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O cinema, a imaginação cosmopolítica e o devir-sensível da consciência da humanidade

Publicado nos Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual, realizado pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, esse artigo aborda o catálogo dos irmãos Lumière, num itinerário incipiente e provisório que pretende rastrear as figuras cosmopoéticas do cinema. Parte de uma pesquisa em andamento, cuja abrangência parece irredutível, o artigo pode ser lido a seguir.

Referência para citação:

RIBEIRO, Marcelo Rodrigues Souza. O cinema, a imaginação cosmopolítica e o devir-sensível da consciência da humanidade. In: MONTEIRO, Rosana H.; ROCHA, Cleomar (orgs.). Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual, Goiânia: UFG/FAV, 2012, p. 463-472.

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O cinema, a imaginação cosmopolítica e o devir-sensível da consciência da humanidade

Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro

Universidade Federal de Goiás – Faculdade de Artes Visuais

Resumo: Uma discussão conceitual sobre o cinema como aparelho da pulsão escópica e os direitos humanos como aparelho da pulsão ética permite interrogar como se configura, em formas sensíveis, através de imagens, a “consciência da humanidade” de que fala a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Se a comunidade da humanidade se torna, com o Século das Luzes, um projeto filosófico-político, o que o Século dos Lumière inaugura é o trabalho de imaginação da comunidade da humanidade, que se faz sensível – isto é, imaginável. Entre as vistas cinematográficas do catálogo Lumière, pode-se entrever, assim, uma forma de imaginação cosmopolítica.

Palavras-chave: aparelho, cinema, direitos humanos, política, sensibilidade.

Abstract: A conceptual discussion about cinema as apparatus of the scopic drive and the human rights as apparatus of the ethic drive allows the interrogation of the configuration, in sensible forms, through images, of the “conscience of humanity” named by the Universal Declaration of Human Rights (1948). If the community of humanity becomes, in the Age of Enlightenment, a philosophico- political project, what the Age of the Lumière inaugurates is the work of imagination of the community of humanity, which becomes sensible, that is, imaginable. Among the cinematographic views of the Lumière catalogue, emerges a form of cosmopolitical imagination.

Keywords: apparatus, film, human rights, politics, sensibility.

A emergência do aparelho cinematográfico no final do século XIX é ao mesmo tempo um evento da história da técnica e da histórica da arte. O que reúne essas duas dimensões da historicidade do aparelho cinematográfico, o que articula a reprodução industrial e a representação fotossensível do movimento, é sua relação com a questão da sensibilidade e com a história da política como dimensão da vida humana, ou seja, com as formas de invenção do mundo comum. Nas vistas cinematográficas reunidas no catálogo que se inscreve sob o nome “Lumière”, é possível entrever uma forma de imaginação cosmopolítica que marca a emergência do cinema como aparelho de reprodutibilidade técnica, isto é, uma forma de (re)produção do sensível (COCCIA, 2010) que inventa o mundo (cosmos) em comum (polis).

Com efeito, o que há em um nome? Quando se fala do cinematógrafo e do catálogo “Lumière”, há um efeito de assinatura que nos apressamos a compreender, a encerrar, ligando o nome aos irmãos que inventaram a primeira forma do aparelho cinematográfico que chegou a se difundir comercialmente pelo mundo. Assim, “Lumière” aparece como nome próprio e, como tal, torna-se intraduzível. O efeito de assinatura que investe o nome “Lumière” reenvia à profunda certeza de uma propriedade, atrás das superfícies das imagens que povoam o catálogo com vistas cinematográficas de várias partes do mundo. No entanto, na propriedade do nome, há algo que resta aberto à deriva de um devir- comum: mesmo se eles não estão completamente ali, pode-se entreouvir os nomes comuns que habitam um nome próprio como fantasmas que o assombram e o dividem a partir de seu interior. Nesse movimento, “Lumière” se deixa assombrar por isso que é necessário ao dispositivo cinematográfico para a projeção de suas imagens, por isso que o fundamento fotográfico do cinema não cessa de reivindicar como sua matéria-prima impalpável: a luz.

É talvez em relação aos traços da luz que se poderá talvez desenhar os contornos de uma época, a “nossa”: aquela do cinema como aparelho de alcance mundial e potência inaudita de reconfiguração das coletividades, aquela dos direitos humanos como discurso mundial e elemento da governamentalidade internacional, fundados sobre a herança do Século das Luzes. Entre as Luzes e os Lumière1, não se trata de fazer um jogo de linguagem sem relação com a história, mas de reencontrar, no movimento do jogo, um sentido da história que permanece alheio às interpretações mais usuais do cinema e do cosmopolitismo. Em vez de pensar, por um lado, o cosmopolitismo como um tema entre outros que o cinema pode representar e inscrever em narrativas e, por outro lado, o cinema como um instrumento entre outros na divulgação de projetos cosmopolitas, trata-se aqui de pensar o cosmopolitismo e o cinema, a articulação sem hierarquia a priori que os inscreve no movimento do devir-sensível da consciência da humanidade.

1. O aparelho cinematográfico, o inconsciente ótico e a pulsão escópica

Como evento da história da técnica, o aparelho cinematográfico compartilha com o aparelho fotográfico uma parte de seus fundamentos óticos e físico-químicos. De um lado, a automatização dos cálculos da perspectiva artificial permite a captação e a projeção da imagem. De outro lado, a queima dos elementos fotossensíveis permite fixar a imagem captada e projetada, reproduzindo-a. Ademais, no cerne da dimensão técnica da historicidade do aparelho cinematográfico, encontra-se a lógica da (re)produção industrial, cujas consequências se tornam visíveis sob a forma de possibilidades estéticas.

Da lógica da (re)produção industrial resulta a tensão crítica que marca a inscrição do aparelho cinematográfico na história da arte. Crítica, isto é: ligada ao advento de uma crise na arte, ou antes uma crise das fronteiras que delimitam o que se considera arte. O aparelho cinematográfico coloca em crise a arte como prática e como conceito, pois enseja um aprofundamento da percepção humana. É o que Walter Benjamin (1985, p. 189) analisa como abertura da experiência do inconsciente visual ou ótico:

É evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que a que se dirige ao olhar. A diferença está principalmente no fato de que o espaço em que o homem age conscientemente é substituído por outro em que sua ação é inconsciente. […] Aqui intervém a câmara com seus inúmeros recursos auxiliares, suas imersões e emersões, suas interrupções e seus isolamentos, suas extensões e suas acelerações, suas ampliações e suas miniaturizações. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional.

Quando Benjamin sugere que os aparelhos de reprodutibilidade técnica abrem a experiência do inconsciente ótico, o que está em jogo é a economia da pulsão escópica e as transformações coletivas que esta atravessa. A esse respeito, a vista cinematográfica 40 do catálogo Lumière, intitulada “Demolição de um muro”, possui um interesse duplo. Por um lado, a captação e a restituição do movimento toma a “forma ideal” da “vista unipontual tomada sobre o vivo” (vue uniponctuelle prise sur le vif), como escreve André Gaudreault (2008, p. 103): vê-se o que o título descreve, o muro demolido pelos trabalhadores (conduzidos por Auguste Lumière), a poeira levantada pela destruição como uma fumaça espessa. Por outro lado, não se trata contudo de restituir o movimento sem manipulação: a intervenção no momento da projeção – invertendo o movimento da demolição para que ele possa se desfazer diante dos olhos de espectadores mais ou menos espantados – destina a vista da demolição a se tornar uma forma de atração mostrativa, num efeito posterior que revela aspectos inauditos do movimento.

A revelação do inconsciente ótico no catálogo Lumière toma vistas do cotidiano e de sua imponderável realidade como objetos privilegiados. Permitindo- nos olhar de outra forma, o aparelho cinematográfico abriga instantes quaisquer e os torna visíveis lá onde eles permaneceriam imperceptíveis e esquecidos. Há uma distância aqui em relação ao voyeurismo exacerbado do cinescópio de Thomas Edison. Para Jacques Aumont (2004, p. 42-43), por exemplo, essas “duas estéticas” são opostas:

É ao gosto de Edison pelos números espetaculares, excepcionais, que se opõe melhor o amor da vista Lumière pelo instante qualquer […]. O cinescópio alimenta o olho, mas com alimento claramente designado, objetivado, delimitado; ele satisfaz o olhar (a própria definição, segunda Lacan, de perversão). […] [N]a vista Lumière, o olhar passeia, se perde e se dissolve, em suma, se exerce em um campo.

O solo comum ao qual reenviam as duas estéticas que se inscrevem sob os nomes Edison e Lumière, além do que as opõe uma à outra, é o trabalho sobre a pulsão escópica, cuja operação está no cerne de seus efeitos e de sua herança em toda a história do cinema. Do lado de Edison, encontra-se uma tendência ao voyeurismo do espetáculo, que coloca em jogo a intensificação da pulsão escópica: trata-se de colocar em movimento um dispositivo de captura do desejo por programas que constituirão, mais tarde, a indústria cultural. Do lado dos Lumière, encontra-se uma tendência ao que se pode chamar de voyeurismo do viajante: em vez de buscar a satisfação do olhar, trata-se de colocar em movimento a deriva do desejo, de abrir seu campo e de aí se perder, em relação aos programas industriais. Do lado de Edison, a pulsão escópica reina nos cálculos espetaculares da indústria. Do lado dos Lumière, a pulsão pode se tornar desejo – mesmo que isso nem sempre aconteça – e o campo de deriva do olhar pode abrigar o mundo – mesmo se o dispositivo espetacular não cessa de tentar capturar todo desejo de olhar e de explorá-lo industrialmente como pulsão.

Desejo de olhar, escrevo: antes de tudo, é o desejo de olhar, de assumir a posição de sujeito do olhar e de ver o mundo – “Assim, a descrição cinematográfica da realidade é para o homem moderno infinitamente mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece o que temos o direito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade.” (BENJAMIN, 1985, p. 187). Em segundo lugar, é o desejo de aparecer no campo do olhar, de assumir a posição de objeto do olhar e de ver sua imagem reproduzida como parte do mundo – “Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmado.” (BENJAMIN, 1985, p. 183). O desejo de ver e o desejo de aparecer são as duas faces do desejo de olhar que o aparelho cinematográfico abriga e que a exploração industrial só captura em seus dispositivos ao reduzi-lo a pulsão.

O aparelho cinematográfico emerge assim como uma tecnologia da pulsão escópica e a revelação do inconsciente visual ou ótico se desenrola de duas formas opostas: de um lado, a captura espetacular e industrial do desejo e sua exploração capitalista como pulsão; de outro lado, a abertura de uma possibilidade de liberação pelo movimento segundo o qual a pulsão escópica se torna desejo de olhar2.

Mas de que olhar se trata? Qual é a constelação de sentidos na qual se inscreve o olhar cinematográfico? Os problemas que o cinema, na sequência da fotografia, apresenta para as concepções tradicionais da estética são ao mesmo tempo da ordem da representação – em que se deve seguir os traços da questão do realismo, dos efeitos de realidade de diferentes estéticas cinematográficas – e da ordem da mediação – em que se deve seguir os traços da questão do enquadramento, com a condição de amplificar o alcance desse conceito, no marco de uma história transcultural da sensibilidade e da dimensão política da existência humana.

A tomada de vistas cinematográficas se inscreve numa busca que marcou há mais tempo a história da arte: a busca pela representação da realidade aparente. Jacques Aumont (2004, p. 33) já observou a impressionante quantidade de efeitos de realidade que caracteriza as vistas do catálogo Lumière em oposição à pobreza de detalhes que se encontra no cinescópio de Edison:

Tal efeito quantitativo tornou-se difícil de ser apreciado: ficamos saturados e insensíveis. Ele foi, no entanto, capital, até na concorrência entre Lumière e Edison, e vários críticos opõem expressamente a profusão sempre renovada, a generosidade visual dos filmes Lumière, à avareza do cinescópio, onde um pobre grupo de figuras se repete interminavelmente.

A potência do aparelho cinematográfico para revelar o inconsciente visual ou ótico passa tanto pela quantidade de detalhes – cujo conjunto se torna o campo em que passeia o olhar – quanto pela qualidade da imagem – cuja consistência se torna, ao mesmo tempo, o signo da descontinuidade que separa cinema e pintura, e o fio da continuidade que os liga novamente de uma forma subterrânea, permitindo compreender por que, como afirma Aumont, Lumière é o “último pintor impressionista”. À multiplicidade de efeitos de realidade que abriga em suas imagens, o aparelho cinematográfico acrescenta uma consistência que faz da recepção visual uma recepção tátil, em que tudo se passa como se “nas vistas Lumière, o ar, a água, a luz se tornassem palpáveis, infinitamente presentes” (AUMONT, 2004, p. 34).

2. Mediação, aparelho e dispositivo

É em relação ao conceito de enquadramento que se deve pensar a mediação da experiência, interrogando sua dimensão técnica (a operação do aparelho a partir de um programa que propõe sempre um cálculo e um jogo), sua dimensão estética (a mise-en-scène, o centramento, a delimitação de um fora-de-campo, a distância) e sua dimensão sócio-histórica (a inscrição do aparelho e das estéticas no interior de contextos sociais e históricos mais específicos em uma mesma época).

Em relação a sua dimensão técnica, a mediação da experiência permitida pelo cinema resulta de um programa cujo cálculo é aquele de uma articulação científica – entre geometria (a captação ótica da projeção visual), físico-química (o registro fotossensível da imagem) e mecânica (a reconstituição ilusória do movimento na projeção luminosa) – e cujo jogo é aquele de uma relação com o mundo que toma a forma do teste diante dos aparelhos (BENJAMIN, 1985)3.

Em relação a sua dimensão estética, a mediação passa pela mise-en- scène, que é também uma mise-en-cadre cujo jogo triplo deve ser notado:

O quadro é, antes de tudo, limite de um campo […]. O quadro centraliza a representação, focaliza-a sobre um bloco de espaço-tempo onde se concentra o imaginário, ele é a reserva desse imaginário. Acessoriamente […] ele é o reino da ficção e, aqui, da ficcionalização do real. Corolariamente, o quadro é o que institui um fora-de-campo, outra reserva ficcional onde o filme vai buscar, se for o caso, determinados efeitos necessários a um novo impulso. Se o campo é a dimensão e a medida espaciais do enquadramento, o fora-de-campo é sua medida temporal, e não apenas de maneira figurada: é no tempo que se manifestam os efeitos de fora-de-campo. O fora-de-campo como lugar do potencial, do virtual, mas também do desaparecimento e do esvaecimento: lugar do futuro e do passado, bem antes de ser o do presente.

O quadro, enfim, é o que assinala a distância: […] distância da câmera ao objeto filmado. (AUMONT, 2004, p. 40)

Em relação a sua dimensão sócio-histórica, a mediação só se define em relação a práticas coletivas mais específicas. O novo olhar que o aparelho cinematográfico torna possível – cuja diversidade pode ser vislumbrada no catálogo Lumière – só se constitui ao se ligar ao movimento, a suas formas e figuras sócio-históricas no fim do século XIX. A esse respeito, dir-se-á que o aparelho cinematográfico insinua um olhar em movimento, como se ele tomasse o trem e partisse de viagem. É o que Jacques Aumont (2004) chama de “olho variável”, cuja história passa pela ferrovia como figura de várias transformações da sensibilidade associadas ao aparelho cinematográfico.

Da percepção da geografia à imaginação do mundo; da concepção do espaço e do tempo à figuração da mobilidade, o que a ferrovia representa ultrapassa os aspectos técnicos e estéticos do enquadramento e reenvia à sua dimensão sócio-histórica. A figura da ferrovia não é somente a metáfora de uma nova forma de mediação visual da experiência. Ela designa também o movimento de deslocamento e a mobilidade como condição dos aparelhos e de suas travessias sobre a superfície do mundo. Numa perspectiva mundial, os aparelhos de reprodutibilidade técnica se inscrevem em estruturas coloniais e imperiais de poder. A emergência do cinematógrafo deve ser compreendida em relação ao colonialismo e ao imperialismo. Entre suas primeiras utilizações, o cinematógrafo coleciona vistas de incontáveis partes do mundo, registrando figuras do exótico – que pode ser definido quase literalmente como o que transborda o enquadramento do olhar – sob a forma de atrações.

Em “Repas d’Indiens” (a entrada número 351 do catálogo Lumière), por exemplo, trata-se de colocar em cena a alteridade, o que o catálogo não parece saber nomear, o que se chama vagamente de “índios”. O que me interessa, antes de tudo, é a relação entre os “indiens” e os brancos que registram suas ações por meio do aparelho. Se o cinematógrafo registrou, em outros momentos, o espetáculo da diferença cultural – as danças, os rituais etc. – o que se passa em “Repas d’Indiens” é o registro de uma pequena diferença (para remeter ao conceito freudiano de narcisismo das pequenas diferenças). O que é paradoxal é que a pequena diferença das atividades cotidianas nos aproxima deles de forma mais eficaz do que as diferenças espetaculares nos separam. Para os brancos que tentam controlar a mise-en-scène dos “indiens”, é preciso expor a alteridade ao olhar, enquanto a alteridade permanece irredutível a essa vontade de controle e de poder. A vontade de controlar a mise-en-scène da alteridade, a vontade de dispor das formas de aparecer do outro, é o desejo de domesticá-la dentro de um dispositivo. Essa vontade é o equivalente àquela de transformar o aparelho em dispositivo (DÉOTTE, 2004).

O aparelho cinematográfico se encontra assim dividido entre uma potência de acolhimento da alteridade do mundo – a alteridade como evento que o aparelho pode acolher ao fazer dela imagem – e uma força de domesticação por um dispositivo – a alteridade como figura do exótico que se presta a toda forma de integração ideológica e simbólica – sempre inacabada, sempre em vias de se constituir em relação à mise-en-scène e à montagem, à construção de uma narrativa etc. Se o dispositivo é sempre uma forma de reduzir a estrangeiridade em relação aos sistemas culturais que nos constituem, o aparelho só escapa à condição de dispositivo ao acolher a alteridade em sua irredutibilidade, isto é, como o que chega, o que advém e o que abre o horizonte dos possíveis mais além dos programas que trabalham para reduzi-los ao existente. Assim, a questão do aparecer do outro e do mundo (sobretudo do mundo comum como forma da política) não é somente uma questão estética (e técnica), mas também uma questão ética e política.

3. A consciência da humanidade, a pulsão ética e a imagem técnica

É preciso seguir os traços de uma genealogia de aparelhos de mediação da experiência ética – isto é, de maquinarias coletivas que abrigam (e podem portanto controlar) o desejo de melhor viver. Das Luzes e do projeto de paz perpétua de Kant, em 1795 (KANT, 2008), à Declaração de 1948 e ao projeto cosmopolita de governamentalidade internacional que se inscreve sob o signo dos direitos humanos, hoje, encontram-se os traços de uma transformação dos aparelhos de mediação da experiência ética que passa sobretudo por uma mudança de moldura: do nacional ao transnacional.

As Luzes afirmam seu projeto cosmopolita em relação ao enquadramento da nação, que delimita os direitos humanos a partir do conceito de cidadania. Esse projeto e esse enquadramento só podem ser compreendidos em relação com os aparelhos que definem a sensibilidade comum de sua época. Compartilhar uma sensibilidade é ser capaz de viver em comum (STIEGLER, 2004), é o que faz da comunidade uma possibilidade coletiva. Há tempos a modernidade das Luzes tinha feito da nação o mais importante dispositivo comunitário. Benedict Anderson (2006) associou a emergência da consciência nacional e a imprensa. Proponho que há uma relação de sobredeterminação análoga entre a emergência da “consciência da humanidade” de que fala a Declaração de 1948 e os aparelhos de reprodutibilidade técnica cujo desenvolvimento se desenrola desde o século XIX. A passagem do enquadramento da nação ao enquadramento da humanidade como comunidade imaginada de referência para a afirmação dos direitos universais corresponde à passagem da imprensa à imagem técnica como aparelho dominante de mediação da experiência coletiva.

Se a comunidade da humanidade se torna, com o Século das Luzes, um projeto filosófico-político de paz perpétua, com Kant e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o que o Século dos Lumière – o século do cinema – tornou possível foi o trabalho de imaginação da comunidade da humanidade, tornando-a sensível com a ajuda de aparelhos de reprodutibilidade técnica. A comunidade do humano com que sonham os direitos humanos só se torna um projeto jurídico e político – no interior da esfera da governamentalidade e, sobretudo, de sua internacionalização – ao se fazer perceptível e imaginável – com a ajuda de formas culturais cujos efeitos estéticos são indissociáveis de suas configurações históricas. A consciência da comunidade da humanidade deve ser literalmente sensificada: é preciso que ela tome forma, é preciso que seja possível construí-la em imagens, sonhá-la em comum. É preciso que a consciência da humanidade apareça e é esse aparecer que deve ser interrogado.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

ANDERSON, Benedict. Imagined comunities: reflexions on the origin and spread of nationalism. London, New York: Verso, 2006.

AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras escolhidas, volume 1. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 165-196.

COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Tradução de Diego Cervelin. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2010.

DÉOTTE, Jean-Louis. L’époque des appareils. Paris: Lignes & Manifestes, 2004.

GAUDREAULT, André. Cinéma et attraction: pour une nouvelle histoire du cinématographe. Paris: CNRS Éditions, 2008.
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008.

SEGATO, Rita. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – Estudos de Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional, vol. 12, n. 1, p. 207-236, abril de 2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 93132006000100008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13/04/2012.

STIEGLER, Bernard. Comme si nous faisions défaut ou comment trouver des armes à partir de On connaît la chanson, d’Alain Resnais. In: STIEGLER, Bernard. De la misère symbolique I. L’époque hyperindustrielle. Paris: Galilée, 2004.


  1. Em francês, o nome “Lumière” e o plural “lumières” são pronunciados da mesma maneira. Nesse silencioso jogo de différance (Derrida, 1991), é preciso aprofundar o movimento de disseminação de sentidos. É o que proponho começar a fazer neste trabalho. 

  2. Em outros termos, a dualidade contraditória do aparelho cinematográfico, cindido entre desejo e pulsão, à qual me refiro, é um dos objetos das reflexões de Walter Benjamin sobre o cinema, como quando afirma (1985, p. 180) que “o capital cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias imanentes a esse controle” exercido pela massa sobre o intérprete, ou quando escreve (1985, p. 185): “Vale para o capital cinematográfico o que vale para o fascismo no geral: ele explora secretamente, no interesse de uma minoria de proprietários, a inquebrantável aspiração por novas condições sociais.” Nesse sentido, é necessária uma leitura de Benjamin que não faça de suas discussões sobre a revolução proletária, por exemplo, um mero fantasma de um marxismo hoje considerado defasado. Os espectros de Marx são ao mesmo tempo mais numerosos e, efetivamente, extemporâneos em sua contemporaneidade (AGAMBEN, 2009). 

  3. A esse respeito, como escreve Jacques Aumont (2004, p. 37-38), o cinematógrafo Lumière “tinha ao menos um inconveniente técnico sério […]. Essa câmera, com efeito, não permitia enquadrar. Não apenas ela não tinha (evidentemente) um visor reflex, como não tinha visor algum.“ O que implica que o teste é tanto um teste do sujeito do olhar quanto dos objetos do olhar do aparelho.