A fascinação de Las Meninas parece se expressar, entre outras coisas, pela quantidade de textos que comentam o quadro de Diego Velázquez, de 1656. É inegável a irredutibilidade da obra às palavras que procuram descrevê-la, como sugeri ao abordar a análise de Michel Foucault. Mas é igualmente inegável a multiplicidade de sentidos que as palavras escavam, inscrevem ou fabricam na tela – sobre a tela, através da tela – que não estão diretamente contidos em sua superfície. Se a relação entre palavra e imagem tem lugar, a cada vez, de forma singular, isso vale tanto da perspectiva das imagens – como Las Meninas, cuja conversibilidade em palavras permanece instável – quanto da perspectiva das palavras – como cada um dos textos sobre Las Meninas, que estendem sobre o quadro incontáveis e incomensuráveis véus feitos de palavras, cujos sentidos ultrapassam, amplamente, a pintura, sua superfície, sua moldura.
Enquanto Foucault inscreve Las Meninas na passagem entre diferentes ordens do discurso, entre diferentes constituições do lugar comum da classificação do mundo, a interpretação de John Searle, no artigo “Las Meninas and the paradoxes of pictorial representation”, interroga a pintura de Velázquez com base na discussão do problema da significação, no contexto de sua concepção de filosofia da linguagem, associada à teoria dos atos de fala (speech acts). O artigo de Searle foi publicado na revista Critical Inquiry, em 1980, que consultei no Jstor e a cujas páginas me refiro nas citações, que traduzi do inglês por minha conta e risco. Foi republicado no livro The Language of Images, editado por W. J. T. Mitchell.
Se a atribuição de significados a “nossas crenças, medos, esperanças, desejos, experiências perceptivas e intenções” (p. 480) equivale, de acordo com Searle, à identificação das intencionalidades que os animam, a atribuição de significados a entidades que não são intrinsecamente intencionais, como pinturas, textos e palavras em geral, constitui um problema que é preciso explicar: “como o físico pode se tornar intencional”, isto é, como se pode explicar o fenômeno da representação? Interpretar Las Meninas é, nesse sentido, arriscar-se na passagem entre o físico e o intencional, e Searle assume alguns riscos significativos ao analisar o que chama de “níveis de paradoxo” (p. 486) do quadro.
Para Searle, Las Meninas pertence ao gênero “representação pictórica clássica”, que se define pela ênfase nos aspectos visuais dos objetos. A representação pictórica clássica tem como fundamento a busca de semelhança, a imitação, que está sempre em relação a um ponto de vista específico no espaço e no tempo. O primeiro nível de paradoxo de Las Meninas decorre do fato de que, de acordo com Searle, “a imagem é pintada do ponto de vista do sujeito [subject], não do pintor” (p. 486). O sujeito (ou assunto) da pintura é revelado pelo espelho e consiste nas figuras do soberano, o Rei Filipe IV, e de sua segunda esposa, María Ana. O reflexo do soberano e de sua esposa no espelho perturba a ordem da “representação pictórica clássica”, pois não é “consistente” com o “sistema de axiomas da pintura ilusionista representativa clássica” (p. 483), tanto no que Searle chama de “leitura ilusionista” quanto no que chama de “leitura representacional”.
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Na leitura ilusionista da pintura clássica, “o observador vê a imagem como se estivesse vendo a cena original” (p. 482). Em Las Meninas, um dos elementos ilusionistas que perturba a posição do observador é o espelho, que, em vez de refletir sua imagem, ou a imagem de elementos presentes na pintura, abriga o rei e sua esposa. Esse é o primeiro e mais simples nível de paradoxo do quadro de Velázquez, segundo Searle, que argumenta que isso conduz a um colapso da organização dos pontos de vista pressuposta pela representação pictórica clássica. Em vez de se endereçar a um ponto de vista espectatorial que é exterior à imagem e à cena representada e que, conforme a leitura ilusionista, coincide com o ponto de vista do pintor, também exterior, Las Meninas inscreve os dois pontos de vista (espectatorial e autoral, por assim dizer) na cena: o pintor está ali, diante do quadro cuja superfície não vemos; o espectador está ali, sob a forma do reflexo do soberano e de sua esposa no espelho.
Na leitura representacional, “o observador vê a imagem como uma representação da cena em virtude da imposição de intencionalidade em seus elementos ilusionistas que estão na base dos elementos representacionais” (p. 482). Em Las Meninas, o elemento mais enigmático da representação, cuja intencionalidade e cujo significado permanecem inescrutáveis, é a tela de pintura, de que se pode ver apenas o verso, que não é olhada por ninguém, nem pelo pintor, embora se possa imaginar que este acaba de se afastar dela e voltará a se aproximar para pintá-la novamente. Searle assume o risco de contradizer a “interpretação padrão” (p. 485), que afirma que o que o pintor está depositando sobre a superfície da tela que não podemos ver equivale ao reflexo que se adivinha no espelho. A objeção de Searle é circunstancial: a tela seria grande demais para esse tipo de retrato.
Em contraposição à interpretação padrão do reflexo no espelho como indicação do conteúdo da tela que não vemos, Searle arrisca-se a escrever, com base em “alguns fragmentos [bits] de evidência externa”: “Penso que o pintor está pintando a imagem que vemos; isto é, ele está pintando Las Meninas de Velázquez.” (p. 485) Dessa forma, a leitura representacional é perturbada pela duplicação da posição do pintor, que assume um ponto de vista impossível, porque dividido: ele está dentro da cena que, ao mesmo tempo, busca representar. Novamente, o cerne do paradoxo permanece identificado com o espelho, que inscreve no centro da pintura o reflexo do ponto de vista que a constitui, mas não revela nem o pintor, nem o espaço representado visto de outro ângulo, mas as figuras do rei e da esposa, que ocupam esse lugar como se não pertencessem a ele: “no caso de Las Meninas“, escreve Searle, “o que é imitado não é o que o artista viu ou poderia ter visto, mas o que o sujeito/assunto [subject] viu ou poderia ter visto” (p. 487).
Nos termos da teoria dos atos de fala e de suas possíveis aplicações aos domínios da imagem, Searle pode escrever: “assim como no pensamento o ‘eu’ de ‘eu penso’ não precisa ser aquele do sujeito [the self] (em fantasia, por exemplo) e nos atos de fala o ‘eu’ do ‘eu digo’ não precisa ser aquele de quem fala ou escreve (na prática do escritor-fantasma [in ghostwriting]), também nas Meninas o ‘eu’ do ‘eu vejo’ não é aquele do pintor, mas o do casal real.” (p. 487) Quebra-se a ligação entre o ‘eu vejo’ da pintura e o ‘eu vejo’ do pintor.
Embora o vocabulário que Searle movimenta para analisar Las Meninas ofereça ferramentas que ajudam a compreender a complexidade do quadro, sua análise não me parece conseguir reconhecer, nos paradoxos que pretende ter identificado (dos quais o segundo, que depende da assunção de que o pintor dentro do quadro está pintando o próprio quadro que vemos, é o mais difícil de sustentar), a potência que atravessa a obra. Em vez de explorar os paradoxos como insinuações de formas de olhar e de pensar que escapam à ordem da representação, Searle permanece preso à linguagem da representação ao descrever e analisar Las Meninas. Embora consiga reconhecer os contornos de uma crise da representação nos paradoxos que atribui ao quadro, Searle não faz justiça ao abalo que a obra de Velázquez acarreta, não tanto por causa do que representa ou deixa de representar, mas sobretudo em decorrência da forma de mediação da experiência de olhar que a pintura instaura.