Categorias
Críticas

O Lobo de Wall Street: as figuras do excesso e a tragédia sem fim

A prática do cinema do excesso, a que Martin Scorsese se dedica em O Lobo de Wall Street, confere ao filme riqueza estética e complexidade ética singulares, que comentam a tragédia sem fim em que nos encontramos.

O excesso como tema e a faísca da suspeita

Em O Lobo de Wall Street (2013), Martin Scorsese pratica o cinema do excesso. Em primeiro lugar, e de forma mais óbvia, o excesso é um dos temas abordados pelo filme. A narrativa acompanha a hybris de Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), desde o momento em que chegou a Wall Street, em busca de trabalho e, sobretudo, de dinheiro. Sua trajetória será excepcional; sua ascensão, avassaladora; sua crise e a queda de seu mundo, previsíveis – mas sem qualquer tipo de fim trágico que pudesse vir a consumar uma moral superior.

O corretor de bolsa de valores assume, em momentos diversos, posições diferenciadas na organização da narração fílmica. Quando sua voz over comenta sua história de vida, ele desempenha a função de narrador; quando o olhar para a câmera e, portanto, a quebra da quarta parede permitem a interpelação direta do espectador, ele desempenha a função de apresentador; por fim, quando permanece em quadro sem interromper a ficção da auto-suficiência do espaço e do tempo da narrativa, recompondo assim, ao menos temporariamente, a quarta parede, ele desempenha a função de personagem.

O filme começa com um anúncio publicitário da corretora de Belfort, a Stratton Oakmont, em que um leão atravessa os corredores entre as mesas de um amplo escritório, ocupadas por corretores apressados e atarefados. Quando vemos, depois da solenidade do anúncio, um grupo de funcionários se preparando para arremessar um anão em um enorme alvo, em cujo centro encontra-se o símbolo do cifrão, o contraste aparente com a sequência do anúncio estabelece o sentido fundamental do que O Lobo de Wall Street pretende realizar: uma revelação do estranho e fascinante universo do capital financeiro especulativo, que se inscreve, desde a aparição do leão no anúncio publicitário, sob o signo da selva, da selvageria.

Belfort interrompe a sequência do arremesso do anão pouco antes de sua figura se chocar com o alvo. A posição do alvo coincide, no plano cuja imagem se congela, com a câmera. Enquanto o choque do corpo do anão com a câmera-alvo deixa de se realizar no filme e passa a ocorrer na imaginação do espectador, o olhar de Belfort para a câmera tem, igualmente, um efeito de choque que captura a atenção espectatorial: quebra a quarta parede, isto é, perturba a separação entre o lugar da narrativa, de um lado, e o lugar do espectador.


The Wolf of Wall Street 1.jpg

Na ponte instável que se estabelece entre filme e espectador, Belfort explicita o motivo recorrente, a metáfora fundamental do filme de Scorsese: o dinheiro como droga. Efetivamente, não se trata de mera metáfora: há um aspecto literal na entrega de Belfort a seus vícios – e não apenas ao dinheiro, mas também aos comprimidos de Quaaludes (ou simplesmente ludes), ao sexo com prostitutas e às suas aparições espetaculares no escritório ou em festas, com um microfone nas mãos. Aos 26 anos, Belfort gaba-se de ter ganhado US$ 49 milhões em um ano (lamentando, ironicamente, ter permanecido US$ 3 milhões aquém de faturar US$ 1 milhão por semana). Sua motivação como narrador e apresentador é declarada: contar como chegou a esse ponto.

Se a interrupção da sequência do arremesso do anão confere a Belfort uma posição privilegiada de mediação entre olhar espectatorial e universo diegético, a metáfora do dinheiro como droga insere uma faísca de suspeita na nossa relação com o narrador-apresentador-personagem Belfort, que não pode ser somente a de uma transparência ou de uma transferência. A relação que se estabelece entre Belfort e o espectador está atravessada pelos excessos do protagonista e assombrada pelas outras formas de excesso que habitam O Lobo de Wall Street: o excesso como estilo de narração e o excesso como forma de produção de imagens.

O excesso como estilo de narração e a partilha da hybris

A suspeita começa como uma faísca, cuja vaga luminosidade permanece apenas insinuada, durante o flashback em que consiste a maior parte do filme a partir desse momento, sob a forma de pequenos resíduos que interrompem a continuidade da montagem e a auto-suficiência da ficção, ou insinuam outros sentidos, não reconhecidos pelo narrador-apresentador-personagem. Esses são os restos sem nome do mundo que o cinema de Scorsese não chega a expulsar das imagens, construídas de acordo com o modo do excesso que se tornou tão familiar, a ponto de permanecer impensado, em parte da Hollywood contemporânea e na hiper-realidade que seus blockbusters simulam.

No início do flashback, que serve para reconstituir a trajetória pessoal do protagonista, assistimos o que aparece como sua iniciação em Wall Street, realizada pelo chefe da primeira empresa em que consegue trabalho, Mark Hanna (Matthew McConaughey). Depois de conseguir trabalho na empresa de Hanna, Belfort é convidado por ele para um almoço. O diálogo dos dois à mesa antecipa as figuras que continuarão a preencher, no restante do filme, o tema do excesso: Hanna afirma que, para fazer sucesso em Wall Street, Belfort deve se masturbar todos os dias, descarregar suas tensões com prostitutas, manter-se ativo por meio do uso de drogas e, particularmente, deixar de lado toda ilusão hipócrita de que é possível lucrar junto com seus clientes, num jogo em que os dois lados ganham.

No diálogo entre Hanna e Belfort, além de tema, é também o excesso como estilo de narração que se consolida. Embora tenha sido anunciado pela bizarra sequência do arremesso do anão e pelos vislumbres entrecortados que a seguem, dos quais se pode inferir como é a vida ostensiva de Belfort, o excesso como estilo de narração recebe de Mark Hanna sua formulação introdutória mais elaborada. Com efeito, é nas atuações de Matthew McConaughey como Mark Hanna, de Leonardo DiCaprio como Jordan Belfort, de Jonah Hill como Donnie Azoff, entre outros, que, no decorrer de toda a obra, o estilo de narração do filme se deixa habitar pelo excesso. O naturalismo que se costuma associar ao trabalho de atores e atrizes em Hollywood está permeado pelo excesso, que se manifesta nas expressões caricaturais dos rostos, nas contorções dos corpos em meio ao sexo, às drogas e à euforia da especulação (visível nas festas corporativas e nas danças coletivas dos funcionários) e na verborragia de grande parte das falas.

A ascensão de Belfort começa, contudo, às margens do sistema financeiro, depois que a empresa de Hanna vai à falência e ele perde seu emprego. A negociação de “ações-tostão” (papéis de empresas que não têm condições de se inserir na NASDAQ) dá a Belfort a alternativa para continuar no mercado de ações em um momento de crise (o contexto é a “segunda-feira negra” de 19 de outubro de 1987). Por meio da especulação com “ações-tostão” e com base na prática do que Hanna ensinara, especialmente a desconsideração em relação aos clientes em nome do lucro, Belfort consegue ganhar muito dinheiro e alcança as condições para fundar a Stratton Oakmont.

Depois de conhecer Donnie Azoff (Jonah Hill), Belfort procura quatro amigos para formar a base de sua equipe de vendas. Todos têm experiência anterior no mercado de drogas, o que permite à narração a retomada indireta da metáfora do dinheiro como droga, agora numa chave mais complexa, enquanto Lontra (Henry Zebrowski), Chester (Kenneth Choi), Robbie (Brian Sacca) e Brad (Jon Bernthal) são apresentados em quadros frontais, como nos tableaux característicos do primeiro cinema. Se, no início do filme, Belfort explicita a metáfora falando de si mesmo e de seu vício por dinheiro, quando reúne sua equipe inicial para formar a Stratton Oakmont, o sujeito do vício não é mais (apenas) o protagonista. Os corretores que alçarão a companhia de investimentos de Belfort ao sucesso em Wall Street não são ex-vendedores de drogas: eles continuam vendendo, apenas mudaram a droga que comerciam (e na qual são viciados também). Os investidores que Belfort e sua equipe conseguem capturar com seus discursos e com suas performances ao telefone (captura que encenam, entre si, com deboche e gestos sexuais) são, igualmente, viciados em dinheiro, sobretudo no dinheiro como fantasma do desejo, como matéria de sonho – em particular, do chamado “sonho americano”.

O sonho de ganhar dinheiro fácil é o principal trunfo que Belfort e sua equipe cada vez mais numerosa exploram para vender ações e fazer circular o dinheiro de inúmeros clientes, sem qualquer preocupação com o retorno dos lucros a eles. Embora, a certa altura do filme, a primeira esposa de Belfort tenha sugerido a ele que procurasse clientes mais ricos, como se, dessa forma, fosse possível enobrecer a especulação financeira que ele pratica, a narração inclui, mais tarde, a reação indignada de Belfort ao perfil que a revista Forbes escreve sobre ele, em 1991, no qual ele é apresentado como um “Robin Hood distorcido [twisted]” que tira dinheiro dos ricos e dá a si mesmo e a sua equipe inescrupulosa. Dessa forma, o filme introduz, indiretamente, a comparação com Robin Hood, ressaltando, depois, sua inadequação, sua distorção.

A hybris de Belfort o distancia de qualquer possibilidade de redenção moral, como demonstra o destaque que a narração do filme confere à interpretação da primeira mulher de Belfort a respeito da matéria da Forbes: “Não existe má publicidade” (“There’s no such thing as bad publicity”), diz ela, logo antes de uma enorme quantidade de novos candidatos a vagas de emprego na Stratton Oakmont aparecer na companhia (talvez o filme de Scorsese devesse ser interpretado, a partir dessa frase, como publicidade ruim, embora eficaz, para Belfort, em sua carreira atual de palestrante). A hybris e a impossibilidade de redenção moral de Belfort são compartilhadas, dessa forma, tanto com os investidores viciados em dinheiro que, seduzidos, entram no jogo da especulação (mesmo que sejam desfavorecidos pelas manobras que Belfort e sua equipe realizam), quanto com os que, interessados em trabalhar para ele, perseguem o sonho do dinheiro como o fantasma de um desejo imponente. Em alguma medida, qualquer espectador do filme, fascinado com a riqueza representada na tela, participa da partilha da hybris e da impossibilidade de redenção moral de Belfort.

Para construir a partilha da hybris de Belfort, O Lobo de Wall Street orquestra as atuações excessivas, exageradas e caricaturais da maior parte de suas personagens por meio de uma montagem reflexiva, isto é, consciente de sua função inventiva. Embora a montagem em continuidade prevaleça no decorrer do filme, seu domínio não é absoluto: há excessos que a transbordam. Por exemplo, quando Belfort liga para seu primeiro possível investidor, na pequena companhia que negocia ações-tostão em que começa, efetivamente, a trabalhar como corretor, vende ações de uma empresa chamada Aerotyne, sobre a qual mente descaradamente, dizendo que é uma enorme e promissora empresa para investimento. Sua mentira é desmascarada pela montagem, que introduz um plano descontínuo, em termos espaciais e temporais, identificado como a sede da Aerotyne, que parece ser uma garagem qualquer de alguma casa suburbana. A descontinuidade espacial e temporal do plano da sede da Aerotyne, que obedece a motivações extra-diegéticas e interpretativas, em vez de diegéticas e narrativas, revela a mentira de Belfort e confere à sua ação, ao mesmo tempo, um efeito cômico e um sentido moralmente questionável.

A encenação com quebra da quarta parede – que ocorre tanto nos momentos em que Belfort se dirige à câmera quanto na apresentação de sua equipe em tableaux – e a descontinuidade da montagem na inserção do plano da sede da Aerotyne são procedimentos exemplares que excedem a moldura do modelo narrativo clássico e insinuam a faísca da suspeita na relação entre o espectador e o narrador-apresentador-personagem Belfort. A suspeita constitui o fundamento da relação do espectador com o filme, o que impede a acusação, infelizmente frequente e evidentemente equivocada, de que o filme de Scorsese “glamouriza” o comportamento criminoso de seu protagonista. É comum se atribuir ao filme ou a seu diretor sentidos que o espectador projeta nas imagens. Além disso, no caso de O Lobo de Wall Street, a suposta “glamourização” é parte do estilo de vida do protagonista e da atenção midiática que recebe. A relação entre o diretor e seu filme, de um lado, e o(s) personagem(ns), a narrativa e as representações que a constituem, de outro, é mais complexa, e os sentidos morais e éticos da obra, menos óbvios.


The Wolf of Wall Street 8.jpeg

Para entender a complexidade do filme, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que a encenação e a montagem de O Lobo de Wall Street são predominantemente clássicas em sua forma. Na encenação, verificam-se a obediência à escala clássica de planos, assim como o uso da variabilidade de enquadramentos e da mobilidade do olhar espectatorial em função de propósitos narrativos, em planos cuja duração é, predominantemente, curta. Na montagem, verificam-se aspectos importantes do paradigma da continuidade clássica, como a obediência a regras de combinação de olhar, o uso do esquema campo-contracampo, recorrente nos diálogos, e a construção linear da ação (da trama) para facilitar sua inserção no tempo da narrativa (da fábula) que cada espectador procura construir mentalmente.

Entretanto, a perturbação do modelo do cinema narrativo clássico, por meio da quebra da quarta parede na encenação e do recurso à descontinuidade na montagem, introduz, na trama, evidências sensíveis de sua essencial artificialidade, ou do excesso de artificialidade e de invenção que contamina seu naturalismo realista predominante. Outros exemplos de evidências sensíveis da artificialidade da trama são as sequências em câmera lenta e a sequência em que Belfort, absolutamente alterado por um comprimido vencido de Quaalude, cujos efeitos o afetam de forma retardada e intensa, tem que descer as escadas do clube aonde tinha ido para usar um telefone público (evitando assim as escutas do FBI em seus telefones particulares). Quando ele se depara com a escada, a montagem introduz o que aparece como um plano subjetivo, no qual os degraus são muito mais numerosos do que nos demais planos da mesma sequência.

De fato, é frequente no cinema clássico o recurso a procedimentos de encenação que alteram a duração e os sentidos do movimento, bem como o espaço e o tempo da ação, para comunicar estados alterados de consciência e percepções subjetivas com sentidos suplementares. Sua aparição é sempre ambivalente em relação ao realismo naturalista: por um lado, reforça-o, ao inscrever na imagem a visão de uma personagem e, dessa forma, vincular as imagens ao universo diegético; por outro, subverte-o, ao revelar, na superfície das imagens, a instabilidade e até mesmo a aniquilação absoluta de sua suposta relação de representação e de transparência com a realidade (da narrativa ou do mundo). A ambivalência dos recursos estilísticos de alteração do ritmo do movimento representado nas imagens, ou de modificação visual do conteúdo das mesmas (que remontam a tradições cinematográficas como o expressionismo e o impressionismo), conduz à substituição do eixo de relação imagem-realidade pelo eixo de relação imagem-imagem, que se torna crucial tanto para a comédia quanto para a tragédia que se condensam em O Lobo de Wall Street.

Um dos momentos mais significativos da importância dramática do eixo de relação imagem-imagem é aquele em que, depois de chegar de volta do clube a sua casa, Belfort tem uma briga com Azoff, com o objetivo de impedir este último de continuar falando no telefone, pois Belfort fora informado que suas linhas estavam grampeadas. Enquanto a encenação da briga é caricatural, pois os movimentos dos corpos das personagens envolvidas são lentos e desajustados, devido aos efeitos retardados do Quaalude que consumiram cerca de 2 horas antes, a montagem da sequência estabelece um paralelo entre Belfort e a personagem de desenho animado conhecida como Popeye. Por meio de montagem paralela, Scorsese compara o uso de espinafre por Popeye, que se torna mais forte quando come uma lata da verdura, com o uso de cocaína por Belfort, que só consegue chegar a Azoff depois de cheirar um bocado de pó. Nesse contexto, o eixo de relação imagem-imagem, isto é, Belfort-Popeye, aparece, para o espectador, como fonte de efeito cômico e elemento de narração dos acontecimentos, conferindo sentido a seu encadeamento.

O excesso como forma de produção de imagens: “Stratton Oakmont is America”

Ao perturbar a suposta relação representativa e transparente entre as imagens e a a realidade, o recurso a procedimentos estilísticos que evidenciam a artificialidade da narração fílmica e da trama alimenta a faísca de suspeita que se instala, desde o início de O Lobo de Wall Street, entre o espectador e o narrador-apresentador-personagem Belfort. A suspeita permanecerá como uma faísca até o último plano do filme, quando Belfort faz uma palestra. No equilíbrio instável que sustenta a faísca da suspeita e impede que ela se torne um incêndio, uma terceira figura do excesso vem habitar o filme de Scorsese: o excesso como forma de produção de imagens.

É comum se associar os efeitos especiais a filmes de fantasia, de ficção científica e outros gêneros ou temáticas em que todo realismo se subordina à liberdade da imaginação, em que o ilusionismo das imagens é assumido, explicitamente, como parte do espetáculo. Em O Lobo de Wall Street, contudo, imagens geradas por computador (computer-generated imagery – CGI) participam da construção de espaços narrativos cuja representação se pretende realista e subordinada à realidade do mundo em que vivemos, e não à imaginação. Os efeitos especiais são dissimulados como condição de possibilidade do espetáculo fílmico.

Ao excesso como tema, que é um dos conteúdos das imagens de O Lobo de Wall Street, e ao excesso como estilo de narração, que é a forma como as imagens do filme são compostas e encadeadas para aparecerem na tela de modo a sustentar e a conter, ao mesmo tempo, a faísca de suspeita cuja pulsação define a atenção espectatorial, acrescentam-se as figuras do excesso na forma de produção das imagens, isto é, na sua fabricação técnica, antes, durante e depois da concepção estética de seu lugar ou de seu papel no filme. O uso de imagens geradas por computador permite a Scorsese alterar a geografia dos espaços em que filma – como o entorno da mansão em que Belfort realiza uma de suas grandes festas, na qual conhecerá sua segunda esposa, Naomi (Margot Robbie) – e a disposição de pessoas e objetos nos quadros – como na sequência do jogo de tênis na prisão. Esses e outros exemplos podem ser conferidos no vídeo abaixo:

A alteração da geografia e da encenação por meio de dispositivos de tecnologia digital permite a Scorsese o exercício de um controle mais minucioso das imagens que compõem seu filme. Em vez da “geografia criativa”, que consiste na possibilidade de, após filmar em momentos e locais diferentes, construir, por meio da montagem, uma noção de unidade espaço-temporal entre os planos filmados, Scorsese adota procedimentos característicos do que se pode chamar “geografia sintética”, em referência às tecnologias de imagem de síntese envolvidas na fabricação de espaços, tempos e relações espaço-temporais simulados. Em vez do trabalho sobre o enquadramento e sobre a disposição dos elementos dentro do quadro, Scorsese explora, nesse contexto, as possibilidades abertas pela tecnologia digital para a manipulação de elementos de cena, suprimindo e acrescentando, deslocando e alterando as imagens, que, embora sejam vistas como planos unificados, poderiam ser analisadas por meio de sua decomposição em unidades menores, até o nível dos pixels, em que o que é imagem visual existe no limiar da condição de informação numérica, de código binário.


The Wolf of Wall Street 7.jpeg

Entre as figuras ou as formas do excesso, Stratton Oakmont pode aparecer, em O Lobo de Wall Street, como a “América”, isto é, os Estados Unidos: “Stratton Oakmont is America”, afirma Belfort a certa altura. Isso, diz o protagonista, é o que o FBI e o governo dos Estados Unidos não conseguem compreender, como mostra o fato de continuarem a investigá-lo. A investigação conduzirá, finalmente, à queda de Belfort, à sua concessão às autoridades, cedendo informações em troca de redução da duração de sua pena prisional, assim como ao desmoronamento da fortuna (no duplo sentido do termo) da Stratton Oakmont.

Por meio da posição híbrida de Belfort como narrador, apresentador e personagem, a frase “Stratton Oakmont is America” dissemina, sobre o filme, sua potência alegórica (a qual excede, contudo, os elementos que funcionam como seu veículo, como veremos). As pessoas visadas por Belfort e sua equipe são aquelas que compartilham sua hybris, a hybris do próprio “sonho americano”, a perversão e a perversidade de seu horizonte imaginativo mais fundamental e descomedido, em que o dinheiro é droga pesada, desejo absoluto, pulsão de morte.

Na frase de Belfort, reconfigura-se a constelação metafórica da selvageria – que foi insinuada no anúncio publicitário que abre o filme e confirmada pelos excessos na sequência do arremesso do anão e em inúmeras sequências seguintes, nas quais o comportamento de Belfort e de seus companheiros é grotesco em sua selvageria. Se a Stratton Oakmont é a “América”, a selvageria está em toda parte, e não há saída, mesmo na imposição do ordenamento jurídico-policial do Estado. A vitória do agente Patrick Denham (Kyle Chandler) sobre Belfort é consumada com ironia pela narração, que encena, depois que Belfort é preso, o retorno de Denham para sua casa de metrô, tal como ele o havia descrito para Belfort quando fora até seu iate conversar com ele. A retomada do intenso diálogo sobre o barco perturba o sentido de punição da hybris que poderia ser reconhecido na prisão de Belfort: a visão de Denham no metrô, distante do mundo do capital financeiro representado pelo protagonista, continuando com sua vida, evidencia a inalterabilidade do estado de coisas em que a queda de Belfort se insere.

A queda de Jordan Belfort parece previsível desde o início, embora os sinais mais evidentes de sua aproximação comecem a aparecer quando, sob investigação do FBI, o protagonista busca formas de resguardar seu dinheiro e acaba se aproximando de um banqueiro da Suíça. Quando falece a tia de Naomi, Emma (Joanna Lumley), que aceitara que a conta na Suíça fosse aberta em seu nome para evitar problemas para Belfort, sua queda se torna inevitável. Finalmente, quando vai para a prisão, encerra-se sua trajetória na Stratton Oakmont e em Wall Street. Entretanto, se desaparecem os elementos do mundo da narrativa que funcionavam como veículo da alegoria expressa na frase “Stratton Oakmont is America”, a alegoria excede seu veículo, a potência alegórica persiste até o final do filme – e além.

Quando Belfort deixa a prisão, dá continuidade a sua atuação como palestrante, que iniciara antes de ser preso. Com efeito, sua primeira prisão interrompe a gravação de um anúncio em que promete ensinar a qualquer um a arte de vender. No final do filme, vemos Belfort em uma de suas palestras, que ele inicia com o mesmo pedido que fizera a Brad, em meio aos demais companheiros, quando se reuniram para dar início a suas atividades especulativas, antes mesmo de criar a Stratton Oakmont: “Venda esta caneta para mim.” (“Sell me this pen.”) Nenhum dos inúmeros participantes da palestra – que compartilham a hybris de Belfort e do sonho americano, pois estão ali em busca de aprender como vender e como ganhar muito dinheiro – consegue dar a Belfort a resposta que Brad lhe dera, ou qualquer outra resposta que ele considere eficaz. Ele vai adiante, de um em um, com o mesmo pedido, enquanto a câmera oferece ao espectador a oportunidade de perder-se entre os olhares do público da palestra, que espelham o olhar espectatorial.

No fim da Stratton Oakmont e da trajetória de Belfort em Wall Street, não há moral a ser confirmada pela purificação de uma tragédia, não há sentido da vida ou das coisas do mundo a ser recuperado pela restituição de alguma ordem, não há transcendência em que se possa fundar uma orientação virtuosa e ética diante da história. Belfort apenas continua vendendo o “sonho americano” e sua hybris, sob outra forma: em vez de ações, que supostamente poderiam multiplicar o valor de um investimento, agora ele vende palestras que prometem fórmulas de venda.

No espelho dos olhares do público de sua palestra, persiste a potência alegórica da frase de Belfort, “Stratton Oakmont is America”. Nesse espelho, é possível reconhecer o espectador do filme, cujo olhar se encaminha na direção do espetáculo “Jordan Belfort”. Mas esse reconhecimento não assegura nenhuma identificação redentora, nenhuma revelação transcendente. Ao contrário, no jogo de espelhos em que o olhar espectatorial é capturado, ele aparece como parte dos 99%, na contraposição (que se tornou mais conhecida depois da crise de 2008 e de movimentos de ocupação como o Occupy Wall Street) aos 1% que detêm a maior parte do capital. No plano final de O Lobo de Wall Street, é uma tragédia sem fim que se insinua: a tragédia da manutenção do estado de coisas que produz Jordans Belforts, a tragédia da não interrupção do fundamento especulativo da economia capitalista, que o capital financeiro internacional torna visível, mas que atravessa todas as atividades econômicas. Se a suspeita foi uma faísca durante todo o filme, o incêndio que ela pode desencadear permanece destinado a ocorrer, talvez, um dia, fora do cinema. Talvez, aliás, ele já esteja ocorrendo.