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O devir-antropófago: Alfred Jarry, René Magritte e o espelho

Minha tradução do artigo “Antropofagia”, de Alfred Jarry, a partir do original em francês de 1902, com comentários atravessados pelo quadro O espelho mágico (1929), de René Magritte.

Entre “Antropofagia”, de Alfred Jarry, e “O espelho mágico”, de René Magritte

Há alguns meses, foi publicada no Sopro (nº 48), do Alexandre Nodari e da Flávia Cera, minha tradução do artigo “Antropofagia”, de Alfred Jarry, a partir do original em francês de 1902. Reproduzo-a abaixo sob a forma de citações, incluindo as duas notas de rodapé que já a acompanhavam, em meio a alguns comentários suplementares, que respondem também a algumas das inquietações despertadas em mim pela imagem da capa do Sopro 48, o quadro “O espelho mágico” (1929), de René Magritte.

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A antropofagia como ramo da antropologia

A primeira frase do texto de Jarry inscreve a antropofagia na antropologia, definindo assim o canibalismo como uma parte do estudo da vida humana:

Esse ramo demasiado negligenciado da antropologia, a antropofagia, de forma alguma desaparece, a antropofagia não está de forma alguma morta.

Em vez de tratar a antropofagia como um fenômeno sociocultural que é um objeto de estudo (entre outros) da ciência antropológica, Jarry nos faz pensar a antropofagia como uma perspectiva que, embora muito negligenciada, resta possível para o estudo de toda e qualquer forma da experiência humana. Na tecelagem do texto, é como se esta fosse uma ideia comum, que não demanda maiores explicações porque constitui um conhecimento dado previamente, um saber pressuposto. Contudo, uma faísca de estranhamento se produz, iluminando de passagem a monstruosidade da inscrição da antropofagia na antropologia.

Afinal, como é possível fazer do canibalismo uma perspectiva que o sujeito do conhecimento sócio-antropológico assume para compreender e explicar seus objetos de estudo? Jarry não responde a pergunta; antes, seu texto desloca os termos em que está formulada. A inscrição da antropofagia na antropologia perturba a separação entre sujeito e objeto que o conhecimento científico erige como uma de suas condições. A missão científica pode, assim, ser chamada de “missão antropofágica” ou “missão de antropofagia”: passamos da antropologia (em seus ramos dominantes) como ciência do outro, uma ciência que toma o outro como objeto, à antropofagia como ciência do outro, uma ciência que se entrega ao outro, ao devir-outro do impulso antropofágico.

O espelho da religião

Há, como se sabe, dois modos de fazer antropofagia: comer seres humanos ou ser comido por eles. Há também duas maneiras de provar que se foi comido; no momento nós examinaremos apenas uma delas; se La Patrie de 17 de fevereiro não maquiou a verdade, a missão antropofágica por ela enviada à Nova Guiné teria sido plenamente bem sucedida, tão plenamente que nenhum de seus membros teria voltado de lá, exceção feita, como convém, aos dois ou três espécimens que os canibais têm o hábito de poupar a fim de encarregá-los com seus cumprimentos para a Sociedade de geografia.

Antes da chegada da missão de antropofagia, é verosímil que, entre os papuásios, essa ciência estivesse na infância: faltava-lhes seus primeiros elementos, nós ousamos dizer, os materiais. Os selvagens, com efeito, não se comem entre eles. Ademais, depreende- se de várias tentativas de nossos valentes exploradores militares na África que as raças de cor não são comestíveis. Que não cause, assim, qualquer surpresa a devota acolhida que os canibais deram aos brancos.

Seria um erro grave, entretanto, ver no massacre da missão europeia apenas vil gula [NT: No original, basse gourmandise. Parece ser uma expressão recorrente em relatos europeus, em especial naqueles de missionários ou por eles influenciados mais diretamente, a respeito do contato com canibais.] e puro requinte culinário. Esse acontecimento, na nossa opinião, manifesta uma das mais nobres tendências do espírito humano, sua propensão a assimilar a si o que acha bom. É uma tradição muito velha, na maior parte dos povos guerreiros, devorar essa ou aquela parte do corpo dos prisioneiros, na suposição de que ela contenha determinada virtude: o coração, a coragem; o olho, a perspicácia, etc. O nome da rainha Romaré significa “come-olho”. Esse costume foi menos seguido a partir do dia em que se acreditou em localizações menos simples. Mas é reencontrado, integralmente, nos sacramentos de várias religiões, baseados na teofagia. Os papuásios tiveram em vista, quando devoraram os exploradores de raça branca, apenas uma espécie de comunhão com sua civilização.

O encontro entre os “selvagens” e os “brancos” que marca a cena colonial se repete, no texto de Jarry, com ironia, como a ocasião da passagem do valor antropológico para o valor antropofágico da missão. A devoção da acolhida dos selvagens e sua comunhão com a civilização dos brancos remetem a um vocabulário religioso cristão que, no texto, designa os atos de canibalismo recalcados pelo próprio cristianismo. O espelho da religião parece tornar a antropofagia menos estranha, revelando que seu impulso perdura sob a forma (familiar aos cristãos) da teofagia: beber o vinho equivale a beber o sangue de Cristo, comer a hóstia equivale a comer o corpo de Cristo. A comparação da antropofagia selvagem com a teofagia cristã possibilita a familiarização do estranho e o estranhamento do familiar que marcam a experiência antropológica, invertendo os valores euro-ocidentais dominantes.

O que continua estranho no texto de Jarry é que, enquanto sua trama superficial opera a inversão dos valores, desfazendo o estranhamento da antropofagia e buscando familiaridade com os selvagens, seu pano de fundo – invisível e impensado, embora insistente sob a forma de pressuposições (como no caso da frase inicial) – abriga um deslocamento muito mais radical e perturbador. A inversão de valores permanece simétrica em relação às noções euro-ocidentais dominantes, para as quais a antropofagia constitui um escândalo monstruoso: Jarry sugere que a antropofagia é, ao contrário, uma manifestação de “uma das mais nobres tendências do espírito humano”. Assim, em vez tomar a antropofagia como um escândalo monstruoso, faz-se dela uma manifestação de nobreza de espírito, comparável a elementos da religião cristã.

O espelho do estômago

Se algumas vagas concupiscências sensuais se misturaram à realização do rito, elas lhes [aos papuásios] foram sugeridas pelo chefe mesmo da missão antropofágica, Sr. Henri Rouyer. Notou-se bastante que ele fala com insistência, no seu relato, de seu amigo, “o bom gordo Sr. De Vriès”. Os papuásios, a menos que os suponhamos ininteligentes em excesso, puderam compreender que: bom, quer dizer bom para comer; gordo, quer dizer: vai dar pra todo mundo. Era difícil que eles não se fizessem, do Sr. De Vriès, a ideia de uma reserva viva de alimentos enviada para os exploradores. Como estes teriam dito que era bom, se não tivessem sido capazes de apreciar sua qualidade, e a quantidade de sua corpulência? É certo aliás, para quem quer que tenha lido narrativas de viagens, que os exploradores só sonham com comida. O Sr. Rouyer confessa que, em certos dias de penúria, eles “proveram seu estômago com lagartas, vermes, gafanhotos, fêmeas de cupim…, insetos de uma espécie rara e nova para a ciência”. Essa pesquisa dos insetos raros deve ter parecido, para os indígenas, uma peculiaridade de glutonaria; quanto às caixas de coleções, era impossível que eles não as tomassem por conservas extraordinárias reclamadas por estômagos pervertidos, tal como nós outros civilizados nos figuramos aqueles dos antropófagos…

Na cena colonial do encontro e em sua repetição irônica, há uma questão transversal que Jarry não deixa de interrogar, mesmo que indiretamente: a questão da comunicação, que se desdobra necessariamente no problema da tradução. Assim, a expressão “o bom gordo Sr. De Vriès” se torna objeto de um mal-entendido quando passa do contexto de enunciação euro-ocidental em que o Sr. Henri Rouyer insiste em utilizá-la para o contexto de enunciação selvagem imaginado por Jarry, que traduz a expressão em termos antropofágicos (bom = bom para comer; gordo = vai dar pra todo mundo).

A questão da interpretação e o problema da tradução ultrapassam o meio da linguagem, alcançando suas dimensões mais problemáticas quando se trata de compreender comportamentos. É o que se passa em relação ao uso de insetos os mais diversos como comida pelos viajantes: novamente, Jarry imagina como “os indígenas” figuraram para si essa “pesquisa dos insetos raros”. O espelho do estômago revela que a perversão que “nós outros civilizados” atribuímos ao estômago dos antropófagos é a mesma que, imagina Jarry, os selvagens atribuíram ao dos civilizados.

O fundo do espelho

Foitar, chefe dos papuásios, propôs ao Sr. Rouyer ceder-lhe dois prisioneiros de guerra contra o Sr. De Vriès e o boy [Nota do Tradutor (NT): O termo boy é utilizado em francês para designar certos trabalhadores domésticos ou servidores de origem indígena, isto é, autóctone ou nativa, nas colônias.] Aripan. O Sr. Rouyer repeliu essa oferta com horror… Mas ele se apossou clandestinamente dos dois prisioneiros de guerra. Nós não vemos diferença entre essa operação e aquela do enganador que repeliria, com não menos horror, o convite de pagar uma soma para a aquisição de uma ou várias pernas de carneiro, mas furtaria, na ausência do açougueiro, sobre a fé dos tratados, esses membros comestíveis. O Sr. Rouyer removeu dois prisioneiros. O que fez o Sr. Foitar, chefe dos papuásios, ao tomar posse do boy e do Sr. De Vriès, senão arrecadar o montante legítimo de sua fatura?

Há, anunciamos ao começar, uma segunda maneira, para uma missão antropofágica, de não voltar de forma alguma, e esse método é o mais rápido e o mais seguro: é se a missão nem partiu.


René Magritte - Le Miroir Magique (1929).jpg

É um jogo de espelhos que permite, a cada vez, a inversão de valores contida no texto de Jarry: a antropofagia selvagem se torna compreensível, talvez, até mesmo estimável, quando desvelado seu reflexo especular, de um lado, na teofagia cristã e, de outro, nas comidas com as quais, longe de seus sonhos, os exploradores acabam se alimentando em momentos de penúria. Na trama superficial do texto, estão preservados o vocabulário e a sintaxe coloniais que marcam os relatos de viagem, a ciência, a religião e todas as outras formas ideológicas que delimitam o contexto euro-ocidental de 1902, quando Jarry escreve, parecendo ser suficiente, para ele, inverter os valores.

No entanto, no pano de fundo em que se desenrola a tecelagem do texto, ao fazer da antropofagia um ramo da antropologia e, assim, transformar a antropologia numa ciência do outro na medida em que, em vez de tomá-lo como objeto, pertence ao outro, ao devir-outro, em seu impulso antropofágico, Jarry opera um deslocamento, sem ocupar inteiramente a trama superficial do texto, sem ter um território que o acolha e restrinja seu movimento: se lemos entre as linhas e atrás das palavras, como se fossem rasuras e como se fosse preciso ler por baixo de seus traços, somos levados a assumir a perspectiva dos selvagens, a olhar com outros olhos, a pensar de outra forma, a imaginar o mundo a partir da alteridade. É como se, no fundo do espelho, que no quadro de Magritte abriga magicamente as palavras que descrevem o referente pressuposto da imagem que estaria ali refletida (o corpo humano do espectador), descobríssemos um outro, um selvagem, um antropófago, no qual devemos reconhecer, enfim, a imagem de nosso devir.

Uma resposta em “O devir-antropófago: Alfred Jarry, René Magritte e o espelho”

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