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Da crítica: a política dos corpos estranhos

No ano passado, em meio a uma das polêmicas críticas mais significativas dos últimos tempos, José Geraldo Couto iniciou assim um dos textos de sua cobertura de um dos festivais de cinema mais importantes do Brasil:

Houve choro e ranger de dentes no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, sobretudo nos debates dos filmes, em que afloraram com força desmedida demandas reprimidas durante séculos: dos negros, das mulheres, dos homossexuais. Talvez seja um desbordamento inevitável – e saudável –, mas o fato é que o cinema ficou muitas vezes em segundo plano nessas discussões permeadas por expressões como “lugar de fala”, “disputa de narrativas” e “protagonismo feminino (ou negro, ou gay)”.

Embora separe as “demandas reprimidas durante séculos” a que se refere e o que pretende designar, simplesmente, como “o cinema”, um dos pressupostos do relato, que foi publicado em 25 de setembro de 2017 (página arquivada), é o de que há uma “falsa dicotomia entre contundência sócio-política e empenho estético”. Se a premiação em que culminou o evento consagrou, finalmente, “[p]or sorte, ou por acerto do júri”, obras que “superam” a tal dicotomia, resguardando um espaço de reconhecimento de trabalhos “plenos de frescor e invenção sem tirar o pé do chão duro da realidade social”, o contexto mais amplo do festival teria permanecido refém da dicotomia, em função de “exigências” de grupos específicos, ainda que não explicitamente identificados no relato. Couto escreve: “No ambiente inflamável e polarizado do festival, acabaram ofuscados os filmes que não atendiam às exigências militantes dos grupos mais aguerridos.”

Quando li o relato de Couto, já estava em contato com algumas das reverberações online do “ambiente inflamável e polarizado do festival”, entre as quais aquela que me pareceu uma das polêmicas mais significativas, seja por suas causas, seja por seus desdobramentos: a polêmica em torno de Vazante (2017), de Daniela Thomas. Recusando por meio de uma caricatura simplista os termos do questionamento com que o filme e sua diretora se depararam, Couto escreveu (página arquivada):

Vazante, de Daniela Thomas, drama de uma menina branca casada à força aos treze anos na Minas colonial, foi bombardeado no debate de maneira descabida e cruel, quase como se a diretora, por ser uma mulher branca de classe média alta, encarnasse a culpa por séculos de escravidão.

Irresponsavelmente, Inácio Araújo reiterou (página arquivada) o insidioso recurso à noção de linchamento e uma compreensão equivocada dos próprios termos do questionamento:

O linchamento de “Vazante”, de Daniela Thomas (que causou polêmica pelo retrato da escravidão), talvez prove o estado de desrespeito da plateia em relação à arte e aos artistas: usam-se procedimentos inquisitoriais para criticar não os filmes, mas o que se julga serem posturas políticas. Não é raro sugerir cortes aos autores, ou até mesmo que o filme não seja lançado (caso de “Vazante”).

É difícil saber quais “procedimentos inquisitoriais” são utilizados em debates promovidos por festivais de cinema por pessoas que fazem perguntas nos momentos em que isso lhes é permitido. Em todo caso, a ideia de que a recepção crítica de Vazante se tornou violenta quando questionou os lugares de fala que definem o filme parece ter se tornado um lugar comum, no qual a própria diretora do filme encontra abrigo.

Quando Thomas publicou, no blog Questões Cinematográficas, de Eduardo Escorel, da Piauí, comentários sobre o que a chamada do texto descreve como “ataques feitos ao filme”, o título não poderia ser mais infeliz: “O lugar do silêncio” (página arquivada). Responder a questionamentos sobre lugar de fala, no contexto de um debate sobre a construção de representações e narrativas que abordem a realidade histórica da escravidão de pessoas negras no Brasil colonial, com um texto intitulado “O lugar do silêncio” é, no mínimo, uma evidência de insensibilidade.

Em seu relato, Thomas enfatiza a ideia de uma confrontação violenta e busca se posicionar como vítima, falando em censura e em linchamento para caracterizar os questionamentos que recebeu, ao mesmo tempo em que reivindica uma esfera separada do que julga como um imediatismo da política:

Espero que o filme sobreviva às violentas exigências da prática política com resultados imediatos e possa ser desfrutado pelo que é: cinema brasileiro feito com uma imersão profunda na nossa história, com artistas excepcionais dando o absoluto melhor de si nas suas áreas e numa integração visceral, incorporando os saberes dos descendentes dos que viveram naqueles lugares, agregando africanos, portugueses, nativos, forasteiros, recuperando conhecimentos abandonados.

Entre os questionamentos supostamente violentos que Thomas teria enfrentado, estava a intervenção de Juliano Gomes, que permaneceu mal compreendida no momento em que ocorreu no festival e foi amplamente ignorada em sua forma textual mais complexa, “A fita branca”, publicada na Revista Cinética (página arquivada). De fato, ele respondeu aos comentários de Thomas na própria Piauí, em “O movimento branco” (página arquivada), e num texto mais longo e detalhado, com o título contundente “Quem controla os silêncios?” (página arquivada).

O que gostaria de destacar, nos comentários de Couto, Araújo e Thomas, é a recorrência de uma separação entre estética e política. Mesmo atribuindo ao que chama de “dicotomia” uma falsidade, Couto afirma que “o cinema ficou muitas vezes em segundo plano” no debate; Araújo, por sua vez, atribui aos supostos “procedimentos inquisitoriais” de certos questionamentos a finalidade de “criticar não os filmes, mas o que se julga serem posturas políticas”. Thomas, por fim, separa o que considera “violentas exigências da prática política com resultados imediatos”, de um lado, e a possibilidade de que seu filme “possa ser desfrutado pelo que é”, de outro, como se a experiência do filme estivesse distante da política que, na verdade, o atravessa, seja no tempo mais imediato do debate depois da primeira exibição do longa, seja no tempo mais demorado de sua circulação posterior. Nos três casos, a política e seus avatares – entre os quais se destaca a questão do “lugar de fala” – aparecem como corpos estranhos que não são bem-vindos no debate propriamente cinematográfico, impurezas não cinematográficas que invadem indevidamente o campo próprio do cinema.

Se uma das formas de institucionalização da crítica está associada à demarcação de um campo próprio do cinema, é preciso contrapor a essa demarcação de propriedade a abertura imprópria para os corpos estranhos e para sua política. Como tentei dizer com pressa, na época em que se iniciou o debate sobre Vazante, numa formulação que se pretende mais geral: questionar filmes a partir de perspectivas de alteridade não é deixar “o cinema” em segundo plano, e sim deslocar o que é cinema. Criticar filmes e criticar a prática política associada aos filmes não são movimentos excludentes entre si, nem sequer constituem etapas ou gestos separados da atividade crítica. Se um filme deve poder “ser desfrutado pelo que é”, é preciso compreender que, a cada vez que um filme é feito e a cada vez que um filme é assistido, o que um filme é – e o que é o cinema – está novamente em questão.

Um dos riscos de toda crítica é supor uma resposta definitiva a cada uma dessas questões antes de confrontá-las ou pretender chegar a respostas definidas com base na abordagem de um ou mais filmes, como se não existisse a possibilidade do novo (e como se o novo não estivesse escondido, frequentemente, no conhecido, no passado, na história, que estão, portanto, sempre abertos a revisões, com todos os dilemas que isso envolve). É um risco de acomodação da crítica no suposto campo próprio do cinema, ao qual se deve responder correndo riscos de impropriedade, de desordenamento e de reconfiguração; é um risco de conformismo, ao qual se deve opor uma abertura desobediente e radical do espaço da atividade crítica para aquilo que não se conforma, isto é, para o que permanece ainda sem forma, informe ou amorfo, no campo do cinema e nos discursos que o delimitam atualmente; é um risco de sedimentação de espaços e sentidos, conforme um princípio de ordenamento arqueológico, contra o qual se deve reivindicar uma ética da pulsão anarquívica associada ao programa de uma anarqueologia do cinema e da crítica.

[Esta é a primeira parte de uma deriva reflexiva que deve prosseguir em breve. Atualizado em 07/03/2022: Finalmente, publiquei uma continuação dessas reflexões em Da crítica: a dupla questão.]

A foto destacada foi retirada da página de Vazante no site da Globo Filmes.

Uma resposta em “Da crítica: a política dos corpos estranhos”

Boa noite, Marcelo.
Acabo de conhecer o seu blog a partir de um comentário seu sobre o documentário Shoah no making off. Gostei muito de suas reflexões acima e vou procurar assistir este filme Vazante. Também sou professora de História, no Departamento de História da UESB. Obrigada pela tradução da entrevista de Dèrrida. Abraços.

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