Arrisquei estas notas há anos, em agosto de 2018, e elas permaneceram entre os rascunhos por tempo demais. Eu as redescobri hoje e, entre a releitura e o acréscimo de uma referência a Glissant e de uma ou outra palavra, decidi publicar o texto como está, enfim dando continuidade, como prometi, à discussão que tentei iniciar em Da crítica: a política dos corpos estranhos.
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Pensei em começar esse texto escrevendo: Um fantasma assombra a crítica de cinema, o fantasma da impropriedade. Continuaria assim: Ali onde a impropriedade se insinua, como tudo aquilo que escapa do que seria próprio do cinema, a crítica sabe apenas reconhecer seu fim, sua crise ou sua impotência. É no impróprio e em suas impurezas, contudo, com tudo, com todo mundo, com o Todo-Mundo de que fala Édouard Glissant, que se deve buscar uma espécie de festa, talvez um delírio, uma potência de deriva – justamente porque jamais poderá constituir um norte, um marco. Uma crítica exproprietária: eis um impulso a que aspirar, buscando um questionamento ontológico do próprio, que perturbe toda pressuposição de essência, toda afirmação de território, toda delimitação de ser. É preciso que a crítica abandone toda aspiração proprietária e assuma todos os riscos do movimento exproprietário que a constitui.
É preciso começar, porém, por um recuo suplementar: Se um fantasma assombra a crítica de cinema, é porque o cinema é uma questão de fantasmas, de fantasias, de desejos que configuram a experiência possível das imagens e do que entra em jogo em suas superfícies, dos sons e do que reverbera em seus intervalos. Nesse sentido, toda crítica (e não apenas suas manifestações atuais, sejam elas quais forem) deve ser compreendida como uma atividade assombrada por figuras impróprias do desejo, em sua relação com o sensível (e se poderia pretender reunir tais figuras impróprias sob o signo de diferentes instâncias do impróprio: o gênio artístico, a sociedade, a história, a política…). As diferentes modalidades da crítica podem ser reconhecidas pelo modo como, a cada vez, a atividade crítica assume ou denega, reivindica ou dissimula sua incomensurável fantasmagoria.
Entre fantasmas, é preciso continuar: Entre os fantasmas de toda crítica, uma das aparições mais frequentes é a de uma ameaçadora ausência, de um vazio insubstancial que – reclamando seus paradoxais direitos de presença entre os traços que se supõe definir o cinema – vem perturbar todo sentido de propriedade e impedir o estabelecimento de qualquer delimitação ontológica da experiência cinematográfica. A presença de uma ausência no interior da crítica é o que define tanto sua relação com o que eventualmente se supõe constituir seu exterior – e nutrir essa suposição de exterioridade implica ignorar o caráter constitutivo de toda exclusão – quanto com o que se reivindica como seu interior – e nessa reivindicação de demarcação de um dentro acumulam-se avidamente respostas pré-definidas à questão fundamental de toda crítica, que dá título à importante coletânea de textos de André Bazin: O que é o cinema?
É preciso, enfim, recomeçar: A pergunta fundamental da crítica de cinema é uma pergunta ontológica: o que é o cinema? Toda crítica atualiza essa pergunta virtual, performativamente, numa configuração singular que ela pode ou não interrogar explicitamente, na qual entram em relação um ou mais filmes, os sujeitos envolvidos em sua produção, o crítico e os demais espectadores efetivos ou potenciais de cada obra. A configuração singular que cada crítica atualiza deve ser reconhecida como parte de um campo virtual de possibilidades. A inscrição da pergunta ontológica na configuração singular do contato com filmes e espectadores exige, igualmente, seu desdobramento numa pergunta pragmática, que também articula a singularidade e o campo do possível: o que pode um filme? Mais amplamente: o que pode o cinema? Seja na pergunta ontológica, seja na pergunta pragmática, o cinema não está fixado previamente numa essência definida, nem suas possibilidades estão antecipadamente previstas e contidas em qualquer suposta essência. A dupla interrogação que a crítica realiza incide sobre o cinema como experiência (sempre aberta às derivas mais impróprias), e não como essência.