O segundo dia do Fronteira teve muitos bons filmes e uma ótima conversa com o cineasta Sylvain George, que veio pela primeira vez ao Brasil. Abaixo, alguns comentários apressados sobre o que mais me chamou a atenção nos filmes.
Su tutte le vette è pace (1999) é o segundo filme da chamada trilogia da guerra de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi. Entre Prigionieri della guerra (1995) e Oh! Uomo (2004), o filme, cujo título pode ser traduzido por algo como Nos cumes tudo é paz, confere nova visibilidade a imagens de arquivo em que vemos soldados austro-húngaros e italianos, durante a Primeira Guerra Mundial, nos Alpes. Um letreiro inicial menciona o “corpo ferido” das películas de que o filme se apropria, sugerindo e deslocando, ao mesmo tempo, um dos temas cruciais da trilogia: a guerra como experiência que se inscreve nos corpos – os dos soldados e das vítimas civis, sem dúvida, num catálogo interminável do horror, mas também o corpo da história, de que a película cinematográfica constitui uma espécie de pele monstruosa, efêmera, angelical, suscetível tanto à desintegração incendiária quanto à recomposição, à maneira de uma colcha de retalhos. Eis talvez um dos sentidos do cinema de Gianikian e Ricci Lucchi: resgatar e recortar a pele da história, construir a partir da película descoberta nos arquivos (found footage) uma colcha de retalhos do tempo.
Phantom Power (2014), de Pierre Léon, que começa de modo inconstante e possivelmente desorientado por um certo narcisismo, ganha algum interesse com o encadeamento descontínuo de situações narrativas ou dramáticas, mas é em sua parte final – que se inicia com um emblemático plano de uma sucessão de mãos que repousam sobre uma mesa circular, dentro da qual aparece o letreiro “Remains” – que o filme revela seu melhor ritmo e sua melhor deriva. Por um lado, o ritmo de uma montagem fragmentária cujo princípio de livre associação demarca uma espécie de percussividade visual. Por outro lado, a deriva de um prazer de descobrir as aproximações inusitadas entre as imagens como um colecionador
Entre os curtas de Lewis Klahr, A Thousand Julys (2010) se destacou, para mim, tanto pela capacidade de reunir os diversos procedimentos de recorte, de colagem, de montagem e de sobreposição que caracterizam, variavelmente, os demais filmes do diretor, quanto pela densidade lírica que a orquestração desses procedimentos alcança. A obra de Klahr é a de um cineasta experimental, a de um animador e a de um artista plástico que reivindica alguma herança da Pop Art e um sentido intensamente anacrônico de contemporaneidade. Cada um dos filmes de Klahr que foram exibidos explora um conjunto de possibilidades muito diferentes, em seu conteúdo, embora seus procedimentos formais se aproximem. Em A Thousand Julys, o tema do amor se desdobra numa deriva lírica cujo fundamento é a exploração dos dois lados de uma mesma página de quadrinhos, iluminada por trás. As sobreposições produzidas pelo acaso se convertem em possibilidades expressivas tão contundentes quanto abertas.
Vers Madrid (2014), de Sylvain George, filmado na urgência dos eventos de que procura resguardar alguns traços contundentes, sem pretender representá-los em sua abrangência ou em sua diversidade, demonstra as possibilidades e os limites do cinema como testemunho de época. Filmado e montado no calor da hora, o filme se divide em três partes – Romancero del Sol, Romancero de los Pueblos, Romancero del fuego – que se sucedem como meditações sobre temas recorrentes nas diversas formas de insurgência que se disseminaram pelo mundo, sobretudo depois da chamada Primavera Árabe, em meio aos movimentos Occupy.
Se o Sol da primeira parte corresponde à localidade em que emerge e se articula o movimento dos Indignados, em Madrid, o sentido da palavra contém também uma deriva metafórica. O sol brilha, seu brilho queima (como diz o subtítulo do filme, the burning bright), e o incêndio que pode provocar corresponde à força das palavras, do discurso e da economia geral que o faz circular nas assembléias populares. A força e a fragilidade dos discursos evidenciam os paradoxos de um movimento que reivindica a condição da “multidão criadora”.
Na segunda parte, os povos emergem como a multiplicidade que anima o movimento, ao mesmo tempo que o divide internamente, como já sugeriam as disputas sobre a condição “mestiça” que alguns pretendem atribuir à “revolução” (o que foi questionado com base na experiência latino-americana, de modo muito contundente pelos ecos que provoca no contexto brasileiro) ou o debate sobre o lugar dos migrantes na sociedade espanhola, de um lado, e no movimento, de outro. De modo significativo, o sentido de união entre os povos aparece de modo indeciso nos discursos dos Indignados e só ganha força sob a forma de uma coalizão contra a repressão policial.
Na terceira parte, vemos desdobramentos da repressão policial e da persistência do incêndio, que aparece como um contrafogo. As transformações do movimento dos Indignados começam a se tornar inegáveis, embora seus resultados continuem ainda basicamente imprevisíveis. A urgência permanece incontornável como horizonte de legibilidade das imagens do filme e da montagem que as encadeia.
A relação do filme, de sua instância de enunciação, com os discursos e reivindicações associados aos eventos abordados é frequentemente a de uma identificação fascinada – como se torna claro quando reconhecemos, no questionamento do consenso que uma das mulheres realiza numa assembleia, a reivindicação de inatualidade que o próprio filme propõe, desde o início; ou quando descobrimos, no imperativo de um homem que afirma que ninguém deve aprender ou usar a linguagem do poder, um eco da vontade de Sylvain George, como cineasta, de recusar formas convencionais e de inventar novas formas no contato com o mundo.
Embora a invenção de novas formas não seja possível apenas como uma função da vontade de um sujeito (e frequentemente a pretensão de inventar o novo corresponda à repetição inconsciente e, portanto, bastante problemática, do convencional, isto é, da “linguagem do poder”), Vers Madrid talvez se aproxime de uma possível invenção formal ao conferir centralidade, em sua trama, a uma personagem eminentemente periférica e marginal, em diversos sentidos: um imigrante tunisiano. Por meio de sua perspectiva, deslocam-se os termos em que são formuladas as reivindicações de direitos, revelam-se suas lacunas críticas (como o abismo insuperável que parece separar a figura do migrante do sujeito suposto dos direitos humanos) e se torna evidente que a crise de representação que motiva em grande parte o movimento dos Indignados pertence, igualmente, a seu cerne mais profundo.
Atualização: abaixo, você pode acompanhar o debate sobre o filme que sucedeu a projeção.