O modo de encenação da tecnologia de guerra em Captain Phillips (2013) converte o aparato bélico dos Estados Unidos em uma das principais atrações do filme de Paul Greengrass, apesar de não ser um típico filme de guerra. Os drones e suas câmeras de vigilância remota, os helicópteros e os aviões, os armamentos de alta tecnologia e suas miras luminosas de lasers vermelhos, os dispositivos de visão noturna e de escuta através de paredes, os computadores e o processamento de informações em rede e os soldados vestidos com os equipamentos mais diversos são alguns dos recursos tecnológicos de uso militar que entram em cena nessa (in)tensa representação cinematográfica do resgate de Richard Phillips, o comandante do navio mercante Maersk Alabama que foi sequestrado por piratas da Somália em meados de 2009.
Com efeito, a produção de um filme como Captain Phillips depende, em parte, da cooperação institucional entre Hollywood e as Forças Armadas dos EUA, no caso os SEALs, que fazem parte da Marinha. Esse é um fato crucial cujas consequências estético-narrativas e efeitos políticos devem ser analisados, para que seja possível compreender uma das características mais importantes do filme.
Efetivamente, cada um dos elementos do aparato bélico aparece, em Captain Phillips, como parte de uma espécie de desfile militar de alcance e de proporções amplificados pelo dispositivo cinematográfico. O cinema se converte em um prolongamento da tecnologia de guerra. Assim como em filmes de guerra mais típicos, cabe ao espectador acompanhar o espetáculo da tecnologia de guerra em Captain Phillips como se assistisse à exibição pública e à consagração festiva das armas nacionais estadunidenses.
Entre as versões em disputa sobre os acontecimentos a que se refere a narrativa, o filme de Paul Greengrass não deve ser considerado, simplesmente, como a adaptação do livro que Phillips escreveu com Stephan Talty sobre sua experiência, A Captain’s Duty: Somali Pirates, Navy SEALs, and Dangerous Days at Sea, e, portanto, como uma tradução cinematográfica da versão que Phillips procurou consagrar por meio da escrita. Em vez disso, o que está em jogo em Captain Phillips é a produção de um suplemento sensório-cognitivo, por meio do uso do aparelho cinematográfico, ao corpo militar aparelhado que possibilitou o resgate de Phillips, com a execução de três dos piratas e a prisão de outro. Se o filme corresponde a uma versão dos acontecimentos, é aquela que corresponde ao aparato bélico dos EUA, aos traços e à memória que produz.
Embora a tecnologia de guerra dos EUA permaneça fora de quadro até a parte final da narrativa, ela desempenha papel estrutural desde o início. Percebi isso na parte final do filme, em que os militares de elite da Marinha dos EUA, conhecidos como SEALs, abordam o barco salva-vidas, onde Phillips é refém dos piratas. Um dos recursos de que fazem uso em sua aproximação é a colocação de um aparelho de escuta na lateral externa do barco salva-vidas, para poderem saber o que dizem os piratas em seu interior e complementar, com dados sonoros, os dados visuais que reúnem sobre a situação, por meio de óculos de visão noturna, de câmeras manejadas por oficiais e da câmera de visão aérea do drone ScanEagle.
A colocação da escuta chamou minha atenção para a importância assumida por dispositivos de escuta e de visualização – em suma, de produção de imagens – para a tecnologia de guerra. Meu argumento nessa pequena nota – que complementa minha crítica do filme e minhas notas sobre o racismo e a célula melodramática – é que o cinema praticado em Captain Phillips deve ser entendido como mais um tipo de dispositivo de produção de imagens de que dispõe o corpo militar estadunidense – tanto a corporação a que pertencem os indivíduos em seus diversos níveis hierárquicos quanto os corpos individuais, a que se acrescenta o suplemento tecnológico de vários aparelhos, formando uma espécie de supracorpo teletecnológico.
Por meio do dispositivo cinematográfico, o corpo militar aparelhado pode estender seu alcance, retrospectivamente, sobre o passado da ação militar. Ao encenar o ponto de vista dos somalianos, seus preparativos, suas ações antes do início do sequestro, na perseguição ao Maersk Alabama, o cinema suplementa os dispositivos militares de produção de imagens: se estes procuram controlar a situação durante a abordagem dos SEALs, tendo em vista o objetivo de resgatar Phillips, o cinema se acrescenta, como um excesso, à necessária lacuna que os dispositivos militares não podem acessar, a não ser por meio da reunião de dados coletados nas operações de inteligência, que permitem aos oficiais identificarem os piratas e suas relações familiares ao abordarem o barco em que mantêm Phillips como refém.
O cinema torna público um excesso ficcional que preenche a lacuna dos dispositivos militares e transborda o enquadramento técnico e confidencial que reúne, como informações táticas, os dados coletados nas operações de inteligência. Por meio da apropriação do aparelho cinematográfico e da domesticação de sua potência cosmopoética como parte da tecnologia de guerra, Captain Phillips confere ao corpo militar aparelhado a capacidade de fabricar seu contexto de legitimação.