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Arte e profanação

Se os readymades de Duchamp questionam a esfera da arte e suas instituições, sua interrogação afeta, igualmente, a esfera do consumo e a sagração da mercadoria.

Quando Marcel Duchamp desloca objetos de seus contextos cotidianos e os coloca no contexto da galeria e do museu, conforme a proposta do readymade, é a esfera da arte da tradição ocidental que se encontra em questão, investida como é de um caráter sagrado e dotado de valor de culto.

De forma sucinta, pode-se dizer que o sagrado advém de uma estrutura de separação em relação ao uso comum dos seres humanos. Como escreve o filósofo Giorgio Agamben, em seu “Elogio da profanação”, publicado no livro Profanações (2007):

Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere a uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. (p. 65)

Como objetos da modernidade ocidental, urbana e industrial, a roda de bicicleta e o mictório de Duchamp têm como principal característica o fato de existirem para o consumo. Um dos fatores de estranhamento envolvidos nas obras de Duchamp está relacionado a essa circunstância: enquanto as obras de arte em museus são dotadas de um caráter sagrado e, nesse mesmo sentido, investidas de uma conotação de eternidade, os objetos de consumo são efêmeros, passageiros, destinados em última instância à destruição. Se a sacralização da arte extrai as obras de arte do uso comum ao eternizá-las no templo do museu, o consumo – eixo fundamental da religião do capitalismo – extrai os objetos do uso comum ao destiná-los a uma espiral de destruição e substituição incessantes.

Assim, se na tradição ocidental as obras de arte parecem ser investidas de um caráter sagrado – expresso na separação dos objetos expostos em museus e galerias em relação à esfera mundana (mas não exatamente profana) do cotidiano -, o readymade aparece como uma profanação dupla. Por um lado, trata-se da profanação do espaço das galerias e museus e, por extensão, das grandes e grandiosas obras ali abrigadas, por meio da inserção de objetos que, ao menos em princípio, não são investidos formalmente de qualquer tipo de valor artístico em si (ao contrário, são objetos de valor instrumental, voltados sempre a uma finalidade utilitária, e não estético-contemplativa). Por outro lado, trata-se da profanação de objetos mundanos, que são deslocados de seus contextos próprios e enxertados de forma incongruente no contexto institucional da arte, aparecendo distanciados do instrumentalismo e destinados à experiência estética típica do museu/galeria, a experiência da contemplação.

Essa segunda dimensão é geralmente menos notada, se é que não passa completamente despercebida, nas interpretações de diferentes comentadores, historiadores e teóricos da arte sobre a obra de Duchamp. Além disso, é discutível se essa dimensão de profanação dos objetos mundanos resulta de uma intenção de Duchamp, assim como parece ser sua intenção a profanação dos templos da arte. Entretanto, a questão da intencionalidade deve permanecer em suspenso para que seja possível retirar do tema da profanação suas consequências mais profundas.

A extração dos objetos ao uso comum se manifesta na esfera da arte e na esfera do consumo de formas opostas (a eternização e a destruição) mas estruturalmente análogas (a separação como estrutura básica da religião). Agamben escreve:

A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu. A museificação do mundo é atualmente um dado de fato. Uma após outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida dos homens – a arte, a religião, a filosofia, a idéia de natureza, até mesmo a política – retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. O Museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza, declaradas por isso mesmo patrimônio da humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural), e até mesmo com um grupo de indivíduos (enquanto representa uma forma de vida que desapareceu). De forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência. (“Elogio da profanação”, p. 73)

Para fazer a passagem do sagrado (seja a esfera da arte ou a esfera do consumo) ao profano (a esfera do uso comum), uma das formas possíveis é o jogo, a brincadeira. É a possibilidade de jogar e brincar com (e talvez contra) a seriedade do templo do museu e das obras de arte da tradição ocidental que Duchamp, em sua interrogação dos sentidos da arte, parece anunciar com suas brincadeiras sérias, a roda e a fonte, a bicicleta e o mictório.

Mas o Museu não permanece parado diante do movimento da profanação. O Museu coloniza novamente, renovadamente, as obras de Duchamp, entre tantas das obras envolvidas nesse questionamento da estrutura de separação que fundamenta nossa relação com a arte e nossa relação com os objetos de consumo. As obras são registradas, fotografadas e catalogadas para os arquivos institucionais, para os discursos acadêmicos e, assim, destinadas ao templo do Museu como sua última morada, resguardadas ao uso comum e afastadas de qualquer jogo ou brincadeira. A potência crítica da dupla profanação – incidindo sobre as esferas da arte e do consumo – é domesticada pelo Museu, que mantém a estrutura de separação e procura impedir a disseminação dos sentidos da arte na esfera do uso comum.