Em 1839, Hipollyte Bayard conseguiu desenvolver um processo fotográfico para a obtenção de “desenhos” sobre papel. Em 1840, depois de ver fracassarem suas tentativas de obter o reconhecimento governamental e público de sua invenção, em meio à projeção alcançada pela daguerreotipia, Bayard criou uma cena inusitada, como forma de protesto. Seu corpo ocupa a área central da imagem. Com os olhos fechados, ele está imóvel, envolto em um lençol branco ou de cor clara, ao lado de um inconfundível chapéu. O título que Bayard deu à imagem define o sentido da cena: “Autoportrait en noyé”, “Autorretrato afogado”. Eis a impossibilidade: estaríamos diante do autorretrato de um morto, isto é, do retrato que um morto fez de si.
O comércio entre fotografia e ficção
Se a fotografia é, desde o início, uma imagem em movimento que se cristaliza, o retrato em que Hippolyte Bayard se fez fotografar como se fosse um cadáver revela que a fotografia não passa de cristal quebrado, de rigidez fingida, de papel rasgado: como uma das instâncias do falso, é como ficção que algum real pode se deixar entrever na imagem fotográfica. Na superfície frágil de papel em que se vê a encenação elaborada por Bayard, conterrâneo de Daguerre que não teve o processo fotográfico que inventou reconhecido pelo governo francês, será preciso reconhecer o comércio entre fotografia e ficção.
No processo fotográfico inventado por Bayard, as imagens são impressões únicas e diretamente positivas, como a heliografia e a daguerreotipia. O que os diferencia é, fundamentalmente, o suporte: em vez de metal – a placa de estanho utilizada por Nièpce, a placa de cobre utilizada por Daguerre – Bayard utiliza papel, assim como Fox Talbot, com o processo de negativo-positivo que desenvolve na Inglaterra e que o próprio Bayard adotará. O uso do papel como suporte quebra a solidez cristalina da imagem (preservada nas técnicas que usam placas de metal, em que a nitidez é maior) e aproxima o processo fotográfico de Bayard da prática da escrita. É significativa, por exemplo, a possibilidade de escrever no suporte da imagem com facilidade. Foi que fez Bayard, no verso de seu autorretrato (reproduzo o original em francês e traduzo em seguida):
« Le cadavre du Monsieur que vous voyez ci-derrière est celui de M. Bayard, inventeur du procédé dont vous venez de voir ou dont vous allez voir les merveilleux résultats. À ma connaissance, il y a à peu près trois ans que cet ingénieux et infatigable chercheur s’occupait de perfectionner son invention. L’Académie, le Roi et tous ceux qui ont vu ces dessins que lui trouvait imparfaits les ont admirés comme vous les admirez en ce moment. Cela lui fait beaucoup d’honneur et ne lui a pas valu un liard. Le gouvernement qui avait beaucoup trop donné à M. Daguerre a dit ne rien pouvoir faire pour M. Bayard et le malheureux s’est noyé. Oh ! instabilité des choses humaines ! Les artistes, les savants, les journaux se sont occupés de lui depuis longtemps et aujourd’hui qu’il y a plusieurs jours qu’il est exposé à la morgue personne ne l’a encore reconnu ni réclamé. Messieurs et Dames, passons à d’autres, de crainte que votre odorat ne soit affecté, car la figure du Monsieur et ses mains commencent à pourrir comme vous pouvez le remarquer. »
“O cadáver do Senhor que você vê no verso é aquele do Sr. Bayard, inventor do processo de que você acaba de ver ou vai ver os maravilhosos resultados. Em meu conhecimento, há cerca de três anos esse engenhoso e infatigável pesquisador se ocupava de aperfeiçoar sua invenção. A Academia, o Rei e todos aqueles que viram esses desenhos que a ele pareciam imperfeitos os admiraram como você os admira neste momento. Isso lhe deu grande honra e não lhe valeu um centavo. O governo que tinha dado demasiado ao Sr. Daguerre disse nada poder fazer pelo Sr. Bayard e o infeliz se afogou. Oh, instabilidade das coisas humanas! Os artistas, os eruditos, os jornais se ocuparam dele durante muito tempo e hoje, quando há vários dias ele está exposto no necrotério, ninguém o reconheceu ou o reclamou ainda. Senhores e Senhoras, passemos a outros, por temor de que seu olfato seja afetado, pois a figura do Senhor e suas mãos começam a apodrecer, como você pode observar.”
À insuficiência ficcional da imagem, que não é capaz de nomear ou de narrar, Bayard acrescenta o recurso das palavras, que fixam, em breve narrativa, a “instabilidade das coisas humanas”. Por meio das palavras, ele recorda alguns fatos: a recusa do governo em reconhecer sua invenção, em contraponto a Daguerre, que recebeu uma vultosa pensão anual. De forma significativa, Bayard nada diz sobre Isidore Nièpce, o filho de Joseph Nicéphore Nièpce que, mesmo tendo recebido uma pensão (menor), depois de ter dado continuidade à parceria entre seu pai e Daguerre, questionou a forma como este se apropriou da pesquisa daquele, inscrevendo-a sob seu próprio nome. Com efeito, o esquecimento de Nièpce constituiu, durante muito tempo, a perspectiva dominante na história da fotografia, apesar de hoje não haver mais quaisquer dúvidas sobre a importância de suas pesquisas.
Mas as palavras de Bayard ultrapassam o domínio dos fatos (que ele seleciona, esquecendo Nièpce). O “cadáver” do “Sr. Bayard” pode aparecer, assim, como resultado do afogamento de que foi vítima “o infeliz”. Enquanto reitera o esquecimento de Nièpce e questiona o privilégio de Daguerre, Bayard luta contra seu próprio esquecimento, contra o não reconhecimento a que a Academia e o Rei, apesar de admirarem seus “desenhos”, condenaram sua invenção. A ficção exagera os traços da realidade para estabelecer um julgamento sobre ela, representa-a de outra forma para questionar sua forma atual. No espaço ficcional delimitado por suas palavras, que procuram orientar a interpretação da imagem, dirigindo-se diretamente ao espectador e referindo-se a si mesmo em terceira pessoa, Bayard procura traduzir, simbolicamente, a situação real de recusa de reconhecimento com que se deparou em vida. A rigidez fingida do “cadáver” torna-se símbolo dramático do esquecimento de sua invenção, e a ficção formada pelos dois lados da folha de papel – a imagem e as palavras – revela-se uma forma de fazer ver a realidade com outros olhos.
A referência suposta do mundo
O comércio entre fotografia e ficção, cujo espaço as palavras de Bayard delimitam, deve ser reconhecido como condição geral da imagem fotográfica. Efetivamente, toda imagem abre um espaço fundamentalmente ficcional: é impossível saber, antecipadamente e fora de contexto, se o que se vê é fato ou ficção. Sem construir relações com outros textos, é indecidível o valor de verdade de qualquer foto.
As superfícies das imagens fotográficas que nossos olhos varrem são assombradas por inúmeras possibilidades de encenação, de manipulação e de transformação plástica, material e imaterial (amplificadas, hoje, pela tecnologia digital, mas constitutivas da fotografia desde seus primórdios). Mais: a constituição de qualquer imagem fotográfica pode ser considerada fabricada, forjada e, portanto, ficcional, devido, em primeiro lugar, ao mero fato do enquadramento (que recorta espaço e tempo, seleciona objetos e aspectos no mundo e constitui, por um efeito de censura, uma forma de fabricar a realidade).
Há vários modos de delimitar o espaço ficcional aberto por uma imagem, mas nenhuma delimitação é completa, total, absoluta. A abertura do espaço ficcional deve, necessariamente, ser acompanhada, a cada vez, pela fabricação de um contexto – um conjunto de outros textos (palavras, imagens etc.) que circunscreve e delimita, provisoriamente, os sentidos de determinado texto.
Em seu “Autorretrato afogado”, Bayard usa as palavras para fabricar o contexto da imagem e tentar delimitar seus sentidos e, ao fazê-lo, pressupõe a referência do mundo, da realidade que pretende comentar e criticar (mesmo sem registrá-la fotograficamente) por meio da encenação. A referência suposta do mundo permite a Bayard conceber tanto sua imagem quanto suas palavras como um único conjunto sistemático de sentidos, cujo centro é a relação simbólica de significação entre o suicídio encenado e a recusa de reconhecimento de sua invenção.
Pode-se dizer que, da perspectiva do significado intencional que Bayard atribui à imagem, seu “Autorretrato afogado”, impresso em papel, torna literal a definição metafórica de signo como verso e reverso de uma folha de papel, proposta por Ferdinand de Saussure. É como se a imagem que está de um lado da folha de papel constituísse o significante, e as palavras que estão do outro lado da folha, o significado. Entre um lado e o outro, entre a imagem sem sentido (a materialidade) e as palavras que conferem sentido a ela (o conceito), não há qualquer laço a não ser a ficção, que configura uma ligação que Saussure chama de arbitrária, porque sem motivação e associada a convenções, ao que se pode chamar de alucinações partilhadas.
Como uma alucinação na ponta dos olhos do espectador, o autorretrato de Bayard como cadáver se desfaz, finalmente, como papel rasgado, separando-se verso e reverso: o espaço ficcional aberto pela imagem e os sentidos delimitados pelas palavras não se ajustam entre si, não se encaixam, não se sobrepõem sem que se crie, entre eles, um insistente atrito, uma irredutível disjunção. A ficção transborda o significado. A faísca produzida pelo atrito entre espaço ficcional e delimitação de sentido é o que resta de ficção em toda imagem fotográfica: sua abertura interpretativa, sua polifonia silenciosa. A referência suposta do mundo, de que dependem os sentidos que Bayard atribui a sua imagem, por meio das palavras que escreve em seu verso, é o que a escrita da luz fabrica e falsifica, necessariamente, como um delírio vagaluminoso, mesmo quando não encena explicitamente, mesmo quando pretende apenas aderir ao real.
Uma resposta em “Autorretrato afogado (1840), de Hippolyte Bayard”
[…] tudo isso compõe a dimensão documental da narrativa, que só é revelada através do espaço ficcional aberto por suas imagens. Parte da ficção aparece como imagem em primeira pessoa, como plano […]