Alguns dos mais belos comentários sobre fotografia que já vi são de Agnès Varda, uma das mais importantes cineastas francesas em atividade. Ao lado de nomes como Chris Marker e Alain Resnais, entre outros, é uma das expoentes da nouvelle vague, produzindo desde a década de 1950 obras repletas de sensibilidade que interrogam intensamente o mundo em que vivemos. Se, ao interrogar o mundo, Varda encontra no documentário uma linhagem aberta e suas heranças, sua obra jamais se deixa reduzir a uma linguagem fechada e a seus protocolos. E, muito embora Arlindo Machado não a tenha citado diretamente em suas considerações, penso que a obra de Varda pertence plenamente (o que não é dizer sem tensões) a um gênero que alguns consideram emergente, mas ao qual talvez esteja faltando apenas uma genealogia: o filme-ensaio.
Em 1983, sob os auspícios do Centre National de la Photographie, Varda participa de uma série de pequenas vinhetas para a televisão francesa, dedicadas a comentários livres sobre fotografias as mais variadas. Com duração de aproximadamente um minuto, cada um desses comentários em voz over ressoa sobre a emissão das imagens na tela, desnaturando as fotografias, por assim dizer: em vez de permanecerem estáticas e fixas diante do olhar espectatorial, as imagens assumem uma condição de fluidez, diante de um olhar móvel que, por meio de zooms, movimentos de câmera e cortes, assume o papel de mediador para o olhar espectatorial. Uma das imagens comentadas por Varda é uma fotografia de Marc Garanger de 1960, feita no contexto da guerra de descolonização da Argélia: um retrato que seria utilizado numa carteira de identidade obrigatória, imposta pelo governo francês na ânsia de manter seu controle colonial sobre a população, mas que acabou guardado durante 20 anos numa gaveta.
Transcrição do comentário de Agnès Varda sobre uma das fotografias de mulheres argelinas de Marc Garanger, de 1960:
Eu conheço essa imagem, ela faz parte dos arquivos do exército e o fotógrafo guardou o negativo durante 20 anos numa gaveta. Era a Guerra da Argélia e ele fazia seu serviço militar. Essa mulher foi obrigada a posar para ele, como todas as pessoas da aldeia, de quem se fazia fotografias para a carteira de identidade obrigatória. Portanto, ele estava em serviço seguindo ordens e ela por sua vez foi obrigada a retirar seu véu, a deixar cair seu véu. Esse duplo constrangimento, essa violência feita a cada um, é visível, sobretudo, pela incrível força com a qual essa mulher recusa. E se a desordem de seu cabelo dá a impressão de uma dor, de uma emoção, de uma perturbação, a rigidez de seu rosto, com essa dobra amarga da boca, e a incrível violência de seu olhar – tudo isso diz: “Não!”. Pode-se dar ordens a essa mulher, não se pode submetê-la. Eu fico muito impressionada pelo rosto dessa mulher. E pelo trabalho do fotógrafo que, fazendo seu sujo trabalho de militar, foi mesmo assim mais longe do que a compreensão que tinha do que se passava.
Apesar de curto, conforme o formato do programa de televisão ao qual se destinava, o comentário de Varda é rico. Ela procura contextualizar a fotografia, em relação ao contexto em que foi produzida e às intenções que a animavam no momento de sua captura, especialmente as institucionais, policiais e governamentais, de manutenção do controle colonial. Essa manutenção se dá, em primeiro lugar, sobre o corpo, ao obrigar as mulheres a retirar seus véus diante a câmera e diante do fotógrafo. Sua contextualização da imagem procura descrever tudo o que, nela, constitui um traço da violência da situação a que se refere.
Varda procura reconhecer a violência correlata, embora distinta em seu alcance e em seus efeitos, que pesa sobre o fotógrafo, Marc Garanger. Sem nomeá-lo em sua fala, ela busca ler, na imagem, sua posição ambivalente, como fotógrafo do exército francês no contexto das lutas pela descolonização da Argélia. Tudo o que Varda procura descrever na imagem, que culmina na ideia de recusa, é um indício, igualmente, da capacidade da imagem de ultrapassar a compreensão que Garanger tinha do que ocorria quando a produziu.
A descrição dos elementos da imagem confere ao comentário de Varda o rigor de uma análise, apesar da rapidez da argumentação, ao mesmo tempo em que sua fala passa pelas intensidades difíceis de descrever da emoção mais pessoal, mais íntima: “Eu fico muito impressionada pelo rosto dessa mulher”. Do contexto ao texto, da situação histórica suposta como referência do mundo (que, eu diria, não passa de moeda falsa) à inscrição imagética que resta como um dos traços visíveis, como um dos vestígios que presta testemunho daquele momento, a imagem de Marc Garanger aparece, para Agnès Varda, como uma citação do texto da história do colonialismo francês e como um jogo de luzes e sombras que se imprime sobre a subjetividade da espectadora, de qualquer espectador/a que se entregue à experiência do olhar.
Parte do conteúdo acima foi publicada pela primeira vez em 12 de dezembro de 2010. O texto foi revisado e expandido, quase três anos depois, para ser republicado nesse post.