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II Fronteira, dia 1: Ragazzi e Hit 2 Pass

Algumas anotações (nem tão) breves sobre os filmes Ragazzi e Hit 2 Pass, que deram início à segunda edição do Fronteira.

A segunda edição do Fronteira começou no dia 20/08 com os filmes Ragazzi (2014), de Raul Perrone, e Hit 2 Pass (2014), de Kurt Walker. Seguem duas notas mais ou menos breves sobre cada um.

Ragazzi é uma homenagem a – e uma deriva a partir de – Pier Paolo Pasolini, em dois movimentos sinfônicos cuja relação o título do filme fundamenta, embora não esgote. O enigma do assassinato do cineasta é encenado em seu primeiro movimento, nem sempre com o cuidado ou com a sutileza que me parecem constituir os acertos do filme. Por exemplo: a exploração dos sentidos da sobreposição de imagens no mesmo plano alcança efeitos muito singulares (sobretudo na representação dos rostos e na tentativa de capturar diferentes perspectivas sobre o que está sendo representado, um pouco à maneira de toda a tradição do que se pode chamar cubismo videográfico), mas é também frequentemente tão aleatória quanto infrutífera, sobretudo considerando que há um sentido narrativo no primeiro movimento.

Talvez essa seja uma das razões que torne o segundo movimento melhor do que o primeiro. O sentido narrativo que preocupava o diretor ao encenar as dúvidas sobre o que motivou o assassinato de Pasolini, em 1975, cede lugar a uma exploração dos corpos, dos rostos e dos movimentos que os animam, que reenvia a um dos gestos característicos do cinema de Pasolini – para dizer de uma maneira ao mesmo tempo imprecisa e necessária: a busca da pluralidade humana, isto é, dos povos, dos dialetos, das singularidades. De fato, tanto no primeiro quanto no segundo movimento as falas aparecem como as ocasiões para comentários poéticos, baseados também em textos do próprio Pasolini (entre outros), e a relação disjuntiva entre rostos e palavras confere a essas ocasiões uma força insistente, embora variável. A poesia das palavras – que é também feita do silêncio que as abriga – e a poesia das imagens – que é também feita da desintegração que as desfigura – alcançam sua articulação mais intensa na sequência final do segundo movimento, isto é, no desfecho do filme.

Assim como na vista cinematográfica de 1896 em que os irmãos Lumière registram a demolição de uma parede, cujo fascínio Auguste e Louis souberam amplificar por meio de sua projeção de trás para frente, revelando assim o milagre impossível de um muro que se ergue novamente depois de ter sido derrubado a golpes de marreta, o final de Ragazzi revela o milagre impossível da reversão do tempo. Algumas das palavras que ouvimos pouco antes falam das fotografias que guardam os instantes, do tempo que se preserva como imagem numa duração ao mesmo tempo alegre e dolorosa. Quando Perrone exibe de trás para frente algumas das imagens dos rapazes brincando no rio, é desse milagre impossível da reversão do tempo que o cineasta faz emergir – ainda mais intensamente, aliás, em meio ao uso deslumbrante da sobreposição de imagens – um dos melhores momentos de sua busca e de sua atualização (videográfica e digital) do que Pasolini denominava cinema de poesia.

Hit 2 Pass é uma interrogação assumidamente irregular – talvez desconexa demais – de algumas possibilidades bem diversas de construção de narrativas e, portanto, de memórias: o cinema, o vídeo, o videogame, a oralidade. Em meio ao andamento irregular que caracteriza todo o filme de Walker, há alguns belos achados, como o momento em que um garoto pega a câmera para filmar a corrida que está assistindo e que foi, até aquele momento, o objeto de interesse do filme, de sua narrativa, de sua visada documental. Se, afinal, uma das questões do filme era “Como filmar uma corrida?” (não apenas sua duração específica, mas os preparativos, seu lugar no cotidiano e na história de uma família), quando o menino assume a câmera e nos dá a ver sua caminhada como uma série de imagens precárias, indecisas, aleatórias, chegando a tentar adicionar à câmera um binóculo, o descuido de sua relação com o aparelho resguarda uma inocência do olhar e abre espaço para uma resposta inusitada à pergunta silenciosa que atravessava o filme: filmar uma corrida é filmar o que está além da corrida, é perdê-la de vista para melhor registrar sua memória.

A segunda parte do filme corresponde a uma entrevista com um homem de origem indígena. Ele fala sobre seus pais adotivos e sobre sua mãe biológica, que teria se recusado a seguir o conselho de um médico para que abortasse e, dessa forma, é quem deu a ele o dom da vida. Ele comenta sua relação com os aborígenes, seu desejo de encontrar um sentido de estar em casa na cultura do povo de sua mãe biológica, seu desconforto em relação à politização da identidade cultural (embora reconheça a legitimidade dessa atitude). Ele reflete, enfim, sobre a cultura narrativa a que sente pertencer, apesar de tudo, e sobre a forma de vida singular que o ato de narrar, de contar histórias ao redor do fogo, de viver as narrativas no espaço da comunidade, e não tanto no espaço ensimesmado da literatura, por exemplo. Se a questão que preocupava a primeira parte do filme dizia respeito ao ato de filmar, de narrar e de construir memórias sobre a corrida Hit 2 Pass que ocorre em Prince George, a segunda parte desloca parcialmente a perspectiva e interroga os sentidos culturalmente diferentes que as imagens, as narrativas e a memória podem assumir.

Para mim, a melhor parte do filme é a terceira, em que a iconografia dos videogames, já presente na primeira parte e na estrutura mesma do filme (que se apresenta, de certa forma, como um New Game), assume um lugar mais central. O grande achado da terceira parte me parece ser o diálogo de um jogo de RPG que ocupa parte da tela a certa altura, no qual é justamente a questão da memória que se coloca de modo contundente: a memória e sua imprevisibilidade, a memória e sua consistência lacunar, a memória e seu movimento inconstante.