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O silêncio da fotografia: Marc Garanger e as mulheres argelinas

As fotografias sempre resguardam seu silêncio, como o abrigo de uma polifonia de vozes.

As fotografias sempre resguardam seu silêncio, como o abrigo de uma polifonia de vozes. Podemos interpretar uma foto, fazendo-a dizer o que desejamos ou tememos (afinal, o temor é apenas outra forma do desejo). Podemos dar à foto que olhamos uma voz, para que diga alguma coisa, como um ventríloquo. Nada disso pode destecer, entretanto, os seus fios de silêncio, que a mantêm aberta para outras vozes.

Se um texto é um tecido e podemos considerar até mesmo a “realidade” como um texto a ser lido, decifrado e (re)escrito, isto é, a ser (des)tecido, há diferentes tipos de texto, que se definem pelas formas e materiais de sua tecelagem. Enquanto a fala e a escrita entretecem fios de vozes com agulhas de silêncio (as pausas, a pontuação, os ritmos, os fluxos vários da enunciação), a fotografia – a escrita da luz – entretece fios de silêncio com agulhas de vozes (as palavras como se esperassem para ser ditas, os nomes inscritos nas coisas como suas assinaturas invisíveis, os conceitos por trás do aparelho e de seu jogo programado e aberto).

Quando, aos 25 anos de idade, obedecendo às ordens de seu superior no exército francês, Marc Garanger retratou cerca de 2000 mulheres argelinas, elas foram obrigadas a retirar o véu. Feitas com um propósito policial, no contexto da guerra de descolonização da Argélia, as imagens registram uma silenciosa violência que traduz simbolicamente a violência colonial: assim como a colonização do território passa pela apropriação de suas paisagens, a colonização e o governo da população passa pela apropriação das paisagens múltiplas dos rostos. De forma ambivalente, para registrar e, como pretende Garanger, denunciar a violência, é preciso que as imagens constituam um testemunho, uma reprodução e uma representação da violência.

No silêncio dos retratos das mulheres argelinas, está inscrito o silenciamento de suas vozes. As agulhas que tecem as fotografias de Garanger são as vozes de comando que ordenaram a confecção das carteiras de identidade obrigatórias, os gritos de guerra dos soldados do exército francês, as vozes empedernidas dos administradores coloniais em seus escritórios, as vozes de governo dos oficiais metropolitanos em sua arrogância. Agnès Varda e Philippe Dubois, assim como o próprio Marc Garanger, procuram nas fotografias os rastros do lugar de enunciação das mulheres, dando a elas suas próprias vozes e questionando o colonialismo que marca as imagens. Nesse sentido, procuram outras vozes para tecer os fios de silêncio das imagens com um olhar deslocado.

Se as mulheres argelinas retratadas por Garanger foram obrigadas a retirar seus véus, a própria fotografia deve ser entendida como véu para que se torne legível o que está em jogo na transparência controlada do retrato policial imposto pelo governo colonial. Tudo se passa como se as fotografias, em sua transparência de tecnologia de identificação, viessem remover e substituir os véus tradicionais, destinando os rostos a outro dispositivo de subjetivação. Nesse embate entre a tradição local e o governo colonial como dispositivos de produção da subjetividade, é ao assumir o véu da fotografia como máscara teatral, como boneco vazio, como abrigo de uma polifonia de vozes, que podemos restituir os rostos a seu jogo de (des)mascaramento e à comunidade aberta que permanece irredutível aos dispositivos de apropriação do comum. Só assim, talvez, em vez de dar voz às mulheres argelinas e à alteridade que representam, será possível começar a escutar suas vozes. Enquanto isso, nas fotografias continuará ressoando o silêncio.

Post publicado originalmente em 15 de dezembro de 2010. Revisado e atualizado em março de 2013.

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