, a introdução de uma música instrumental demarca a segunda parte do curta, em que uma voz em off recita os versos de “Sensation”, enquanto legendas inscrevem na tela a história do cachorro, narrando sua chegada na vida de Pyrata, suas brigas, seus amores. A estética da disjunção da elegia videográfica que Pyrata dedica a seu cachorro tem, em seu cerne, o recurso expressivo das legendas. É no contraponto entre os latidos de Rimbaud e as legendas que reproduzem o poema, na primeira parte do curta, e naquele outro contraponto entre a voz off que recita outro poema e as legendas que narram a história de Rimbaud, na segunda parte, que se potencializam as possibilidades de deriva abertas pela associação disjuntiva de elementos díspares, num procedimento que é frequente na videoarte e no cinema experimental, e que encontra em certas obras de Jean-Luc Godard, sobretudo da fase mais recente, uma de suas expressões mais elaboradas. Às legendas acrescenta-se a sobreposição de duas peças musicais diferentes na trilha sonora, numa espécie de clímax que antecede a sequência final de planos de Rimbaud no quintal.

Antes dessa sequência final carregada de saudade, a frase que encerra a sucessão das legendas é, ao mesmo tempo, um comentário sobre a possibilidade de Rimbaud ter deixado filhotes, sobre a poesia e sobre a memória, sobre os rastros que se deixa no mundo, sobre o filme que vemos e sobre o cinema em geral: “É fácil projetar os olhos em delírios apócrifos.” Um dos gestos fundamentais do devir-animal do “macaco com a câmera na mão” é, efetivamente, o de perder-se na facilidade dessa projeção, fazendo cinema como se fosse brincadeira, entre amigos ou com o cachorro, no bar ou no quintal, com o registro mais trivial do cotidiano, com as imagens mais banais e, ao mesmo tempo, mais singulares, talvez insubstituíveis.

Cuauhtémoc (2012)

Dessa forma, a memória do cinema aparece, em parte, sob a forma de experimentações disjuntivas com elementos da imagem cinematográfica, como se verifica no exemplo dos desenquadramentos, em Filme Pornografizme, e do contraponto das legendas, em Élégie à Rimbaud, e a memória da cegueira diante das imagens emerge, sobretudo, da apropriação e da ressignificação de imagens alheias, como no caso de Filme Pornografizme. Em ambos os casos, a montagem desempenha o papel de caução da invenção cinematográfica, como ocorria na obra de Dziga Vertov, mas uma montagem que se transformou e amplificou seu alcance, no contexto da convergência digital, a partir da herança da videoarte. Efetivamente, enquanto Vertov pensava a montagem como uma tarefa que se inicia nas filmagens, o “macaco com a câmera na mão” de Pyrata se dedica menos a filmar (e a pré-conceber o ato de filmar) do que à coleção de imagens quaisquer (que parecem às vezes ter sido feitas e/ou escolhidas de qualquer jeito, sem cuidado e sem rigor) e ao manejo dos programas de manipulação de imagens e de edição não linear de vídeo disponíveis para computador, nos quais o diretor encontra parte importante de seu repertório de recursos expressivos.

A precariedade que afeta muitas das imagens que compõem os filmes, ao menos do ponto de vista do tipo de aparelho e da situação de registro que as produziu, não se reproduz nos modos de edição e de transformação das imagens. Com efeito, na conversa de bar reproduzida em Cuauhtémoc, a reivindicação de uma precariedade disfarçada e dissimulada, em contraposição à precariedade assumida e evidenciada característica dos anos 1970 (e, por exemplo, de Rogério Sganzerla), assume Hollywood como referência exemplar que deve ser imitada. Há, assim, um cinema que nega sua “natureza de macaco”, que dissimula sua precariedade com arremedos de Hollywood: como o narrador do conto de Kafka faz em relação aos homens, esse tipo de cinema imita Hollywood para se aproximar de sua condição, mas permanece excluído dela, conforme ocorre, por definição, com toda imitação, que resguarda sempre uma distância irredutível entre imitante e imitado. Em oposição a esse cinema de imitação, que decorre de uma colonização do imaginário cinematográfico, o cinema de Leo Pyrata resiste diante da imitação como Cuauhtémoc diante de Hernán Cortés – e há um sentido trágico nessa identificação, uma vez que o conquistador espanhol acabou condenando Cuauhtémoc ao enforcamento; ao mesmo tempo, entretanto, a reivindicação de uma figura da resistência anti-colonial conduz a uma espécie de ressurreição de seus sentidos históricos. Em suma, o cinema de Pyrata deseja a “natureza de macaco”, cuja potência assume forma sensível nos modos de montagem que caracterizam seus filmes – a estética da disjunção como bricolagem do macaco diante do mundo.

De modo radical e emblemático, essa “natureza de macaco” se torna visível na experiência que compõe a segunda parte de Cuauhtémoc, em que a fragmentação de imagens em decomposição do curta até esse momento cede lugar, finalmente, à abstração luminosa sintetizada pelo computador, aos vagalumes e aos fogos de artifício da imagem digital produzida por gestos de “macaco” no computador, isto é, gestos de barbárie, gestos incivilizados, gestos incultos. A memória do cinema que está em jogo no procedimento de composição das imagens abstratas de Pyrata é também aquela de Stan Brakhage e de outros cineastas experimentais, que se tornaram conhecidos, em parte, por suas intervenções diretas sobre a película cinematográfica, desenhando sobre sua superfície, riscando-a e danificando-a, enfim, devolvendo-lhe a sua condição material como base da experiência imaterial da projeção. Numa época de convergência digital, a intervenção na película é substituída pelo jogo programado da interface do computador, e um fantasma de materialidade da imagem aparece sob a forma dos rastros do cursor do mouse no traçado das formas abstratas e na evidência dos pixels como unidades formadoras da imagem digital. Se o artifício da intervenção direta na película implicava uma interrupção do sentido referencial e representativo da imagem cinematográfica (cujo emblema é a produção de imagens sem câmera), os fogos de artifício de Cuauhtémoc evidenciam a perda de referencialidade que é a condição de possibilidade de toda imagem digital.

Passagem (2012)

A perda de referencialidade das representações da paisagem é parte crucial da experiência de Passagem (2012), no qual o paradoxo da materialidade fantasmagórica da imagem digital fundamenta um passeio contemplativo em ritmo acelerado pelas paisagens de mais de uma cidade. A decomposição das paisagens ocorre por meio da alteração de cores e da distorção dos contornos, assim como da fragmentação do movimento que se adivinha entre as imagens em uma série de pequenos momentos, que escapam das imagens como rastros efêmeros e difíceis de enxergar, à exceção de alguns instantes de paragem, de respiro, de silêncio visual (embora a música drone continue a soar o tempo todo). Assim, Passagem carrega a memória da cegueira que define grande parte de nossas formas de relação com a cidade, com o espaço e com a paisagem.

O título do filme alude ao projeto inacabado das Passagens, de Walter Benjamin, enquanto o sentido do passeio que se adivinha na sucessão das imagens remonta à importância da figura do flâneur no contexto da história da modernidade que o autor alemão concebeu. Ao revisitar essas referências, Pyrata ultrapassa seus sentidos originais, uma vez que inscreve nas imagens os elementos e os tempos locais das cidades que habita e das paisagens que visita, nos quais misturam-se as figuras da metrópole moderna – prédios, luzes, carros – e vislumbres de uma experiência periférica e marginal da metrópole moderna. Diante das paisagens, Passagem constitui, também, uma experimentação com o registro documental e com a representação da duração.

O Curta dos Festivais (2013)

O Curta dos Festivais (2013) explora de modo contundente a dimensão documental que está presente nas imagens precárias que o compõem, e seu recurso expressivo mais importante consiste no uso das legendas como contraponto disjuntivo das falas. Entre as falas e as legendas, as imagens registram uma série de momentos da participação do diretor e de amigos dele no Festival de Tiradentes: trajetos de carro, conversas em torno de um sofá, atividades na cozinha, festas etc. As conversas se sucedem sem que seu nexo esteja garantido, seja pelas imagens (frequentemente distorcidas), que piscam e tremem, oscilam e param, seja pelas legendas, cujo discurso heterogêneo envolve relatos sobre o contexto de registro das imagens, citações de reflexões críticas e teóricas sobre cinema e uma série de lugares comuns da crítica e do discurso acadêmico atualmente dominantes – como “afeto”, “potência”, “dispositivo” etc.

O desfile descontínuo das citações nas legendas parece conter uma amostragem de citações de textos lidos num curso de graduação em cinema, e algumas das temáticas abordadas são o conceito de ritual, os ritos funerários, a fotografia, a comunicação social, a função do briefing, a encenação cinematográfica, a pornografia, entre outras. As conversas versam sobre os encontros entre amigos nos festivais, as ideias sobre arte e cinema que cultivam, os gostos e as preferências diferentes etc. As imagens representam vislumbres dos locais e dos momentos em que as conversas ocorreram. A estética da disjunção que caracteriza o curta torna difícil atribuir um posicionamento à instância de enunciação do filme, que se inscreve sob a assinatura de Leo Pyrata, mas não deve ser a ele identificada sem maiores considerações.

O Curta dos Festivais se apresenta como uma versão curta de um projeto de documentário de maior duração e constitui, de certa forma, uma exploração experimental de um material que tem uma importância dupla: por um lado, as imagens constituem uma memória pessoal (são, sobretudo, registros de encontros com amigos); por outro, pertencem a uma memória coletiva do cinema brasileiro contemporâneo, de um dos espaços sociais que o constituem (são, igualmente, afinal, registros de encontros com interlocutores e com possíveis colaboradores). Nesse sentido, a construção do curta impede que a conversa e o diálogo dos encontros apareçam de modo linear, desfigurando sua dinâmica por meio da estética da disjunção.

Imhotep (2015)

Os usos da estética da disjunção para a desfiguração da representação alcançam uma expressão radical em Imhotep (2015), em que o efeito zapping (herança da videoarte) e a montagem descontínua (herança do cinema experimental) convergem na exploração de uma série de modalidades de interferência entre imagens que representam ícones do Egito antigo e de suas sobrevivências na cultura visual contemporânea, sob a forma de pirâmides (o nome de Imhotep está associado à construção da primeira pirâmide egípcia) e de elementos iconográficos associados à escrita dos hieróglifos (em especial a representação do deus Rá, de quem Imhotep foi, igualmente, um dos altos sacerdotes). O único plano do filme que foi filmado por Pyrata corresponde a uma tomada de um boneco do deus Rá, que opera como uma camada primordial de sentido na orquestração visual do curta. Sobre essa camada, uma série de outras imagens vem depositar seus vestígios. A apropriação de imagens da internet, que são encadeadas ou sobrepostas com o plano do deus Rá, confere a Imhotep o sentido de uma exploração de arquivo, enquanto sua estética disjuntiva perturba qualquer sistema de arquivamento.

Seria possível dizer que a vaga luminosidade das imagens de internet ofusca a luminosidade solar do plano do deus Rá, na trama videográfica de Imhotep. De fato, frequentemente, o fluxo das imagens que atravessa o plano apaga a figura de Rá, criando um efeito de saturação da tela que remonta ao Global Groove (1973), de Nam June Paik, e a suas sobreposições (por meio de transparências e de chroma key). A genealogia desse efeito deve ser buscada, de acordo com o quadro interpretativo estabelecido pelo título e pela iconografia egípcia do curta, no sonho ou no delírio de Sergei Eisenstein, que supôs encontrar no hieróglifo egípcio e no ideograma japonês os modelos de sua montagem intelectual.

Ao mesmo tempo, é também frequente que o plano do deus Rá ressurja sob o fluxo das imagens, ou dentro delas, sob outras formas, rarefazendo a saturação e revelando a persistência da iconografia a ele associada através dos séculos. Se há persistência de formas e de motivos iconográficos, efetivamente, entre o Egito antigo e suas sobrevivências visuais contemporâneas, não se pode, contudo, supor uma continuidade absoluta entre o presente e o passado. Imhotep explora o que sobrevive de uma iconografia muito antiga, cujos sentidos atuais devem ser buscados na memória do cinema a que ela está associada – a montagem conceitual de Eisenstein, mas também os procedimentos de sobreposição da videoarte e seus efeitos sobre o projeto eisensteiniano e sobre as práticas cinematográficas da montagem no contexto digital – e também no contexto da música – a figura do jazzista Sun Ra (e sua Arkestra), presente na trilha sonora musical do curta e nos planos citados da ficção científica afrofuturista Space is the Place (1974), de John Coney.

Imhotep compõe uma espécie de atlas desfigurado da recorrência das pirâmides, do Deus Rá e da iconografia do Egito antigo, transformados e reinventados, a cada vez, por sua encenação cinematográfica e existencial pela figura de Sun Ra, por sua apropriação nos mais diversos contextos de práticas da imagem, por sua disseminação caótica, anárquica, aberta, de que o curta de Leo Pyrata constitui apenas um vislumbre e, talvez, o rigoroso (porque desfigurado) retrato. Por meio desse retrato da disseminação de uma iconografia, Imhotep parece simbolizar, em geral, a vida das imagens e a possibilidade de transferir suas formas – e, em alguma medida, seus sentidos – que caracteriza sua condição sensível. Ao mesmo tempo, o curta revela a dimensão diabólica da vida das imagens: a possibilidade de transferência entre os mais diversos contextos e a multiplicidade das transformações que as imagens atravessam nesse movimento as destina, efetivamente, ao informe, que Imhotep encena sob as várias formas da interferência entre imagens. Paradoxalmente, a invenção de novas imagens a partir da interferência entre imagens revela que o informe não é, simplesmente, o fim da vida das imagens, mas um recomeço. Sua barbárie é aquela de uma abertura para a renovação, e a destruição da experiência acumulada da história das imagens que se adivinha no informe opera como um princípio produtivo. Eis o que pode um “macaco com a câmera na mão”.

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