O quarto dia da segunda edição do Fronteira atravessa uma das fraturas que se abre no cerne da história do cinema: a fratura da figuração – tanto a representação figurativa (e seus limites) quanto a aparição e a exposição dos rostos e dos corpos (e sua reversão desfigurativa, embora não necessariamente abstrata).
Oh! Uomo (2004) encerra a trilogia da guerra de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, formada por Prigionieri della guerra (1995) e Su tutte le vette è pace (1999), com uma de suas mais intensas explorações do arquivo de registros de eventos associados à Primeira Guerra Mundial. Infelizmente, não pude ver o filme na projeção digital de alta qualidade que o Fronteira realizou, mas conheço sua força, que é, ao mesmo tempo, figurativa e desfigurativa. Um dos temas cruciais da terceira parte da trilogia é, efetivamente, a desfiguração dos corpos e a possibilidade de reconstituir a figura humana que a experiência da guerra de trincheiras perturbou de modo tão inédito quanto doloroso.
No border (2008) e L’impossible (2009) evidenciam o sentido profundamente poético e mundanamente lírico da obra de Sylvain George e, especificamente, de sua abordagem do sentido de insurgência que transforma as paisagens urbanas de Calais e de Paris em inconstantes cenários de atravessamento do passado – a arquitetura, os monumentos, a paisagem como história sedimentada – e do presente – os modos de passagem e de demora, de movimento e de desestabilização do espaço, dos lugares e dos corpos. A poesia da montagem de No border reside sobretudo no rigor plástico que atravessa os encadeamentos de imagens, enquanto em L’impossible esse mesmo rigor se desdobra numa retomada de alguns marcos literários da tradição dos malditos na literatura, como Rimbaud e Lautréamont, que oferecem ao filme os contundentes intertítulos que o dividem em cinco partes. A poesia dos intertítulos não explica as imagens, e a relação entre o registro da palavra e o registro sonoro e visual dos planos – que George filma com a urgência de uma tarefa política vital – é variável, isenta da redundância que frequentemente reduz as possibilidades da montagem cinematográfica, carregada por um desejo de dialética que, de modo singular, coloca em relação elementos díspares (apenas eventualmente antitéticos, aliás) e procura retirar dessa relação um sentido interrogativo (e não sintético, aliás).
Os curtas de Leo Pyrata que foram exibidos e debatidos na última sessão do dia apresentaram sua paradoxal iconoclastia iconófila com a intensidade de uma projeção cinematográfica que conferiu às imagens uma força e uma beleza muito impressionantes. Se você perdeu a sessão, pode ver cinco dos seis curtas online. A exceção é Imhotep (2015), que talvez seja um dos trabalhos de Pyrata mais beneficiados pela tela grande. O Curta dos Festivais (2013) está no Porta Curtas (aqui). Os demais estão mais abaixo, diretamente do Vimeo de Pyrata.
Gosto especialmente de Élégie à Rimbaud (2010), de Filme Pornografizme (2011) e de Imhotep (2015), assim como Cuauhtémoc (2012), que oferece uma espécie de síntese dos principais elementos explorados por Pyrata em seus curtas, além de guardar a chave interpretativa que me parece ser fundamental para entender o que está em jogo neles: a figura do “macaco com a câmera na mão”. Como escrevi sobre isso no catálogo do Fronteira, não vou me estender aqui e indico a leitura do texto, que foi a base também do que pude dizer no debate que sucedeu a sessão (que você pode acompanhar no final desse post).
De modo rápido e simplificado, me parece que um dos eixos do que pode o “macaco com a câmera na mão” é a estética da disjunção que articula uma diversidade de recursos poéticos, e um de seus efeitos mais intensos é o de uma desfiguração generalizada, de que Cuauhtémoc (sobretudo em sua segunda parte) e Imhotep oferecem os exemplos mais elaborados, mas que está presente na relação com a memória pessoal, em Élégie à Rimbaud ou O Curta dos Festivais, na representação da paisagem, em Passagem, e na relação com as imagens de pornografia, em Filme Pronografizme. Eis alguns vagalumes de Leo Pyrata.
Confira a conversa sobre os filmes: