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A antropofagia universal: o diálogo segundo Švankmajer

Nas imagens da primeira parte de Možnosti dialogu (Dimensões do diálogo), de Jan Švankmajer, o diálogo é imaginado como antropofagia. A parte inicial do filme de animação realizado em 1982 encena uma sucessão de diálogos entre figuras formadas por objetos dispostos de modo a fazer com que o conjunto se assemelhe a corpos e a rostos humanos. São três figuras básicas que se encontram em diálogos sucessivos, nos quais uma devora a outra, para recriá-la sob nova forma: a figura formada por alimentos, a figura formada por objetos de cozinha e a figura formada por objetos de escritório.

Možnosti dialogu (“Dimensões do diálogo”)  é um filme de animação de 1982, realizado pelo tcheco Jan Švankmajer. Em suas imagens, sobretudo nas da primeira parte, intitulada Dialog vecny (“Discussão factual”), o diálogo é imaginado por meio da encenação de uma sucessão de encontros entre figuras formadas por objetos, dispostos de modo a fazer com que cada conjunto se assemelhe a um rosto humano (conforme procedimento que remonta às pinturas de Giuseppe Arcimboldo, no século XVI). São três figuras básicas que se encontram em diálogos sucessivos, nos quais uma devora a outra, para recriá-la sob nova forma: a figura formada por alimentos, a figura formada por objetos de cozinha e a figura formada por objetos de escritório.

No primeiro diálogo, a figura formada por frutos, por legumes, por pães e por outros alimentos é devorada por aquela formada por tesouras, por colheres, por raladores e por outros objetos de cozinha. Os alimentos são descascados, cortados, espremidos, misturados, até que, em meio à aparente confusão, a figura formada por objetos de cozinha lança para fora de si, como um vômito, uma figura formada pelos alimentos, em sua nova forma.

O segundo diálogo envolve a figura formada por objetos de cozinha e a figura formada por livros, réguas, papéis e outros objetos de escritório. Dessa vez, os objetos de escritório amassam, despedaçam, quebram e fragmentam os objetos de cozinha, que são, finalmente, vomitados pela figura dos objetos de escritório, que segue adiante até encontrar-se com a figura formada pelos alimentos processados no primeiro encontro.

O terceiro diálogo é aquele em que os alimentos rasgam, degradam, corroem e destroem os objetos de escritório. Em seguida, o quarto diálogo envolve a figura dos alimentos e a figura dos objetos de cozinha, ambas desfiguradas pelos diálogos anteriores. Os alimentos são processados outra vez, dando origem a uma nova figura, com os alimentos, cuja aparência é, agora, irreconhecível, compondo uma massa indiferenciada, com textura e cores mais homogêneas.

O quinto diálogo envolve, novamente, a figura formada por objetos de cozinha e a formada por objetos de escritório, que pulveriza a primeira e vomita uma nova figura, com menor diferenciação interna em suas cores metálicas. O sexto diálogo, entre a figura dos alimentos com seus tons indistintos de matéria orgânica e a figura dos objetos de escritório, conduz à destruição e à recriação da última, com objetos quebrados em pedaços ainda menores, de modo a tornar-se impossível identificá-los.

No sétimo diálogo, a figura dos objetos de cozinha devora a figura dos alimentos e vomita uma figura de argila, com traços humanos mais nítidos do que as anteriores. Uma figura de argila muito similar surge do oitavo diálogo, em que a figura dos objetos de escritório devora a figura dos objetos de cozinha.

Finalmente, no nono diálogo, uma das figuras de argila devora a figura dos objetos de escritório e vomita outra figura de argila, semelhante às demais. O décimo diálogo envolve duas das figuras de argila e resulta na criação de outra figura de argila e, a partir daí, estas se sucedem diretamente umas às outras, vomitando-se em uma sequência que parece, sugestivamente, interminável, até desaparecerem no escurecimento da imagem que encerra a primeira parte do filme de Švankmajer.

A narrativa e as relações entre as figuras, entendidas como personagens, definem uma teleologia, baseada na hierarquia que comanda cada um dos diálogos. A figura dos objetos de cozinha sempre devora a figura dos alimentos, que sempre devora a figura dos objetos de escritório, que sempre devora a figura dos objetos de cozinha (a estrutura das relações hierárquicas entre as figuras é equivalente à do jogo infantil de tesoura, papel e pedra). Na sucessão dos diálogos em que as figuras se devoram, sempre obedecendo à hierarquia de suas relações, os objetos que as compõem tornam-se, gradualmente, irreconhecíveis, enquanto cada um dos conjuntos que formam se converte em uma massa indistinta, até que permanece apenas a sucessão de figuras de argila, mais semelhantes à figura humana e, fundamentalmente, associadas à temática da criação, em decorrência do material de que são formadas.

Se, à medida que os objetos tornam-se mais irreconhecíveis, as figuras formadas por eles tornam-se mais semelhantes à figura humana, e se as figuras de argila inscrevem, na teleologia da narrativa de Možnosti dialogu, a temática da criação, tudo se passa como se a formação gradual da figura humana decorresse da (de)voragem dos objetos. O humano toma forma apenas a partir dos objetos, da matéria que alimenta seu corpo, das próteses que o suplementam e, ao mesmo tempo, definem seus contornos. É somente na condição de uma deriva fundamental que emerge a figura humana: o humano é o derivado, em sua relação aos objetos e, fundamentalmente, aos outros como objetos que é preciso devorar ou aos quais resta apenas entregar-se, para ser devorado.

Em cada um dos diálogos, a antropofagia das figuras realiza-se no microcosmo dos objetos. Nada escapa ao movimento incessante de deglutição. Em Možnosti dialogu, a figura humana, a carne dos objetos, o corpo das coisas, enfim, toda a matéria do mundo destina-se à (de)voragem da antropofagia. Na universalidade da antropofagia, somos forçados a reconhecer a figura mesma do humano, cujos traços se desfazem e se refazem, interminavelmente. A antropofagia revela-se pura antropofagia.