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Da (in)visibilidade do nascer do sol na China

No espaço ficcional de algumas imagens da China contemporânea, nas quais o céu de Pequim está recoberto por poluição e uma tela dá a ver imagens do céu, entrevê-se o arpocalipse.

Imagens do invisível

O céu, as nuvens, o nascer e o pôr do sol: eis algumas das paisagens mais comuns e recorrentes da vida na Terra. Da China, entretanto, chega uma estranha notícia: com a intensidade da poluição que recobre os céus de Pequim, como um véu, é em uma tela de LED que essas e outras paisagens são oferecidas, diariamente, aos passantes da conhecida Praça da Paz Celestial, ou Tiananmen.

Você pode ler a notícia em português nessa pequena nota da Época Negócios, que reproduz a mesma fotografia da agência China Foto Press (copyright Getty Images) que ilustra as reportagens um pouco mais longas do MailOnline e do HuffingtonPost, assim como a pequena nota da Time (as três em inglês). A fotografia, que é de 16 de janeiro de 2014, registra de forma contundente o aumento do nevoeiro de poluição, que tem alcançado níveis inéditos ano após ano.

A força da imagem, que sem dúvida contribuiu para sua difusão nos sites de notícias e nas redes sociais, decorre do contraste cromático entre o entorno acinzentado da paisagem urbana e o núcleo avermelhado da tela, que aparece como um buraco no véu de poluição – uma fenda, uma janela, um respiro.

Em outras imagens similares, como a fotografia de Feng Li do dia 18 de janeiro de 2013 reproduzida acima, que ilustra o texto “Beijing’s Climate Politics”, de Ou Ning, o contraste cromático também é marcante, e a tela de LED abriga tons de azul, branco e verde, ao exibir uma paisagem montanhosa.

O contraste cromático, que cada uma das imagens inscreve numa composição plástica centralizada, desdobra-se em uma série de sentidos simbólicos. Entrelaçados às palavras que compõem as notas, reportagens e posts, esses sentidos simbólicos articulam ideias sobre o crescimento econômico da China contemporânea, sobre o sistema político comandado pelo Partido Comunista Chinês e sobre a destruição do meio ambiente.

Nas fotografias, a monotonia da paisagem urbana circunscreve, como uma moldura, a exuberância das paisagens naturais exibidas na tela de LED. O valor cromático do cinza se associa ao sentido simbólico da destruição do meio ambiente, representada pelo fenômeno da poluição, cujo crescimento exponencial é um dos índices mais evidentes e perturbadores do avassalador crescimento econômico da China (recomendo, a esse respeito, o belo curta Black breakfast, de Jia Zhangke, parte da coletânea Histórias de direitos humanos).

De fato, a catástrofe ambiental parece ter deixado de ser um acidente que pode ou não advir ao mundo. A destruição do meio ambiente se tornou uma forma de vida, na qual o que se descobre é, fatal e paradoxalmente, a forma mais definitiva da morte: a morte de espécies inteiras, não apenas de indivíduos.

Nesse contexto, a reprodução de imagens da natureza nas telas de LED da Praça de Tiananmen assume, dentro da moldura acinzentada da paisagem urbana, um sentido simbólico suplementar de artificialidade. À artificialidade da vida urbana, da modernização e da industrialização perseguidas pelos chineses sob o comando rígido de seu Partido Comunista, acrescenta-se a artificialidade da própria natureza, na medida em que se faz imagem, nas telas que foram instaladas pelo governo, em setembro de 2009, para comemorações oficiais.

Efetivamente, as imagens na tela mostram o que os passantes da Praça de Tiananmen não podem ver, como se fosse possível escapar da realidade por meio da imagem, como se fosse possível fazer visível, como imagem, aquilo que é, na realidade, invisível, devido à poluição.

Diante de um real que se afigura intolerável e que se define pela crescente e cada vez mais danosa falta de contato com a natureza, destinada a um processo de destruição muito difícil de reverter, as telas oferecem um suplemento de experiência da natureza, em forma de imagens.

A potência da ficção

A manchete da reportagem do MailOnline é direta na relação causal que estabelece entre a oferta de imagens do nascer do sol e a névoa espessa da poluição: “China starts televising the sunrise on giant TV screens because Beijing is so clouded in smog” / “China começa a televisionar o nascer do sol em telas de TV gigantes, porque Pequim está muito nublada por poluição” [tradução minha].

Essa parece ser a interpretação mais recorrente da notícia e das fotografias que a acompanham: a poluição teria causado ou motivado o uso das imagens do nascer do sol, do céu e da natureza, nas telas de LED da Praça de Tiananmen, para fazer visível o que a poluição tende a tornar irremediavelmente invisível. A nota do Times, em sua versão atualizada no mesmo dia de sua publicação (17 de janeiro de 2014) corrobora essa interpretação:

Air pollution in the Chinese capital reached new, choking heights on Thursday. Those who still felt the urge to catch a glimpse of sunlight were able to gather around the city’s gigantic LED screens, where this glorious sunrise was broadcast as part of a patriotic video loop.

This post has been revised to reflect that the sunrise was not broadcast specifically for that day.

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A poluição do ar na capital chinesa alcançou níveis novos, asfixiantes, na quinta-feira. Aqueles que ainda sentiam o desejo de ter um vislumbre de luz do sol puderam se reunir em torno das telas de LED gigantes da cidade, onde esse glorioso nascer do sol foi transmitido como parte de um loop de vídeo patriótico.

Este post foi revisado para refletir que o nascer do sol não foi transmitido especificamente nesse dia. [Tradução minha.]

No dia 20 de janeiro, outra atualização foi feita na nota da Time, que passou a ser a seguinte:

Air pollution in the Chinese capital reached new, choking heights on Thursday. Those who still felt the urge to catch a glimpse of sunlight were able to gather around the city’s gigantic LED screens, where this glorious sunrise was broadcast as part of a tourism ad.

The original post did not mention that the large screens in Beijing’s Tiananmen Square broadcast panoramic scenes on a daily basis, regardless of atmospheric conditions, nor did it state that the sunrise was part of a tourism commercial. Amendments have been made to correct these lacunae.

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A poluição do ar na capital chinesa alcançou níveis novos, asfixiantes, na quinta-feira. Aqueles que ainda sentiam o desejo de ter um vislumbre de luz do sol puderam se reunir em torno das telas de LED gigantes da cidade, onde esse glorioso nascer do sol foi transmitido como parte de uma propaganda de turismo.

O post original não mencionava que as grandes telas na Praça de Tiananmen, em Pequim, transmitem cenas panorâmicas diariamente, independentemente de condições atmosféricas, nem afirmava que o nascer do sol era parte de um comercial de turismo. Alterações foram feitas para corrigir essas lacunas.

Além de demonstrar o alcance global da prática do péssimo jornalismo, que produz notícias da maneira mais irresponsável, sem pesquisa e verificação de informações, as atualizações da nota da Time mostram que a interpretação mais frequente das fotografias e da notícia que ilustram é também uma interpretação equivocada, pois as imagens da natureza não são as únicas que aparecem nas telas de LED e, além disso, pertencem a um comercial de turismo. Sua função é publicitária, e não “patriótica”, como a versão anterior da nota afirmava. Seu contexto de aparição, por sua vez, não está relacionado, necessariamente, à deterioração das condições atmosféricas e aos problemas da poluição e da destruição do meio ambiente, como a cobertura jornalística da notícia fez crer.

Ao reconhecer o equívoco da notícia e da interpretação mais recorrente das fotografias, não devemos, contudo, descartar todos os seus sentidos possíveis. O lastro factual ausente não confere a esterilidade do inexistente ao contraste cromático presente nas duas imagens, nem a seus sentidos simbólicos. Na notícia, nas fotografias e na articulação instável que se estabelece entre elas, a cada vez, a referência suposta do mundo se revela incerta, mas sua moeda falsa permanece eficaz na economia dos sentidos, na qual intervém por meio da fabricação de um espaço ficcional (cuja delimitação resta inacabada).

Se a notícia e as imagens foram capazes de capturar a atenção de forma tão intensa, é porque tornam manifestas tendências efetivas da realidade, por meio do espaço ficcional que abrem. Para identificar algumas dessas tendências e compreender seus sentidos, é preciso buscar a referência suposta do mundo sem tomar as palavras e as fotografias por seu valor de face, como se designassem referentes no mundo de forma não problemática. É preciso suspeitar do conteúdo literal dessas palavras e dessas imagens, para que seja possível compreender a potência de sua falsidade, a intensidade do espaço ficcional que abrem.

No caso das fotografias das telas de LED mostrando paisagens naturais, em meio à Praça de Tiananmen recoberta por poluição, o espaço ficcional em que as imagens transitam está atravessado pelo imaginário pós-apocalíptico da ficção científica. Em algumas de suas distopias futuristas, somos levados a imaginar a vida que persiste em mundos que se tornaram total ou parcialmente inabitáveis ou que foram destruídos pela própria humanidade. Se a ficção científica imagina outros mundos para nos mostrar aspectos do mundo que habitamos, o espaço ficcional das fotografias da Praça de Tiananmen registra aspectos que desconhecíamos do nosso mundo e obrigam que o vejamos com outros olhos.

Em outro sentido, o espaço ficcional das fotografias da China remonta ao campo do orientalismo. Quando o assunto de uma notícia é a China, existe uma probabilidade muito grande de se fazer uso, no discurso jornalístico, de figuras do orientalismo, isto é, do imaginário ocidental sobre o Oriente, como discutido por Edward Said.

O jornalismo, sobretudo quando é ruim, tende a reproduzir discursos prévios, como o orientalismo, de forma impensada, sem pesquisa e sem verificação de informações. Além disso, seja qual for sua qualidade, a escrita jornalística reproduz diversos elementos das convenções narrativas de gêneros conhecidos da ficção: formas dramáticas, personagens típicas etc.

Nas reportagens e notas que citei, em maior ou menor grau, a China não deve ser entendida como referente ou assunto dos textos; ela é, sobretudo, uma reserva de imaginário, que se inscreve no campo do orientalismo: um espaço distanciado do sujeito do olhar, cuja diferença está associada ao mistério da conjunção de características inusitadas, como a dominação política despótica tão criticada e o crescimento econômico intenso tão buscado pelas democracias ocidentais.

Sob o nome “China”, que situa a notícia e contextualiza as fotografias, deve-se reconhecer uma série de figuras do que se pode chamar alteridade reveladora. Mas o que revela a alteridade da China, tal como se dá a ver nas fotografias da Praça de Tiananmen encoberta pelo véu espesso da poluição e atravessada pela luminosidade de paisagens naturais exibidas em telas de LED?


La condition humaine /  A condição humana  (René Magritte, 1933)

La condition humaine / A condição humana (René Magritte, 1933)

Arpocalipse

Se a China é, tradicionalmente, uma reserva de imaginário da alteridade, em que se encontram alguns traços do orientalismo, as transformações que o país atravessou nas últimas décadas tendem a converter a China em reserva de imaginário do mesmo.

Como reserva de imaginário da alteridade, a China condensa uma série de sinais de diferença (racial, cultural, político-econômica) em relação ao sujeito ocidental dominante e às formas de vida a que está associado.

É nesse sentido que a China aparece no conto “O idioma analítico de John Wilkins”, de Jorge Luís Borges (no livro Outras Inquisições), por exemplo, como o lugar de origem de uma curiosa enciclopédia, que representa um modelo de civilização inteiramente diferente e cuja estranha classificação dos animais motivou Michel Foucault a realizar sua “arqueologia das ciências humanas”, em As palavras e as coisas.

É nesse sentido que a China apareceu, no contexto da Revolução Cultural de Mao Zedong, para gerações ocidentais anteriores, como uma utopia que se realizava, como o lugar de uma promessa (que, contudo, não chegou a ser cumprida), ou como um pesadelo que se anunciava, conforme a perspectiva.

É nesse sentido que a China aparece, para muitos de nós, como exemplo fundamental de Estado anti-democrático, governado em regime de partido único, à imagem e semelhança das noções de despotismo oriental construídas, sobretudo, desde o Iluminismo.

É nesse sentido que a China aparece, hoje, para certos economistas e políticos, para certos empresários e jornalistas, como modelo paradigmático de crescimento e como promessa de renovação da economia capitalista.

Cada vez mais, contudo, a China se revela como uma reserva de imaginário do mesmo, em que nenhuma diferença é suficiente para perturbar a equivalência mais irredutível e absoluta de modelos sociais e de formas de vida.

Há uma crescente equivalência generalizada, atualmente, entre a China e os EUA, como potências econômicas globais, assim como entre a China e o Ocidente em geral, como lugares associados, predominantemente, a formas de vida igualmente insustentáveis, destruidoras, aniquiladoras (apesar das diferenças que porventura as separem), na medida em que permanecem capturadas pelo imperativo do crescimento econômico.

Se o crescimento econômico decorre da transformação destrutiva da natureza em mercadoria (os minérios que servem à fabricação de produtos de alta tecnologia, por exemplo), a transformação da natureza em imagem aparece como parte fundamental do processo de destruição do meio ambiente na sociedade do espetáculo.

Como reserva de imaginário do mesmo, a China das fotografias e da notícia sobre a (in)visibilidade do nascer do sol em Pequim revela uma distopia, que aparece como prenúncio de um futuro cada vez menos distante para o mundo inteiro: a distopia do arpocalipse (resta esperar por ficções científicas que imaginem um mundo pós-arpocalíptico; conhece alguma?).

Se ainda há alteridade reveladora na China contemporânea, ela não é mais uma alteridade que estimula utopias (como foi no passado), nem uma alteridade que remonta a algum passado perdido ou em desaparição da humanidade (como talvez nunca tenha sido, ao contrário do que ocorre com os povos ditos primitivos).

Quando vemos as imagens das telas de LED da Praça de Tiananmen exibindo paisagens naturais em meio à densa poluição atmosférica de Pequim, a revelação da distopia do arpocalipse como destinação do mundo subordina o contraste cromático e desfaz a oposição entre os sentidos simbólicos da paisagem urbana poluída (representada pelos tons de cinza) e das paisagens naturais exuberantes (representadas pela multiplicação de cores fortes).

A oferta de imagens da natureza aos passantes da Praça de Tiananmen (mesmo que se trate de publicidade turística, e não de mera contemplação, na imagem, de um céu que não se pode ver) pode ser compreendida, dessa forma, como o prolongamento da destruição ambiental a que, como aparência, as imagens se contrapõem.

Na alteridade reveladora da China contemporânea, a diferença desaparece diante da identificação de uma convergência que se afigura como inevitável, na medida em que compartilhamos um mundo: a convergência na catástrofe, consagrada pela destruição como forma de vida e de morte.

Na (in)visibilidade do nascer do sol na China, registrada como notícia (factualmente equivocada) e, fundamentalmente, como imagem (que abre um espaço ficcional repleto de potência crítica), encontra-se um espelho do mundo, que aparece como se fosse uma janela. Nessa janela (que se deve imaginar como aquela do quadro A condição humana, de René Magritte, de 1933, mas com um espelho no lugar da tela sobre o cavalete), o que parece ser a aparição de uma paisagem do outro dissimula a revelação de um reflexo do mesmo, do sujeito do discurso, do sujeito do olhar: “nós”. Na (in)visibilidade do nascer do sol na China, o que está em jogo é a possibilidade mesma de nossa vida na Terra.