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A tradução comentada como antropofagia

O denso texto de Achille Mbembe que foi recentemente publicado em livro pela n-1 edições, Necropolítica, constitui uma versão atualizada (e ligeiramente modificada) da tradução publicada na revista Arte & Ensaios (no link, você pode baixar e ler o texto em PDF). O texto original também está acessível no site da Public Culture, de forma gratuita (ao menos no momento em que escrevo).

Em ambas as versões, a tradução é assinada por Renata Santini, por isso falo em atualização, e não em traduções diferentes, mas percebi algumas alterações mais significativas que têm consequências conceituais e revelam uma dimensão instável da tradução, que pode ser tanto uma fonte de problemas quanto, talvez, uma potência interrogativa que deve ser explorada.

Um exemplo de atualização importante entre as versões é o seguinte: no primeiro subtítulo do texto, onde se lia, no artigo, a expressão “tornar-se sujeito”, no livro se lê “devir sujeito”; no original, o que está escrito é “becoming subject”. Aqui, entra em jogo toda uma série de pressupostos e de desdobramentos conceituais pertinentes para a leitura dos argumentos de Mbembe, principalmente na medida em que estes podem ser relacionados à noção de devenir, palavra francesa reivindicada e deslocada por Deleuze e Guattari em diversas obras.

A noção de devenir tem se tornado cada vez mais recorrente, em diferentes contextos de debate, sendo traduzido para o inglês, com alguma frequência, como becoming, e para português, como devir. Em português, a palavra devenir pode ser traduzida, em seus usos mais comuns, por meio do verbo tornar(-se), mas o verbo devir constitui uma possibilidade alternativa que tem a vantagem de marcar, em função de seu uso menos frequente, a singularidade de sentido do conceito (além de se assemelhar à palavra francesa).

No texto de Mbembe, traduzir “becoming subject” como “tornar-se sujeito”, como ocorre na versão do artigo, equivale a reduzir ou a rarefazer – ou até mesmo a apagar – a ressonância deleuziano-guattariana de sua argumentação. Embora o autor camaronês cite, efetivamente, os dois filósofos franceses, isso não ocorre em relação a esse conceito (há uma menção pontual, embora crucial, ao conceito de “máquina de guerra”), o que torna a escolha tradutória mais desafiadora, provavelmente, mas sugere que não se trata de um uso marcado por essa filiação conceitual e filosófica. Se, por outro lado, “becoming subejct” se converte, como ocorre na versão do livro, em “devir sujeito”, a filiação conceitual se estabelece de modo mais evidente, a despeito do fato de não ser explícita na argumentação de Mbembe.

As nuances em torno da tradução de “becoming subject” revelam a potência interrogativa que pode estar associada à dimensão instável da tradução, mas algumas alterações me pareceram mais problemáticas, num sentido menos interessante. Um exemplo que provavelmente, ao menos para mim, não tem uma densidade conceitual significativa é o da tradução do subtítulo “Of motion and metal” como “De movimento e metal”, no artigo, que se transformou, no livro, em um sintagma que achei bastante estranho: “De gesto e do metal”. Traduzir a palavra “motion”, cuja relação com “movimento” é, salvo engano, etimológica, como “gesto” me parece conduzir a uma confusão desnecessária, embora ela não tenha, até onde sei, maiores consequências conceituais e filosóficas.

Um exemplo que me parece ainda mais problemático e que incide, por sua vez, numa confusão conceitual, consiste no modo como se traduziu, em cada versão do texto em português, os termos “labor” e “work”, que se referem, no original em inglês, ao pensamento de Marx (o que implica o problema da tradução do alemão de Marx para o inglês, mas isso nos conduziria mais longe do que eu seria capaz de ir nessa discussão). No artigo, a tradução dos dois termos como, respectivamente, “labor” e “trabalho”, me parece corresponder a um uso corrente dos conceitos marxianos em português e, em todo caso, preserva o sentido processual que, tal como o compreendo, Marx conferiria ao que cada conceito designa.

No livro, “labor” e “work” aparecem grafados como “trabalho” e “obra”, o que me parece gerar – ou ao menos favorecer – uma leitura equivocada de Marx, principalmente na medida em que introduz a noção não processual de “obra” para traduzir “work”. Embora esta seja uma tradução frequente do termo “work” para o português, em expressões como “work of art” (“obra de arte”) ou “the work of Karl Marx” (“a obra de Karl Marx”, isto é, os textos que escreveu), por exemplo, o sentido estanque de “obra” prejudica a compreensão do argumento de Marx, tal como lido pelo próprio Mbembe, que especifica, entre parênteses, conforme as duas versões: “criação de artefatos duráveis que se somam ao mundo das coisas”. Não se trata dos “artefatos”, o que sugeriria o conceito de “obra”, mas da “criação de artefatos”, termo que resguarda um sentido processual para o que designa.

Não sou especialista nos conceitos filosóficos de Deleuze e Guattari ou de Marx que mencionei nessa breve discussão das versões da tradução de “Necropolitics”, de Achille Mbembe. Também estou longe de ser algo mais do que um leitor interessado desse autor – e de textos que abordam questões de tradução. Penso tanto em filósofos que inscrevem essa questão no cerne de seu pensamento, como Jacques Derrida, quanto no campo de debate das teorias da tradução, em suas relações com a literatura comparada, a filosofia e as ciências humanas, tal como se articulam em obras de Gayatri Spivak ou Emily Apter, por exemplo.

Além disso, certamente há inúmeras outras mudanças que passaram despercebidas pra mim e poderiam ser debatidas. O que quero com toda essa discussão não é, necessariamente, propor que existe uma tradução melhor (embora, em alguns casos, isso me pareça possível, sim; daí a dizer que eu sei qual é, é uma história completamente diferente), mas indicar o que me parece ser uma necessidade: a adoção do comentário nas traduções, de modo geral, e nas traduções acadêmicas, em especial.

A tradução comentada me parece ser um procedimento desejável, talvez até mesmo crucial, para o debate intelectual, na medida em que permite explicitar as motivações envolvidas em escolhas de tradução, as coordenadas linguísticas e/ou conceituais que informam cada opção e os debates que as palavras dissimulam ou encerram, insinuam ou ensejam. Há uma produtividade semiótica interminável na vida das palavras e em suas ressonâncias sensíveis, que o comentário pode ajudar a registrar, conceitualmente, ou até mesmo a aprofundar, poeticamente.

São inúmeras as possibilidades da tradução comentada como procedimento. Uma delas é a introdução de notas explicativas. Se constituem intervenções pontuais no decorrer do texto, tais notas podem ser colocadas em rodapé, o que as torna mais presentes na experiência de leitura, ou no fim do texto, o que tende a estabelecer um distanciamento e favorece a conversão da leitura das notas em uma opção, já que exige mais trabalho para que seja realizada. As notas podem também ser mais gerais, assumindo, mais frequentemente, a forma de notas introdutórias. Em todo caso, notas de tradução (e/ou de edição) me parecem interessantíssimas, e a incorporação de seu uso aos modos atuais de produção acadêmico-intelectual não me parece ser tão difícil difundir ainda mais do que já tem sido feito.

Um tempo atrás, quando traduzi (provavelmente muito mal) o texto “Antropofagia”, de Alfred Jarry, para o Sopro, em seu número 48 (de março de 2011), explorei o que considero uma possibilidade mais radical de tradução comentada, na qual o comentário suplementar se torna o fundamento contingente da leitura do original. Isso ocorreu num texto híbrido, a que dei o título “O devir-antropófago” e no qual meu comentário permanece dividido internamente por citações que correspondem à tradução integral. Aqui, a inversão performática da relação entre tradução (usualmente considerada o texto principal) e comentário (usualmente considerado secundário em relação ao texto traduzido) abre um espaço intermediário, intertextual e intersubjetivo de partilha do pensamento. Ou ao menos era esse meu horizonte ao fazer o que fiz ali: a tradução comentada como uma forma de antropofagia, como devoragem.