Algumas das aparições mais recorrentes nas vistas cinematográficas do catálogo Lumière são figuras do exótico. Se suas imagens resguardam a potência cosmopoética do cinema, o mosaico do catálogo Lumière tende a se configurar como museu do mundo.
Na vista 741, “Les Aïnos à Yéso I”, Constant Girel registra uma dança da etnia Ainu, na ilha mais setentrional do Japão, Hokaido (conhecida até 1869 como Yeso, Yezo ou Ezo). O quadro é fixo: quatro homens dançam no espaço diante de uma casa; três crianças, que estão do lado de fora como eles, observam seus movimentos; duas pessoas, cujos bustos podem ser identificados numa janela à esquerda da imagem, também observam o que se passa. A moldura do enquadramento não contém todos os movimentos da dança, que eventualmente transbordam o quadro.
Os Ainus e o Japão: colonialidade e modernidade
O ano do registro é 1897, quase trinta anos depois do início da Restauração Meiji, em 1868. O governo Meiji conduziu o Japão à consolidação de uma economia capitalista industrializada, por meio de medidas de modernização impostas de cima para baixo, e à projeção de seus interesses imperialistas, por meio de crescentes e recorrentes expressões de expansionismo regional e mundial (o nexo entre modernidade e colonialidade não define apenas o processo europeu de modernização).
Em 1869, o governo Meiji mudou o nome de Yeso para Hokaido, como sinal de sua incorporação definitiva e unilateral ao Japão, decorrente de interesses da etnia dominante, os Wajin, nos recursos naturais da ilha. Por meio da aplicação do conceito de “raça” e da constituição de ideologias racistas destinadas a discriminá-los, a situação dos Ainus tornou-se cada vez mais crítica: foram expulsos de suas terras e escravizados, foram proibidos de usar sua própria língua, de caçar e de pescar (atividades fundamentais para seu modo de vida, como caçadores-coletores) etc.
À exploração e à discriminação de que foram objeto, acrescentou-se a tendência de assimilação, em parte decorrente das imposições governamentais. Entre as medidas, encontra-se o estabelecimento da obrigatoriedade de aprender japonês, a imposição da adoção de nomes japoneses, a interrupção de práticas religiosas como sacrifício de animais e pintura corporal. Em 1899, o governo japonês definiu os Ainus como “antigos aborígenes”, o que conduziu ao não reconhecimento de sua diferença cultural. A assimilação foi também buscada pelos Ainus como forma de sobrevivência e, ao mesmo tempo, de resistência, por meio da busca – similar à das sociedades indígenas no Brasil, por exemplo – do delicado equilíbrio em que se torna possível a continuidade na transformação.
De forma semelhante ao que experimentaram sociedades indígenas e aborígenes, nas Américas ou na Oceania, na África ou na Ásia, os Ainus tornaram-se estrangeiros no território governamental que impôs suas leis estatais sobre territorialidades não-estatais. Talvez se possa dizer que constituem uma “sociedade contra o Estado” (em referência ao importante livro de Pierre Clastres). Depois de atravessarem o século XX sem reconhecimento governamental de qualquer condição de diferença, impondo a assimilação como horizonte de existência, os Ainus foram reconhecidos como sociedade indígena por uma decisão judicial em 1997 e por uma resolução do parlamento japonês, a Dieta, em 2008 (leia a notícia da BBC de 06 de junho de 2006 que registra esses acontecimentos). Atualmente, constituem uma minoria étnica e têm sua língua, sua religião e sua cultura reconhecidas, oficialmente, pelo Estado nacional japonês.
Como ler o museu do mundo?
O interesse da vista 741 em que os Ainus dançam diante do cinematógrafo reside na promessa que abriga: a construção, filme por filme, fotograma por fotograma, imagem por imagem, do museu do mundo. De fato, o mosaico de imagens do catálogo Lumière aparece como parte do museu do mundo que o cinematógrafo inaugura e que atualiza, com a imagem em movimento, o museu imaginário.
É preciso tentar ler, nas imagens e apesar delas, os traços do mundo. A vista 741 não revela a história dos Ainus, que resumi como pude acima. Tampouco introduz elementos para entender o Japão em que os Ainus foram conduzidos a sobreviver sem que sua diferença fosse reconhecida de forma positiva, apenas negativa, com base em racismo. Se a imagem permanece tão silenciosa em relação ao mundo, como se pode ler, em sua superfície, algo como um museu, uma conjunção de documentos, mesmo que indiretos e incompletos, da barbárie e da beleza que constituem a vida na terra?
Eis o desafio incontornável da leitura do museu do mundo, que se articula em imagens como a vista cinematográfica 741 do catálogo Lumière. É preciso, em primeiro lugar, buscar informações suplementares, que sejam capazes de popular as superfícies mudas e, portanto, escurecidas das imagens com a luz de vagalumes necessária para iluminar alguns de seus aspectos, mesmo que apenas parcialmente. Foi o que fiz acima. Estou certo de que assistir a vista 741 depois de ler sobre os Ainus no Japão torna-se uma experiência diferente.
É igualmente necessário buscar pensar entre imagens: entre elas, com elas e como elas – no intervalo espaço-temporal que as separa, a cada vez; na expressividade de suas formas e de seus silêncios; no inesperado porvir que inauguram com sua vida sensível, que é como a nossa, movimento de expropriedade e pura fagia. Ao inscrever a vista 741 em relação a outras entradas do catálogo Lumière que compõem o que chamei de museu do mundo, tentei indicar um caminho possível desse pensamento entre-imagens. Mas há outros. Sempre.
O movimento das formas que a dança Ainu delimita na superfície da imagem, os olhares atentos ou indiferentes (como saber ao certo?) que os espectadores no fundo do enquadramento lançam sobre os dançarinos que ocupam o primeiro plano, a música inaudível que parece habitar os passos, como se fosse possível escutar seu eco distante através de nossos olhos – tudo isso confere à vista 741 uma pequena pulsação. Não há muito mais do que isso nessa imagem distante, no tempo e no espaço, num primeiro olhar, mas é preciso olhar novamente, sempre. É preciso olhar com outros olhos.
A filmagem da entrada 741 delimita uma rede de relações. Podemos supor que o cinematógrafo entra no Japão como parte do campo de sentidos da modernização, como um de seus objetos emblemáticos. Quem dirige o olhar do aparelho para os Ainus parece estar interessado em preservar a imagem de sua dança, de seus corpos, de seus rostos, mesmo que sob a forma do exótico, do diferente, tanto para o olhar ocidental quanto para o olhar japonês em suas formas dominantes. O arquivamento da imagem conduz de volta ao Ocidente, sob o nome Lumière, cuja luz parece se projetar sobre o mundo, mesmo que seus sentidos não sejam nem um pouco previsíveis.
Na rede de relações que constitui “Les Aïnos à Yéso I”, dessa forma, estão ligados a França e o Japão imperialistas do final do século XIX, as luzes que são associadas à primeira (o Iluminismo, a herança da Revolução Francesa, os direitos do homem etc.) e a penumbra misteriosa em que parece permanecer o segundo (a tradição rígida de códigos de honra, o mistério dos samurais, a que os Ainus foram associados por alguns pesquisadores, a persistência do velho em meio à imposição do novo etc.), particularmente aos olhos ocidentais que arquivam a vista. Entre as luzes e a penumbra, os Ainus se tornam visíveis, impertinentes para ambos, inassimiláveis ao Iluminismo liberal francês e à modernização estatal japonesa. São fantasmas do primitivo, que a modernidade expulsa e desterra, e que volta para assombrar suas imagens e suas paisagens.
Uma resposta em “Lumière, a luz: 741 – Les Aïnos à Yéso I”
[…] em relação a Muse, que aparece como uma figura desencantada do exótico: seu aspecto primitivo é reduzido a mero atraso tecnológico, a fascinação da diferença cultural é […]