As sombras são

as sombras são assombração

A fotografia – que se diz “escrita da luz” num conhecido jogo etimológico – aparece sempre como uma das formas da sombra. Toda etimologia não passa de um jogo em que a aposta da origem se encontra lançada com mais ou menos ímpeto, em meio à perda ou à ausência de sentido que constituem o destino originário de toda linguagem. 

No livro O ato fotográfico e outros ensaios, Philippe Dubois aponta a relação histórica e estética da fotografia com o desenho da sombra e com a técnica da silhueta, entre outras. Em todo caso, tudo se passa como se a fotografia se inserisse numa linhagem de tentativas de fixar não tanto o mundo e sua imagem especular, mas a sombra e seu mundo em reverso.

Às vezes, é uma beleza evanescente que se deixa entrever na malha fotográfica, feita de fios de luz e sombra que se permitem sonhar. Todo rastro de real que se inscreve na fotografia se deixa atravessar por um resíduo – se não por torrentes retumbantes e por vezes redundantes – de matéria onírica, como poeira nos olhos. É talvez dessa poeira que pode surgir, inaudita e impensável, a emoção que, perturbando a transparência do olhar, cava em quem olha a morada da imagem, de suas memórias, de suas histórias. Nessa morada, o que se re-vela, fugaz, é a anarquívica arte de viver.

  • Marcelo R. S. Ribeiro

    Entropólogo da disseminação de mundos e professor de cinema‑delírio na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor do livro Do inimaginável (Editora UFG, 2019), coordena o grupo (an)arqueologias do sensível, desenvolve e orienta pesquisas sobre imagem, história e direitos humanos, cinemas africanos, história do cinema, arquivos e descolonização.

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