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Taego Ãwa: política da nomeação

Talvez uma série de problemas que são abordados pelo filme Taego Ãwa, de Henrique e Marcela Borela – e também é preciso dizer: que o afetam – resida na questão do nome próprio. Crítica publicada originalmente na revista Janela.

Este texto foi publicado na revista Janela em 10 de agosto de 2016. As imagens que aparecem abaixo foram retiradas do trailer do filme.

O primeiro plano de Taego Ãwa inscreve os nomes próprios Henrique e Marcela numa voz indígena ainda sem nome, que recorda o momento em que os dois irmãos iniciaram o processo de devolução de imagens que desencadeou a realização do filme. De fato, parte significativa da contundência do documentário – que articula imagens de arquivo e registros de situações do presente, nas quais as evidências da vida comum convivem com a fabulação da memória e da encenação – decorre da densidade dos nomes e da economia das assinaturas que o assombram, desde o título, que evoca a memória de Taego – o nome da mulher de Tutawa, o índio que assumiu na história do grupo o papel de líder da resistência ao genocídio, mas também o nome da terra reivindicada, na Ilha do Bananal, da qual foram retirados à força na década de 1970 -, à direção de Henrique Borela e Marcela Borela, que imprime no encadeamento das imagens marcas de sua perspectiva e de seu lugar de enunciação.

Talvez uma série de problemas que o filme aborda – e também é preciso dizer: que o afetam – resida na questão do nome próprio, de sua inscrição sempre estrangeira a toda língua (um nome próprio permanece sempre intraduzível em nomes comuns) e de sua participação ambivalente na vida das imagens (um nome é sempre aquilo de que não existe imagem justa, porque algum resto sempre escapa da representação; ao mesmo tempo, um nome é aquilo de que existem apenas imagens, interminavelmente, uma vez que, irredutível à língua e à linguagem, só é possível compreender um nome imaginando sua singularidade). Seria preciso desdobrar os sentidos do nome próprio em Taego Ãwa, tanto para identificar os elementos da história que o filme representa quanto para compreender o modo de mediação da experiência da história que torna possível seu trabalho de representação e que o insere num trabalho mais amplo de imaginação do futuro a partir de uma releitura das evidências do passado. De um lado, a referência do mundo, o cinema como aparelho de registro e como discurso assertivo sobre uma realidade singular, cuja representação reclama uma sucessão de nomes próprios; de outro, a criação do mundo, o cinema como aparelho de fabulação e como discurso especulativo sobre o passado (por meio da encenação da memória) e sobre o futuro (por meio da performance do presente) – em suma, o cinema como aparelho cosmopoético, que tem em seu horizonte a criação do que ainda não tem nome.

O relato contado pela voz indígena no decorrer do plano inicial narra a memória do encontro que desencadeou a realização do filme: Henrique e Marcela visitam os índios Ãwa, conhecidos como os Avá-canoeiros do Araguaia, e mostram-lhes as imagens contidas em fitas de VHS que tinham sido descobertas por Marcela na Universidade Federal de Goiás, na antiga Facomb, atual FIC, em 2003, assim como fotografias e outros materiais de arquivo. É a relação com as imagens de arquivo, iniciada com sua devolução ao olhar indígena, que desencadeia o processo do qual resultou o filme. Durante esse processo, ocorre tanto uma expansão do arquivo, com a inclusão de mais imagens fotográficas, de notícias de jornal etc., quanto uma diversificação das estratégias de abordagem da memória contida no arquivo – e de suas lacunas, do que escapou de suas imagens, em suma, das imagens que faltam.

A expansão do arquivo e a abordagem da memória convergem na tentativa de suplementar as imagens que faltam da história dos Ãwa do Araguaia, oferecendo ao espectador alguns de seus traços, sem qualquer vontade de totalização: a violência do primeiro contato, forçado por uma Frente de Atração da Fundação Nacional do Índio, em 1973, que se revela por meio de sua inscrição na vida familiar, na narração de Tutawa; os deslocamentos forçados que terminam por conduzir os Ãwa para o território de antigos inimigos, os Javaé, diante dos quais os Ãwa aparecem como derrotados e inferiores, condição que se resume em sua designação como “índios negros”; as inúmeras formas do estado de sítio constante em que precisam encontrar, apesar de tudo, formas de resistência para continuar a existir, depois de terem sido reduzidos a menos de uma dezena de pessoas.

Um dos efeitos da devolução das imagens aos Ãwa consiste na ampliação das possibilidades de exposição da identidade indígena (por meio de rituais que podem ser refeitos, por exemplo, como a pintura dos rostos e dos corpos com tinta de jenipapo) e da luta política a ela associada, que tem em seu cerne a reivindicação de demarcação de terra. Dessa forma, a relação singular dos Ãwa com o arquivo participa de uma história mais ampla de resistência indígena, que Taego Ãwa procura apresentar por meio de depoimentos de Tutawa (o pai da família, que faleceu durante o processo de finalização do filme), de Kawkamy/Kaukama (sua filha com Taego e a mãe da primeira geração nascida após o contato) e de toda a família Ãwa da Ilha do Bananal.

Ao mesmo tempo, além das imagens que faltam do passado (em meio às imagens que restam), Taego Ãwa cria, performática e performativamente, uma imagem que falta do presente, que se projeta sobre o futuro: a imagem da terra comum, Taego Ãwa, ainda não reconhecida no momento em que o filme foi feito (e o reconhecimento posterior, alcançado por meio de Portaria Declaratória de 11 de maio de 2016, permanece sob ataque). Enquanto a relação com o arquivo desencadeia um processo memorial, no qual é preciso buscar as evidências do passado e a referência do mundo nos registros das imagens e nos relatos dos depoimentos, os modos de encenação e de montagem propostos por Henrique e Marcela Borela desencadeiam um processo imaginativo, no qual se trata de interrogar os sentidos do passado e de projetar possibilidades de futuro. Dois procedimentos fundamentais podem ser reconhecidos: a exposição dos índios como espectadores de suas imagens, que remonta aos primeiros encontros entre eles e os realizadores, em 2011, e a remontagem do arquivo, que abre o filme para o que transborda a situação específica dos Ãwa, a partir da potência crítica e criativa contida no que se pode reconhecer como a assinatura autoral de Henrique e Marcela.

De fato, a apresentação inicial das imagens aos Ãwa não foi filmada, assim como as conversas que desencadeou, num primeiro momento. Dessa forma, tanto o contato com as imagens quanto os depoimentos que vemos no filme encenam e condensam situações e conversas anteriores. Não filmar os primeiros encontros dos realizadores com os índios foi, sem dúvida, uma forma de interromper a economia convencional das imagens que os representam, uma economia que tende a se organizar conforme uma lógica de usurpação: as imagens são produzidas, muitas vezes com estranha abundância, mas não devolvidas; são extraídas e, depois, arquivadas em outro lugar (e o lugar do arquivo é sempre um lugar de poder, mesmo que invisível, talvez justamente porque e na medida em que tende à invisibilidade). A interrupção da economia das imagens baseada na lógica da usurpação permite o aprofundamento das relações entre os realizadores e os Ãwa. Quando as filmagens começam, sua fundamentação mais profunda nessa relação que foi construída a partir da recusa da usurpação tem o efeito aparentemente paradoxal de multiplicar as possibilidades de distanciamento em relação ao registro documental pretensamente objetivo do cotidiano indígena.

Em vez disso, Taego Ãwa confere ao ato de registrar o cotidiano dos Ãwa uma potência poética singular, que corresponde à força dos gestos de montagem e de performance que inscrevem no filme, de modo mais contundente, a assinatura autoral de Henrique e Marcela. Assim, em meio às encenações que ancoram a exposição da história dos Ãwa, tal como é reconstituída com base nas vozes indígenas, o filme insere as imagens de arquivo, por meio de uma espécie de montagem de evidências que tem aspectos conceituais, e algumas filmagens que não correspondem a encenações do passado, mas a projeções do futuro, por meio de procedimentos de registro de performances, os quais se pode associar à noção de retrato.

Se é possível dizer, por meio de uma metáfora fotográfica, que um documentário busca, em alguma medida, retratar uma realidade, um tema ou um problema, Taego Ãwa assume os riscos de conferir um sentido performático à noção de retrato e de destiná-la à coletividade Ãwa. Em planos que aparecem em diferentes momentos do filme, de fato, os Ãwa olham diretamente para a câmera, em grupos quase totalmente parados, e seus olhares interpelam o espectador. No momento de maior densidade desse procedimento, que ocorre antes da sequência final do filme, uma performance das diferentes gerações da família Ãwa do Araguaia demarca, performativamente, sob o som suplementar da música, a terra Taego Ãwa, que reivindicam como fundamento de sua existência como povo: depois de caminharem com uma placa que contém o nome “Taego Ãwa”, todos se posicionam em torno dela, encarando a câmera, que está a alguma distância, enquadrando-os em um plano de conjunto.

Se a devolução das imagens aos Ãwa contribuiu, entre outras coisas, para um processo de reafirmação de sua identidade, a força política dessa reafirmação depende da devolução de seu nome à terra, que a sequência em torno da placa insinua como fabulação, sem que o filme se feche nesse momento e, portanto, sem que seja possível supor qualquer desejo de equivalência entre a fabulação fílmica da terra nomeada e sua demarcação efetiva, que implica conferir força jurídica e política ao ato de nomeação. De fato, a demarcação é, por um lado, um processo jurídico-político que deve chegar a termo – com o reconhecimento da Terra Indígena Taego Ãwa, tal como é reivindicada pelos Ãwa, tal como é defendida pela antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues (mencionada também na primeira fala do filme) e tal como foi reconhecida em Portaria Declaratória de 11 de maio de 2016, pouco antes do afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, a demarcação é também um processo performativo que nunca chega ao fim – como evidencia o fato de que a Portaria Declaratória não garante o fim do assédio de fazendeiros e de outros habitantes da região do entorno da terra dos Ãwa (como um fazendeiro que aborda Henrique e Marcela a certa altura do filme, questionando seu trânsito na fronteira da relação entre brancos e índios). As ações locais de questionamento e de ataque à demarcação da Terra Indígena Taego Ãwa encontram uma espécie de equivalente político institucional na atuação de ruralistas como Ronaldo Caiado no Congresso Nacional, exigindo a revogação de diversos processos de demarcação.

É sobre a relação mais ampla entre as sociedades indígenas que habitam o território governado pelo Estado brasileiro e o Congresso Nacional que incide, de fato, bem antes da sequência da placa, a montagem conceitual que articula uma das sequências mais intensas de Taego Ãwa. Logo depois da apresentação das imagens de arquivo que Marcela descobriu na UFG em 2003, na bela e forte sequência da caçada que foi gravada em VHS no final da década de 1980, um plano de carne de caça pendurada nos galhos de uma árvore nos conduz de volta ao presente do filme. Em seguida, os Ãwa são novamente espectadores, como tinham sido em outros momentos, quando assistiram as imagens de si mesmos e de sua história que lhes foram devolvidas; agora, entretanto, a trilha sonora introduz uma diferença crucial: ela reenvia à memória de gênero do faroeste. Três recursos de montagem se articulam para compor essa sequência: no eixo horizontal do encadeamento entre as imagens, o recurso do campo-contracampo se associa ao recurso da associação de imagens em meio à descontinuidade; no eixo vertical, o recurso da apropriação inscreve, na trilha sonora, a memória de gênero do Western (faroeste).

Quando Taego Ãwa representa os índios como espectadores de si mesmos, o que está em jogo é sua relação com sua própria história singular, a continuidade de seus nomes, passados entre gerações, assim como a continuidade de sua existência como sujeitos, numa terra comum. Quando o filme representa os índios como espectadores de outras imagens, o que está em jogo é sua relação com uma história que os ultrapassa, que se pode reconhecer na referência do gênero faroeste e na apropriação crítica de seus elementos simbólicos (associados ao colonialismo e a sua violência genocida). As imagens a que se dirigem os olhares indígenas são reveladas num contracampo fabulado (porque se pode supor que as imagens que vemos não equivalem às que estavam sendo vistas por aquelas pessoas). O contracampo é construído por meio de uma montagem associativa, na qual imagens de arquivo de autoridades políticas e religiosas, em meio às litúrgicas negociatas que produzem e dissimulam sua violência, se intercalam com imagens de índios que morrem sob tiros. Em suma: em resposta aos planos do olhar indígena no presente, o filme fabula o contracampo das imagens que faltam dos que foram mortos, dos desaparecidos, por meio do arquivo ficcional do faroeste, sob a forma de trilha sonora e de imagens remontadas de um filme do gênero, e também por meio de imagens de arquivo que registram o avanço da exploração econômica de recursos naturais, sob o signo da industrialização. O final da sequência retorna ao tema da relação entre os Ãwa e sua história, devolvendo os rostos indígenas à condição de espectadores de si mesmos, num outro sentido (isto é, não apenas como Ãwa, mas como índios no Brasil): o contracampo contém, agora, imagens de uma invasão mais recente da Câmara dos Deputados por diversos índios.

Tanto na sequência da placa quanto na sequência do faroeste, são formas de fabulação que conferem ao cinema uma potência poética singular. Por um lado, a fabulação da performance, que representa, por meio de um retrato, a demarcação de uma terra de que os Ãwa guardam uma detalhada memória (e na qual desejam poder inscrever sua memória futura); por outro lado, a fabulação da montagem, que representa, por meio da memória de gênero do faroeste e de imagens de arquivo em que ficção e documentário se misturam, a história do genocídio indígena e da resistência a ele, que torna possível os momentos comuns que aparecem nos últimos planos do filme.

Entre os planos finais, de fato, há um momento em que vemos uma criança assistindo a um desenho na televisão, deslocando, mais uma vez, o tema dos índios como espectadores (cuja inspiração é preciso reconhecer, aliás, em algumas das mais belas sequências de Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, quando Carapiru se converte em espectador do mundo, assistindo à televisão). Em Taego Ãwa, efetivamente, ocorre um movimento entre a representação dos índios como espectadores de si mesmos – que corresponde ao impulso que desencadeou o filme e à singularidade irredutível da história que representa: os Ãwa diante das imagens que lhes foram devolvidas por Henrique e Marcela; os Ãwa diante das imagens da luta indígena no Brasil – e a representação dos índios como espectadores do mundo – que corresponde ao transbordamento da singularidade da história dos Ãwa e à sua inscrição num contexto mais amplo de disputa política e simbólica: os Ãwa diante do arquivo do genocídio que está contido, de modo metafórico e cifrado, na memória de gênero do faroeste; os Ãwa diante de imagens da mídia dominante, da política institucional e da luta pela invasão e pela apropriação de seus espaços de poder; os Ãwa diante da terra comum Taego Ãwa.

O plano da criança que assiste ao desenho animado na televisão equivale, nesse sentido, a uma nova inscrição da figura do índio como espectador do mundo, que deve ser compreendida não como uma representação da perda de uma identidade (um argumento essencialista que supõe uma identidade pura que nunca existiu e que permaneceria alheia à história), mas como uma representação da possibilidade de continuidade na transformação. O olhar da criança Ãwa que assiste ao desenho animado talvez se abra, efetivamente, para um mundo que permanece por vir, mas cujos traços se insinuam nos demais planos da vida comum que encerram o filme, sobretudo na beleza do último plano, em que duas garotas brincam num banco de areia à beira do rio. As fotos que abrigam os créditos finais parecem indicar a necessidade de buscar no passado, na memória e na história dos Ãwa, o impulso em direção a essa abertura para um mundo por vir, cujo nome ainda não foi inventado – e as qualidades do filme decorrem, em parte, de sua participação crítica e criativa na política da nomeação que está em jogo nessa abertura para o futuro.