1. A iconoclastia – cujos traços históricos precisam ser rastreados para uma compreensão de seus limites e possibilidades na contemporaneidade – consiste numa sensibilidade diante do mundo, numa intensidade, num movimento que só interessa na medida em que escape da condição de doutrina (seja religiosa, artística, política etc.). Em vez de constituir um código de conduta – que, como tal, só pode esvaziar o espaço-tempo indecidível da ética por meio da fixação de determinações positivas, sem margens – o ato de rasgar deve ser considerado um lance entre outros dentro de um jogo.
7. O que define o problema da ética em relação ao jogo em que a iconoclastia se encontra enredada – e portanto o que marca a articulação entre ética e estética como problema vital – é o esquecimento absoluto – e originário – das regras do jogo, a desmemória mais irredutível e radical. Se a lógica do arquivo comanda o retorno a um princípio de unificação, no qual se poderia encontrar – e resgatar do esquecimento – um código de conduta, o lance da iconoclastia revela que o princípio arquívico não passa de um sonho.
11. O entre é o espaço-tempo da disjunção. Ao mandato de convergência que transforma o museu imaginário em museu do imaginário, o movimento anarquívico em instituição arquívica, o entre responde ao se abrir como abrigo da iconoclastia, a partir da e para a iconoclastia. O abrir do abrigo do entre se encaminha como rasgamento e, em seus caminhos e descaminhos, insinua outras revelações.
14. Ao esquecimento absoluto e originário das regras do jogo, a iconoclastia responde com a inventividade de uma pulsão. Sem se fazer sistema, sem se deixar elevar como código de conduta, sua força sorrateira leva a uma reescrita re-veladora e se manifesta como a aposta, mais do que a proposta, de que é no movimento do jogo que as regras s(er)ão inventadas.
15. A iconoclastia – sensibilidade, intensidade, movimento – produz re-velações: a escrita sob rasura do “re”, a escrita dupla de um rasgamento do véu que, paradoxalmente, faz proliferar as dobras e dissemina outras séries de véus: os outros, os mesmos, num jogo especular e especulativo.
Imagem: A Mulher que Perdeu a Memória. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra16422/a-mulher-que-perdeu-a-memoria>. Acesso em: 20 de Fev. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.
3 respostas em “Algumas notas sobre a pulsão anarquívica”
[…] um princípio de ordenamento arqueológico, contra o qual se deve reivindicar uma ética da pulsão anarquívica associada ao programa de uma anarqueologia do cinema e da […]
[…] frente às razões de Estado – as imagens do cotidiano contra a narrativa oficial da censura, a pulsão anarquívica contra o arquivo fechado do poder. Diante do mundo, Isto não é um filme permanece […]
[…] vezes “confusas” para espectadores não familiarizados) e tornar seu fluxo menos anárquico, mais […]