Anarquivar: a memória – A Revolução dos Cravos em O Parto, do Teatro Oficina

A Revolução dos Cravos faz 51 anos neste 25 de abril. Entre os fios que se entrelaçam na derrocada do regime fascista em Portugal, encontram-se as costuras complexas da luta anticolonial no continente africano. De modo geral, compondo teias móveis de articulação transcultural, a luta anticolonial responde ao alcance global do colonialismo e às operações translocais que o definem com a busca de conexões igualmente translocais e a projeção mais ou menos explícita de outros horizontes políticos mundiais.

Especificamente, as nações emergentes entre 1973 e 1975, nos territórios até então colonizados por Portugal na África, talvez possam ser imaginadas como tecelagens heterogêneas atravessadas por elementos que fraturam incessantemente a unidade nacional projetada sobre a multiplicidade étnica e sobre os fluxos transbordantes de interlocução. Alguns dos rastros desses fios entrelaçados estão em jogo no filme O Parto (1974-1975), dirigido por Celso Luccas e José Celso Martinez Corrêa, que pode ser assistido no YouTube do Teatro Oficina.

Realizado no início do exílio que conduziu os dois artistas brasileiros a Portugal em 1974, apresentado pelo Oficina Samba (como vinha sendo designado o Teatro Oficina desde 1973 – continuando até 1979), O Parto procura “ver com os olhos livres”, como ouvimos no início. Ver: o mundo que se transforma em busca de liberdade, a história do fascismo que se tinha conseguido enfim derrubar ali onde se encontrava o regime que era um de seus mais longevos representantes, a vida novamente possível que inspira a luta em toda a parte (inclusive no Brasil da ditadura militar, de que tinham se exilado depois da prisão e da tortura no início de 1974).

Apresentado como uma “criação coletiva” em que os atores são “o povo português e seus últimos tiranos”, O Parto é, em parte, um filme de compilação, feito em colaboração com o Núcleo de Filmagens e a Filmoteca da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Para abordar a Revolução dos Cravos, o filme retorna à “I Era (uma velha era)” do Império português que “teimava em não morrer” e reconstitui o seu fim: “a velha era já era”. Ao entrelaçamento de imagens de arquivo da RTP com comentários intercalados em letreiros o filme acrescenta uma experimentação inventiva com a música.

Ao som de “Beira-Mar”, um ponto de Ogum que conecta a luta antifascista no mundo lusófono à experiência histórica brasileira, o filme adentra a “II Era (a nova era” entre imagens da luta anticolonial, nas quais a voz de Zé Celso entrevê, a certa altura, o horizonte da “libertação de todos os escravos” e do “extermínio de todos os senhores”. Intercalando-as com uma fala de Marcelo Caetano, a montagem relaciona a descolonização à derrocada do fascismo em Portugal e, em vez de reiterar a visão colonial que torna a conquista das independências uma consequência da Revolução dos Cravos, elabora um complexo entendimento do entrelaçamento entre esses processos.

Articulando, enfim, o registro de um parto ocorrido em 25 de janeiro de 1975, nove meses depois do dia 25 de abril em que o regime fascista foi derrubado pelos Capitães de Abril, com a remontagem de material de arquivo da RTP, incluindo registros diretos das ruas tomadas pelo que uma das conhecidas canções mobilizadas pelo filme denomina “poder popular”, O Parto introduz seu motivo central: “a revolução é uma criança, uma criação da classe trabalhadora”, ouviremos novamente a voz de Zé Celso dizer. O nascimento da criança aparece na mesa de montagem, em que a revolução se desdobra como perspectiva a ser elaborada sobre a história, como faz o filme, experimentando com uma série de procedimentos de montagem disjuntiva que também podem ser encontrados em 25 (1975-1977).

A perspectiva sobre a história que está em jogo em O Parto e em 25 exemplifica o que venho chamando, já faz um tempo, de paradigma anarquívico. O final de O Parto evidencia o que significa abordar a Revolução dos Cravos nessa perspectiva: trata-se de anarquivar a memória de lutas heterogêneas, isto é, de retirá-las da ordem e da arkhé que as enquadra e de endereçá-las à errância mundana da vida em comum.

Assim, depois de reivindicar a “descolonização política e cultural total” como uma espécie de projeto político mundial e de reabrir o tempo da história “até sempre” para a poesia do “Amor… humor”, acabaremos o filme ouvindo Zé Celso repetir e complementar o motivo central do filme, culminando em uma referência cifrada a um soneto de Arthur Rimbaud sobre as vogais que reaparecerá em 25: “A revolução é uma criança analfabeta, a revolução é uma criação do povo. Aprenda a falar com ela, aprenda a falar de novo. A E I U O.”

Eis talvez um dos sentidos da luta antifascista e anticolonial, de sua atualidade e de sua contundência históricas, que O Parto pode hoje nos ajudar a recordar: aprender a falar de novo, no novo alfabeto da revolução, é falar com os arquivos, remontá-los, reinventá-los, em uma relação que deve ser reconhecida como anarquívica, uma vez que decorre de uma confrontação da ordem dos arquivos e das violências que os fundam.

Uma dessas violências é aquela que separa e compartimenta as experiências históricas, por meio de fixações de identidades e diferenças. Contra isso, é preciso conectar as lutas – e talvez seja necessário até mesmo experimentar com a confusão como procedimento, em identificações móveis, indevidas, inesperadas. Para nomeá-las (como fez Lélia Gonzalez ao falar em Améfrica Ladina – e muito do que está em jogo em O Parto e 25 tem a ver com a amefricanidade), será preciso aprender a falar de novo.

  • Marcelo R. S. Ribeiro

    Entropólogo da disseminação de mundos e professor de cinema‑delírio na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor do livro Do inimaginável (Editora UFG, 2019), coordena o grupo (an)arqueologias do sensível, desenvolve e orienta pesquisas sobre imagem, história e direitos humanos, cinemas africanos, história do cinema, arquivos e descolonização.

    Ver todos os posts