O terceiro dia do Fronteira começou com um privilégio raro: a master class de Sylvain George, intitulada “La mémoire brûlante”, “A memória que queima”, que você pode assistir abaixo:
Teoricamente densa, ricamente ilustrada por excertos de filmes, a aula dialogou com o “paradigma incendiário” que a segunda edição do festival reivindica, e também com os temas de inúmeros filmes de propostas próximas às que interessam ao Fronteira, entre os quais a trilogia da guerra, de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, cuja primeira parte foi projetada logo depois da aula de George, dando início às sessões do dia.
Prigionieri della guerra (1995) é uma exploração musicalmente carregada de imagens de arquivo de prisioneiros de guerra, de órfãos e de civis que enfrentam os efeitos da guerra de alguma forma. Sua importância histórica passa pela revelação de alguns traços do que se pode descrever como uma genealogia da forma política dos campos de concentração, assim como pela atenção cuidadosa aos pequenos gestos, aos rostos anônimos e singulares que habitam a multidão, à esperança interminável das cartas (há uma beleza intensa, para mim, no gesto epistolar cuja finalização permanece em suspenso, interminavelmente) e à alegria insistente das conversas, dos sorrisos, das danças, apesar de tudo.
A música funciona bem em alguns momentos, mas é frequentemente excessiva: seu tom é intenso e nenhum silêncio vem interromper seu fluxo, conduzindo com alguma recorrência a uma ênfase dramática que restringe e neutraliza a força das imagens. A melancolia que é característica da trilogia da guerra confere à estrutura do filme um desfecho doloroso, no qual algumas imagens parecem tornar evidente o “frágil e minúsculo corpo humano” de que fala Walter Benjamin, em seu ensaio “Experiência e Pobreza”, ao tentar apreender o sentido histórico da Primeira Guerra Mundial com uma imagem dialética fulgurante:
Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.
Over Water (2014) entra no Fronteira como uma importante estréia mundial (acima, é possível assistir aos primeiros 16 minutos do filme, que tem 50 minutos no total). Dirigido por Robert Todd, o filme explora a água por meio de planos cuidadosamente enquadrados, que comunicam e comentam ideias de contenção, de abertura, de controle, de propriedade, de privatização, de passagem, de relação com o mundo e de relação com o futuro – ideias que também permeiam algumas das intervenções de voz over do filme. Uma interpretação mais atenta e uma análise mais rigorosa permitiriam, sem dúvida, fazer justiça à complexidade que se adivinha na aparente simplicidade do filme, mas sua força está evidente, de saída, na capacidade de sustentar o movimento de disseminação de sentidos em que sua trama inscreve o tema da água.
A arquitetura de portos, píeres, canais e pontes (de que a câmera explora uma espécie de catálogo em construção) aparece como uma série de tentativas de dominação da água e de sua força, conforme um processo de canalização constante, mesmo que frequentemente falha, de seus movimentos. A essas tentativas de dominação – cuja forma mais aguçada é a da possibilidade de privatização da água do planeta e cuja representação fílmica me parece residir, fundamentalmente, numa quase ausência de horizontes mais abertos – o filme opõe a deriva de seu olhar, em que a água e a arquitetura de controle que visa seus movimentos se convertem em motivos plásticos e, portanto, novamente móveis, inquietos, abertos.
Qu’ils reposent en révolte (2010) encontra na cidade de Calais, no norte da França, um microcosmo em que se expõem algumas das questões políticas mais cruciais (e mais excruciantes) associadas às condições de vida de imigrantes na Europa. O título do filme explicita o sentido paradoxal do recurso ao cinema como uma forma de interrogação estética desse contexto político, por meio de imagens filmadas por George durante um período de cerca de 3 anos (entre julho de 2007 e novembro de 2010). As palavras “Que eles descansem em revolta” (nas legendas em inglês, lemos “May they rest in revolt”) articulam uma saudação aos mortos e a seu descanso (“Descanse em paz”, como se costuma dizer) com um resgate de sua memória e a recusa de esquecer os sentidos de sua desaparição (a inquietude de uma revolta que se substitui à paz). Dessa forma, o filme perturba a quietude pacificada da morte que se insinua no caminho de cada migrante por meio da tentativa de tornar visíveis e legíveis os dilemas de sua condição.
Entre as condições de visibilidade das imagens do filme, está o recurso ao preto e branco de alto contraste nos registros das paisagens e dos corpos. George filma de perto, e a câmera opera, sem dúvida, como uma mediação entre ele e os sujeitos que filma. Ao colocar-se ao lado dos imigrantes que tentam alcançar o Reino Unido a partir de Calais, George não aspira à objetividade impessoal que se costuma associar, equivocadamente, ao filme documentário. Seus registros evidenciam sua presença em campo (nas ruas da cidade, nas ferrovias que as atravessam, na jungle em que vivem tão precariamente os imigrantes). A montagem do filme aprofunda o sentido subjetivo, embora nunca meramente individual, das imagens.
A legibilidade histórica que o filme confere aos eventos que representa decorre de uma montagem em que os fragmentos se sucedem numa exploração gradual, ao mesmo tempo inquieta e paciente (em correspondência direta com a urgência do filme e com a duração dilatada de sua produção, em comparação com as imagens jornalísticas e até mesmo com outras abordagens documentais). O jornalismo e abordagens documentais convencionais tendem a expor os imigrantes a uma visibilidade redutora (associada a estereótipos e a cegueiras deliberadas diante de aspectos de suas condições de vida, de suas motivações, de seus interesses), tornando ilegíveis suas existências ao inscreverem-nas em discursos políticos em que representam objetos e problemas do poder governamental. A abordagem de George e, sobretudo, suas escolhas de montagem procuram abrir um campo de visibilidade amplificada para os imigrantes, por meio da busca de seus gestos, de seus rostos, das formas de exposição de seus corpos no espaço público, mas também por meio de uma partilha do olhar, que se revela em planos que expõem as paisagens de Calais, do porto (que se vê através de grades, por exemplo), do mar (cujo movimento assume uma dimensão ao mesmo tempo alegórica e intimista) etc.
A exploração experimental das possibilidades do documentário não implica a exclusão de recursos associados a opções mais convencionais, como os depoimentos diante da câmera. Sua inserção no filme ocorre, contudo, de modo não convencional: nenhuma abreviação vem encurtar sua duração, nenhum corte vem arrancar seus tempos mortos, nenhuma pressa vem se impor sobre as palavras, sobre os discursos dos imigrantes. Efetivamente, George filma os modos de apagamento de si que permitem aos imigrantes tentar escapar dos dispositivos de controle policiais e governamentais que os visam – como na sequência em que lâminas de barbear e parafusos incandescentes são utilizados para destruir as impressões digitais – e, ao mesmo tempo, procura resguardar sua singularidade de qualquer possibilidade de apagamento. À negação da dignidade contida nos dispositivos policiais e governamentais, que reduzem os imigrantes a figuras intercambiáveis de um problema (e suas identidades a características mensuráveis, conforme o programa político contido nas tecnologias de biometria), opõe-se a fabricação da dignidade pela imagem, que busca nos imigrantes os rostos singulares, sem pretender esgotar sua alteridade (as máscaras de histórias que os recobrem, frequentemente opacas a um olhar apressado) por meio de tecnologias de identificação (cujo objetivo é alcançar o rosto nu – a vida nua – por trás das máscaras).