Publicado inicialmente em 23/08/2022, como parte do dossiê #1 – a rainha diaba: um caleidoscópio endiabrada, no camarescura. Meus agradecimentos à Lorenna Rocha pelo convite e pela hospitalidade ao que acabou se tornando um ensaio atravessado pela vertigem do filme.
-1. Movimento precedente ou Quando o corpo ameaça perturbar a ordem do corpus
No cinema, não deve restar dúvida: não há obra, isto é, não há corpus, sem trabalho e controle de corpos, assim como não há corpo que não desaloje e perturbe toda possibilidade de unificação de uma obra, de um corpus. Os corpos, em sua singularidade reiteradamente deslocada como espectro, e os corpus, em sua generalidade de conjuntos de temas e configurações estéticas que se manifestam em um ou mais filmes, permanecem em uma tensa articulação disjuntiva.
Trabalho e controle de corpos: é isso que está em jogo na mise-en-scène, de forma mais evidente, mas também antes e depois do trabalho de direção em que ela se constitui: no planejamento e na organização das diárias, incluindo a alimentação, a elétrica etc., assim como na montagem, na finalização, etc. Trabalho e controle de corpos: é o que se requer de cada espectador e espectadora que encontra um filme, em geral, e mais frequentemente na imobilidade quase total de um assento, com seu corpo cercado pelo escuro e apenas vagamente visível à luz variável do filme que se projeta, que se ilumina em uma tela.
Não há corpus sem trabalho e controle de corpos, mas também é preciso reconhecer que nenhum corpo se submete completamente a um corpus, a uma obra (seja um único filme ou um conjunto): depois que existe um filme, a singularidade de um corpo sempre ameaça perturbar a ordem da mise-en-scène que o atravessa, desviando o olhar de quem, para seguir a narrativa ou experimentar uma visão dirigida da cena, deveria prestar atenção em outra coisa, não na opacidade dos corpos.
0. Através da cortina de fitas coloridas
Com movimentos de câmera que disseminam as intensidades múltiplas dos planos, em meio a uma decupagem de cortes secos e precisos, a mise-en-scène de A Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1974) é rigorosa desde o início do filme. Os primeiros planos, onde somos apresentados à corte da Rainha Diaba (Milton Gonçalves), resguardam a beleza intensa das multiplicações de cores que acompanham o longa até seu final. A Rainha Diaba é uma ópera de cores, que frequentemente cantam algo diferente do que o filme narra. Por isso, complica-se o trabalho e controle de corpos de sua mise-en-scène, associada a um conjunto de interesses narrativos (condensados em temas como prostituição, violência, etc.) e convenções de gênero (reconhecíveis na trama de crimes e nas derivas cômicas), com um efeito de multiplicação espectral que conjura outras energias afetivas (em suma, uma abertura ao estranho e às suas alegrias).
Na sequência inicial, enquanto ouvimos a música Índia, de Cascatinha e Inhana, vemos a cafetina Violeta (Yara Cortes, creditada como Iara Cortes) adentrando o salão do bordel: ela caminha na direção da câmera, que vai também ao seu encontro. Esse movimento convergente continua até o corte que conduz a um plano, que a mostra através da cortina de fitas coloridas pela qual havia entrado, enquanto Violeta caminha em direção ao que, no plano seguinte, se revela ser a vitrola de onde toca a música. A personagem interrompe a música e dispensa as prostitutas e clientes do bordel, porque, como diz, “as visitas da Rainha estão chegando”.
A corte da Rainha Diaba, então, entra em cena gradualmente, sob uma música extra-diegética de baixo. Enquanto entram um a um, pela mesma porta e cortina de fitas coloridas por onde passou Violeta, avistamos alguns de seus súditos, que vamos encontrar ao longo da narrativa: Anão (Lutero Luiz, creditado como Lutero Luis), Manco (Wilson Grey), Gravata (Hilton Prado) e Peludo (?)1, Dentinho (Kim Negro, creditado como Quim Negro) e Robertinho (Arnaldo Moniz Freire) chegam primeiro; conversam enquanto aguardam; depois da chegada de Coisa Ruim (Procópio Mariano), seguem para o quarto em que a Diaba está com Lilico (Carlos Prieto).
Diferentes assinaturas autorais podem definir o enquadramento do corpus de um filme e dos corpos que fazem um filme – os quais, através desse enquadramento, são distribuídos em condições de maior ou menor visibilidade, dentro de uma economia figural em que seus papéis se constituem como funções narrativas individualizadas. Como o filme de 1974, constitui, compõe ou participa de uma ou mais obras? Como compreender o trabalho e controle de corpos que o orienta? A cada escolha ou ênfase interpretativa, A Rainha Diaba se situa em um conjunto ou corpus diferente, ao mesmo tempo em que a multiplicidade de outros corpos que o atravessa continua a perturbar ou desfazer esse pertencimento. Algumas possibilidades podem ser destacadas.
1. Assinaturas contextuais
Pode-se situar o filme em um corpus associado ao contexto histórico da ditadura civil-empresarial-militar e do cinema dos anos 1970. Aqui é recorrente se assinalar as relações de A Rainha Diaba com o Cinema Novo e com o Cinema Marginal, entendidos como movimentos relacionados, mas distintos. Também se pode recordar aqui o diálogo do filme com gêneros cinematográficos amplamente apreciados pelo público da época, como os filmes policiais e as comédias populares.
Uma espécie de assinatura contextual se torna legível, por meio do reconhecimento do contexto extra-fílmico (social, político e artístico) e dos eventuais rastros e impressões que deixa no filme – que permanece, contudo, irredutível à conjuntura em que surgiu. A sobrevida de um filme em relação ao seu contexto social e artístico de surgimento pode se rarefazer ou se intensificar no decorrer da história de sua circulação e de suas exibições – e é interessante notar, quanto a isso, que a questão das condições em que um filme continua sendo assistido implica, entre outros fatores, o problema das políticas de preservação do patrimônio cinematográfico e audiovisual.
É isso que torna tão significativo escrever sobre A Rainha Diaba à luz difusa do lançamento de uma cópia nova, em formato DCP 4K, criada em iniciativa do Janela Internacional de Cinema do Recife (Edição Especial – 2022), “em parceria com a organização Cinelimite e o laboratório Link Digital/Mapa Filmes, em processo supervisionado pela preservadora Débora Butruce a partir de negativos e positivos provenientes do Arquivo Nacional e do CTAv”, como se lê na divulgação das sessões do filme pelo festival.
É interessante como a nova cópia intensifica a sobrevida de A Rainha Diaba em relação ao seu próprio contexto histórico, tornando possível retomar e enfatizar a nomeação de seu pertencimento a uma linhagem pouco (re)conhecida na história do cinema brasileiro: a do cinema queer – ou cuir, em uma tradução latino-americanista do termo em inglês que aponta, de modo geral, para experiências de gêneros e sexualidades dissidentes.
Se queremos fazer justiça à ópera de cores que se dissemina no longa-metragem de 1974, é preciso reconhecer que o pertencimento do filme a uma linhagem cuir do cinema brasileiro deve ser entendido em pelo menos dois sentidos. Em parte, decorre do fato de que o longa encena personagens cuir, a começar pela Rainha Diaba, a quem Milton Gonçalves procurou interpretar de forma a evidenciar “seus anseios e contradições”2. Esse pertencimento decorre também do modo como o filme se elabora, esteticamente, de modo inclassificável, em termos de gênero narrativo e de sentidos sociais e simbólicos: a ópera das cores perturba a sedimentação da trama e de seus temas mais evidentes.
Na sobrevida do filme, para além de seu contexto histórico, seu pertencimento a um corpus definido em termos contextuais se torna mais visível, ao mesmo tempo em que seu corpo singular, em sua materialidade experiencial novamente disponível para cada espectador e espectadora, se revela irredutível a qualquer contexto – em suma, inclassificável e, portanto, cuir em um sentido derivativo e radicalmente aberto.
2. Assinaturas autorais
Pode-se também compreender o filme como (parte da) obra de seu diretor, conforme uma muito difundida e consagrada concepção de autoria cinematográfica, especialmente marcante na tradição cinéfila tributária da politique des auteurs. Aqui, para falar de A Rainha Diaba, é recorrente a menção ao primeiro longa-metragem de Fontoura, Copacabana Me Engana (1968), e seria preciso reconhecer ainda sua matriz autoral em outros filmes, anteriores e posteriores – incluindo seus documentários.
Por outro lado – e isto é uma obviedade que, no entanto, será sempre necessário recordar, se quisermos reconhecer, em um filme, a singularidade de sua arte, de seu processo, de sua experiência -, A Rainha Diaba insiste em escapar do corpus que se delimita com base na assinatura de Fontoura, na medida em que outros corpos entraram em jogo para que o filme existisse, escrevendo-o e/ou participando de seu processo de elaboração e realização.
Se é possível consagrar o reinado da assinatura de Fontoura em A Rainha Diaba – ao menos do ponto de vista da concepção mais difundida de autoria para pensar o cinema (em que esse tipo de atribuição está associada ao diretor, ao cineasta como responsável pela mise-en-scène), é preciso reconhecer que, como a Rainha do título, a assinatura do diretor permanece endiabrada e diabolicamente assombrada por uma legião de outras assinaturas, que a constituem, articulando-se a ela, e podem perturbá-la ou fraturá-la, instaurando disjunções mais ou menos acentuadas.
Pode-se igualmente escolher ou enfatizar, como fundamento do enquadramento interpretativo do filme como corpus – de seu corpo singular como manifestação de um corpo autoral, de seu fazer corpo com outros textos e trabalhos artísticos, enfim, de sua participação no corpo de uma ou outra obra, constituindo-se como corpus -, as marcas de autoria reconhecíveis no argumento do dramaturgo Plínio Marcos, que também assina os diálogos do filme.
Aqui é recorrente a menção a peças como Navalha na Carne (1967) ou Dois Perdidos Numa Noite Suja (1966) – adaptadas para o cinema por Braz Chediak em 1969 e 1970, respectivamente, o que indica que a relação com o cinema é uma das características da obra de Marcos. Também é significativamente frequente a menção ao interesse do escritor por personagens “marginalizadas”, associadas à prostituição, à pobreza, à criminalidade, etc., nas narrativas que compõem sua obra.
Mais uma vez, contudo, o corpus permanece descentrado pelos corpos que o atravessam: A Rainha Diaba escapa à assinatura de seu roteirista e às suas obsessões, na medida em que, no filme (assim como em outros trabalhos de Marcos), podem se tornar legíveis outros temas e configurações estéticas, irredutíveis à compreensão das personagens como “marginalizadas” e à sua associação a categorias que pretendem delimitar problemas sociais. Novamente, o reinado da assinatura se revela diabolicamente assombrado e potencialmente perturbado ou fraturado, na medida em que, por exemplo, os corpos das figuras das margens que o filme convoca como suas personagens se metamorfoseiam em energias figurais variáveis.
3. As assinaturas exorbitantes dos corpos
Pode-se ainda interpretar A Rainha Diaba como (parte do) corpus de Milton Gonçalves (e seria possível, até certo ponto, fazer o mesmo com mais atores e atrizes que deixam suas marcas no filme). Aqui, por se tratar de um ator cuja figura se revela crucial para o filme, o corpus parece se tornar indissociável do corpo que delimita sua assinatura. Afinal, é o corpo negro de Milton Gonçalves que está no cerne da via crucis da Rainha Diaba que ele interpreta no filme.
É como se as energias figurais que esse corpo mobiliza pudessem operar inteiramente a serviço do corpus, mas, em vez disso, novamente o corpo se revela irredutível ao corpus, porque o trabalho de ator de Gonçalves resguarda suas singularidades no campo de relações em que se insere em A Rainha Diaba. De modo geral, o corpo de um ator ou de uma atriz, em um filme, entra em uma dinâmica figural que, em última instância, corre sempre o risco de perturbar ou desfazer sua identidade e sua função narrativa; aqui, os possíveis sentidos perturbadores da Rainha Diaba – em relação ao fechamento do filme como (parte de um) corpus – proliferam e se intensificam por se tratar de um corpo negro.
Ao interpretar uma personagem cuir, o corpo negro de Milton Gonçalves dá à Rainha Diaba uma ambivalência, que exorbita a economia figural em que seu papel se constitui como função narrativa individualizada. Como personagem, a Rainha obedece ao jogo de visibilidade e invisibilidade, de campo e fora de campo, que a mise-en-scène e a montagem organizam. Nessa economia, há uma acumulação primitiva de energia figural, que conduz à aparição da Rainha depois da apresentação de sua corte.
Em seguida, o capital figural da Rainha deve circular, distribuindo-se a cada aparição com uma espécie de magnetismo (convocando a câmera, o nosso olhar), em meio ao movimento narrativo da tentativa de destituição de seu reinado. Finalmente, a ruína generalizada que constitui o desfecho da narrativa corresponde a um retorno do capital figural à Rainha, como se a morte física da personagem correspondesse, nesse círculo econômico, à consagração de seu reinado simbólico. Nesse círculo econômico, raça, sexualidade e violência são alguns dos valores de troca que definem a personagem como uma figura desviante.
A ambivalência que o corpo negro de Milton Gonçalves dá à Rainha é justamente isso: algo que se dá, algo dado, em suma, uma dádiva que, como tal, interrompe o movimento do círculo econômico com a abertura das inúmeras fraturas de pequenas explosões. Essas explosões amplificam o que, na economia figural da narrativa, são aparições carregadas de magnetismo, inscritas no círculo econômico. Enquanto as aparições da personagem culminam em um retorno restitutivo que consagra simbolicamente, com sua morte, o reinado da Rainha, as explosões do corpo de Milton Gonçalves interrompem o movimento circular da narrativa. Na dádiva, raça, sexualidade e violência perdem seu valor de troca, na medida em que o corpo se despersonaliza, isto é, deixa de ser redutível à condição de personagem da narrativa.
Uma das possibilidades de um corpo quando se converte em personagem de uma narrativa é o que se poderia denominar, segundo um modelo cristão, de paradigma da via crucis. Principalmente quando se trata de um protagonista na ordem narrativa instaurada pelo filme, a elaboração dos sentidos da via crucis como via dolorosa do corpo culmina em alguma forma de redenção da personagem. É o corpo da Rainha como personagem de uma alegoria da ordem social brasileira, segundo uma possível interpretação mais fechada do filme.
Porém, segundo uma rigorosa perversão diabólica que assombra esse paradigma, a trajetória de uma personagem aparece também como o desvio ou extravio, a perda de rota e a multiplicação de caminhos de seu corpo. Por ser corpo, uma personagem – mesmo protagonista – sempre atravessa sua via crucis como exorbitans Deviatio. Desviado, transviado, todo corpo assombra e destitui seu personagem a partir de dentro, exorbitando-o e perturbando o reinado simbólico da sua persona com o ruído opaco de seu delírio feito carne, cores, fluido, humor febril – em suma, matéria sempre já ameaçada pela decomposição a que está destinada (como todo corpo, como toda imagem). É o corpo da Rainha como matéria metamorfoseada em energia informe. Afinal, um corpo é sempre ruído e desordem de fúria ou de festa, mesmo que subordinado à narrativa que pretende fazer dele apenas personagem.
4. Cinzas dispersas na encruzilhada
É preciso pensar A Rainha Diaba como uma experiência de encruzilhada. Na encruzilhada, a multiplicação de caminhos se insinua, apesar da possibilidade de unificação narrativa que o filme busca assegurar, justamente porque, no mínimo, uma multiplicidade de efeitos e interpretações resta sempre possível, para cada espectador e espectadora que encontra novamente o filme. Mais fundamentalmente, a multiplicação de caminhos é tanto uma possibilidade estrutural da experiência espectatorial do filme, de qualquer filme, como obra e corpus que permanece aberto, quanto uma das condições necessárias da criação do filme, de qualquer filme, como fulguração decorrente de encontros e desencontros entre corpos.
Na encruzilhada de A Rainha Diaba, o que fulgura não tem transcendência: não há nada que venha de um lugar superior, para investir a narrativa com um sentido final, ainda que se possa desejar fazer isso com o filme. O que fulgura em A Rainha Diaba não se unifica: não há nenhuma luz que venha de uma fonte primordial, para dar ao filme uma resolução simbólica, transformando-o em alegoria estável de um contexto histórico ou de uma sociedade.
Nessa encruzilhada, o que fulgura é proliferação de luzes menores, disseminação de vagas luminosidades, errância de luzes incertas como as de vagalumes que derivam e se encontram em uma noite mais ou menos indefinida. A noite de uma ditadura, por exemplo, da qual não se podia saber, quando o filme foi feito, o quanto aquele poder autoritário e sua duração (naquele momento, em aberto; ainda hoje, sobrevivente de diversas formas) seriam capazes de destruir. Também a noite de um apagamento ainda hoje violentamente persistente dos modos de existência cuir, na sociedade e no cinema brasileiros.
É sobre o fundo dessa noite que a ópera das cores faz pulsar as vagas luminosidades dos mil e um corpos da Rainha Diaba: nem o corpo de Milton Gonçalves nem os corpos do “povo” de sua Rainha podem ser reduzidos às funções narrativas que os constituem como personagens, justamente porque o que resta, depois que o filme termina, não é a cinza estéril decorrente do holocausto do desfecho, mas uma espécie de cinza tremeluzente – a cinza de um baseado, talvez, que aqui o cinema faz fulgurar muito além da última ponta.
5. Fulguração
Para ser breve: enquanto o rei medieval se desdobrava em dois corpos, segundo a teologia política cristã analisada por Ernst Kantorowicz3, aqui o cinema – sobretudo Milton Gonçalves, mas jamais teria sido possível que ele fizesse isso sozinho – faz brilhar as cinzas dos mil e um corpos da Rainha, de saída destituídos de qualquer transcendência, destinados à errância do excesso, da hybris e da tragédia do desejo. É por ter um corpo natural e um corpo místico, um corpo físico mortal e um corpo simbólico imortal, que a figura do rei medieval pode sobreviver à sua própria morte, sendo possível dizer que o Rei sobrevive já em vida à mortalidade do rei: tudo o que pode falhar ou faltar em seu corpo natural se desfaz ou se apaga em seu corpo místico.
A figura da Rainha Diaba não se realiza dessa forma. Seu corpo místico não é investido de uma transcendência eterna, como no cristianismo; antes, é um corpo de asperezas mundanas, desde o momento no início em que suas pernas aparecem enquanto são raspadas pela lâmina de barbear e depilar que a Rainha maneja ao lado de Lilico, passando por suas derivas com maquiagens diferentes, até sua aparição como corpo ensanguentado, quase morto, que retorna para diabolicamente consagrar a derrocada de todo reinado, em um desfecho em que nenhum rei ou rainha se unifica como corpo simbólico e sobrevive ao corpo físico morto. Seu corpo físico, por sua vez, não é potência negativa de falha e de falta, como na teologia política medieval alimentada pelo cristianismo; antes, é um corpo de afetos contraditórios e energias figurais variáveis, uma experiência da multiplicidade que fulgura.
É por isso que é preciso fazer justiça à pulsação fulgurante das personagens, sobretudo as personagens cuir, de A Rainha Diaba, sem reduzi-las a categorias fixas, recusando até mesmo uma compreensão fechada da noção de cuir como um termo classificatório, na medida em que se trata de uma abertura para o inclassificável. Assim, em vez de operarem como representações de tipos sociais – como frequentemente parece desejar o filme para construir sua narrativa, como frequentemente diferentes espectadores/as parecem desejar do filme, ao reduzi-lo a uma interpretação tipológica de sua narrativa -, as personagens configuram performances, movimentos, fluxos – em que a matéria opaca de seus corpos, sua carne, suas cores, seus fluidos e seu humor febril ofuscam parcialmente as funções narrativas associadas ao seu sentido representacional (sem anulá-las completamente).
É o que ocorre em diferentes momentos, como, por exemplo, frequentemente, com a figura da Rainha Diaba, que pelo impressionante trabalho de Milton Gonçalves se torna uma energia – de pulsão de vida, quando o interesse da narração se abre para seu desejo; e de pulsão de morte, quando se abre para sua crueldade – até que a narração se apropria mais uma vez dessa matéria, conjurando seu espectro e transformando a energia figural, marcada pela mobilidade e por uma tendência ao informe, em elemento formal de ordenação e condução da trama. Assim, o desejo e a crueldade da Rainha Diaba se tornam partes de uma trama de ações e reações, que culminam em sua derrocada.
Esse tipo de emergência temporária de uma potência figural dos corpos, que ofusca parcialmente as funções narrativas do que representam, sem anulá-las completamente, também pode ser reconhecido quando Odete Lara canta, mas o filme resguarda uma espécie de ponto culminante e paradoxal desse processo ao momento em que a trama da narrativa chega ao seu desfecho.
6. Tableau mort
A conclusão de A Rainha Diaba desloca a tradição dos tableaux vivants (quadros vivos, em tradução livre), em especial em sua modalidade cinematográfica (cuja associação histórica com a representação da via crucis deve ser lembrada aqui, embora a história – inclusive cinematográfica – dessa tradição seja muito mais vasta). Em geral, na tradição dos tableaux vivants, os corpos de atores e atrizes devem se converter em parte de uma cena que se unifica, na qual uma concentração mais densa das energias figurais dos corpos coincide com o trabalho de constituição do filme como corpus, com a extração de uma mais-valia simbólica, condensando na configuração cênica, por meio da extração dessa mais-valia a partir dos corpos, os sentidos estruturantes da narrativa.
Em A Rainha Diaba, por sua vez, parece que encontramos um tableau mort: há uma rarefação – embora não uma interrupção total – da extração de mais-valia simbólica a partir dos corpos. De fato, no final do filme, a possível mais-valia simbólica pode ser reconhecida em leituras equivocadas do desfecho, como se fosse uma condenação moralista das personagens ou como se representasse uma tese, uma “moral da história”, uma resolução simbólica dos conflitos sociais que estruturam a narrativa: uma alegoria estável do Brasil, da ditadura, do crime, do que seja.
Mas o filme não se fecha em seu desfecho: não chega a se constituir plenamente como corpus, sobre a pilha de corpos. O tableau mort é onde fulguram as cinzas, insinuando para cada espectador e espectadora, após seu fim, uma experiência possível de abertura para energias vitais, como aquelas que deram ao filme toda a sua beleza insistente de multiplicação das cores.
Nas cinzas fulgurantes do tableau mort que encerra A Rainha Diaba, o que se entrevê é o transbordamento da rigorosa mise-en-scène do plano final, com todo o trabalho e controle de corpos que nele se condensa, por uma abertura vital. Esta é uma das tensões constitutivas da experiência do cinema: entre corpus e corpos. De um lado, pela mise-en-scène ou de outras maneiras, pode-se aspirar à constituição de um corpus, isto é, de um conjunto que se reúne sob o signo de um tema, de uma assinatura autoral de direção ou de atuação, entre outras possibilidades.
Efetivamente, mesmo com uma intenção rarefeita ou sem qualquer intenção, frequentemente se insinua a configuração de um corpus. Por outro lado, é preciso que uma multiplicidade de corpos singulares opere como uma potência de criação que, ao mesmo tempo, ameaça ferir – talvez com uma ferida de morte, que é, sem qualquer paradoxo, uma abertura vital – a unidade do corpus: os corpos que trabalham para constituir o corpus são os mesmos que impedem seu fechamento.
No cinema, se há obra, se há corpus, é porque um conjunto de temas e configurações estéticas se articula de modo disjuntivo, fazendo com que toda obra se torne legível como (parte de) um corpus apenas na medida em que há nela, ao mesmo tempo, uma conjunção de formas (o corpus como corpo que, conforme a metáfora orgânica que assombra o conceito, vive no conjunto da obra) e uma disjunção de forças (devolvendo à palavra corpus um outro sentido, o corpus como cadáver, que, fantasmaticamente, sobrevive ao conjunto da obra, na medida em que o ultrapassa e o fratura, em sua decomposição e em sua espectralização post-mortem, em sua sobrevida fulgurante). Um ou mais corpus podem ser reconhecidos, no cinema, porque mais de um corpo se reúne simbolicamente sob uma assinatura, mas os corpos restam diabolicamente estranhos a todo e qualquer corpus.
A personagem em questão é chamada de Peludo por Catitu (Nelson Xavier) mais à frente no filme. Não consegui identificar o nome do ator que interpreta Peludo. ↩
Em entrevista a Ivandel Godinho Jr. publicada no jornal Opinião, edição 83, de 10 de junho de 1974. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/123307/1866. Acesso em: 29 jul. 2022. ↩
No livro Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval, originalmente publicado em 1957. ↩