Inácio Araújo disse que, com Bastardos Inglórios, Tarantino traz a festa de volta ao cinema. Nessa festa, de fato, o cinema tem um papel crucial: daí a centralidade da cena da sala de cinema em chamas, no filme Bastardos Inglórios e em relação a toda a filmografia de Tarantino, como expressão simbólica e sintética de que o espaço da representação se desfez, restando apenas uma miríade de referências intertextuais, um labirinto interminável em sua superficialidade. É por isso que, para compreender o deslocamento (ou a dessaturação, como sugere o Filipe Furtado na Revista Cinética) operado(a) por Bastardos Inglórios num certo imaginário cinematográfico sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial, é imprescindível pensar as formas pelas quais, em seu filme, Tarantino (re)escreve a história como jogo e como festa.
Quando críticos de cinema, a partir de interpretações literalistas que recusam qualquer deriva metafórica à narrativa fílmica, se apressam a condenar o filme como se fosse um sacrilégio, ou como se fosse um circo revisionista, torna-se necessário (re)ler o filme como um deslocamento metafórico do imaginário dominante sobre a Segunda Guerra Mundial, o nazismo, Hitler e o holocausto.
Reconhecer o papel da metáfora no discurso cinematográfico é uma condição de possibilidade para a compreensão do que está em jogo em Bastardos Inglórios. Questionar o literalismo que serve de matéria-prima para o aprisionamento das interrogações do filme e confrontá-lo criticamente a partir do deslocamento metafórico que efetua é, por sua vez, uma condição de possibilidade para a compreensão dos limites e problemas que atravessam sua relação com o evento histórico e com a memória do holocausto. Nesse sentido, Bastardos Inglórios exige que nós sigamos seu traço sinuoso, por mais fantasioso que seja, para que possamos retornar aos rastros da história.
Para compreender Bastardos Inglórios, é preciso situá-lo no contexto aberto e heterogêneo dos filmes sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial. Sua relação com esses filmes é similar a sua relação com inúmeras outras referências que o permeiam (por exemplo, a Sergio Leone e ao Western, entre tantas outras), exceto num aspecto: a relação intertextual com outros tipos de filmes é marcadamente formal, enquanto a relação intertextual com os filmes sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial se dá em nível de forma e também, de forma crucial, em nível de conteúdo.
O imaginário cinematográfico dominante sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial constitui uma forma de memória coletiva que opera como uma prótese de consciência. A memória protética do cinema delimita o tempo do nazismo e regula formas de abertura para acessá-lo a partir de narrativas fundadas sobre estruturas melodramáticas. Os filmes sobre o período podem se tornar rituais de rememoração coletiva, na medida em que reiteram um tempo de calendário: construindo marcos protéticos para nossa compreensão histórica do nazismo, os filmes produzem performativamente um regime de verdade para sua narrativa histórica, para sua rememoração, para sua (re)contagem. Como ritos, os filmes fixam e estruturam o calendário, o tempo dominante da narrativa histórica.
Diante do tempo de calendário reiterado e do regime de verdade narrativa produzido performativamente pelo imaginário cinematográfico dominante sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial, Bastardos Inglórios constitui sem dúvida um sacrilégio: seu jogo vem interromper o fluxo dos ritos, sua fantasia vem perturbar, a partir de dentro, o regime de verdade dominante, isto é, os mitos, a mitologia. Em sua fantasia de vingança, o filme de Tarantino pareceria abandonar a história, como se o texto da história tivesse sido queimado e suas cinzas espalhadas pelo vento. Bastardos Inglórios interrompe a unidade entre mito e rito (fundamento do sagrado) que é produzida performativamente (delimitando o tempo de calendário da narrativa histórica) pelo cinema dominante sobre o nazismo e, na brincadeira desse jogo sacrílego, reduz o rito a uma repetição vazia de significantes, de formas (as múltiplas referências a gêneros cinematográficos, diretores, filmes etc.) e esvazia o mito de significado, de conteúdo, reescrevendo-o de maneira circense (a morte de Hitler na emboscada dupla de Shosanna e dos bastardos inglórios etc.).
Tudo se passa como se o holocausto – etimologicamente, a queima de tudo e, por extensão, o fogo que tudo queima – que se impôs historicamente sobre judeus, ciganos, homossexuais e outras pessoas perseguidas pelos nazistas se deslocasse metaforicamente para o interior do mundo da representação – na virada pós-moderna tantas vezes associada ao cinema de Tarantino, no qual não haveria mais realidade representada, mas apenas uma acumulação de representações sem referência, um deslocamento superficial entre imagens sem relação com qualquer realidade. A metáfora do holocausto que se configura nos planos do incêndio que Shosanna faz cair sobre os nazistas (incluindo o próprio Hitler) constitui a inversão mais vingativa, em seu caráter necessariamente retrospectivo e fantasioso, que o cinema poderia imaginar ao revisitar o nazismo. A história é (re)escrita como jogo e como festa na fumaça evanescente do holocausto invertido criado por Tarantino.