Quando o baiano Olney São Paulo realizou Manhã cinzenta, entre 1967 e 1969, a ditadura militar (1964-1985) cujo regime autoritário governava o Brasil incrementava o alcance de seu aparato repressivo.
A crescente centralização jurídica e institucional da censura, sob o comando de militares, na cidade de Brasília, por meio do Serviço de Censura de Diversões Públicas, conduziu o escritor e cineasta a fazer cópias de seu filme e a enviá-las para cineclubes brasileiros e festivais internacionais.
De fato, o Ato Institucional nº. 5, de 13 de dezembro de 1968, consolidava a militarização e a centralização do aparato de censura, cuja existência remonta ao período da República Liberal (1946-1964), além de estender a censura prévia à totalidade dos meios de comunicação. Na censura, com efeito, está em jogo a tentativa de controlar o processo de produção do arquivo histórico que constituir o Brasil.
Produzidas com o intuito de escapar da censura prévia amplificada pelo AI-5, as cópias de Manhã cinzenta tornaram possível a difusão do filme em contextos em que a obra alcançaria projeção e reconhecimento, fora do Brasil, ao mesmo tempo em que acarretaram a prisão de Olney São Paulo, sob a Lei de Segurança Nacional.
O filme foi proibido no Brasil, e as cópias foram confiscadas, junto com os negativos, em 1969. Uma delas, contudo, permaneceu escondida por 25 anos na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Para Glauber Rocha, em Revolução do Cinema Novo, Manhã cinzenta é uma obra de suma importância no contexto da resistência à ditadura. De fato, é na expressão “montagem caleidoscópica” que o expoente do Cinema Novo encontra a inscrição estilística e formal da força política associada ao conteúdo da obra pela censura dos militares:
Olney é a Metáfora de uma Alegorya.
Retirante dos sertões para o litoral – o cineasta foi perseguido, preso e torturado.
A Embrafilme não o ajudou, transformando-o no símbolo do censurado e do reprimido.
Manhã cinzenta é o grande filmexplosão de 1967/8 e supera incontestavelmente os delírios pequeno-burgueses dos histéricos udigrudistas.
Montagem caleidoscópica desintegra signos da luta contra o Syztema – panfleto bárbaro e sofisticado, revolucionário a ponto de provocar prisão, tortura e iniciativa mortal no corpo do Artysta.
O Cinema Nordestino, Cinema Popular metaforizado em Olney e Miguel Torres, vítimas dos invasores – Heroys do Brazyl!
Glauber Rocha, em Revolução do Cinema Novo
“Metáfora de uma Alegorya”: Olney aparece como uma figura de linguagem, nas anotações que compõem a memória afetiva de Glauber Rocha sobre o período de desenvolvimento do Cinema Novo e seu contexto histórico.
Metaforicamente, o cineasta baiano representa a situação do Cinema Novo e do cinema marginal no contexto da ditadura militar.
Sua trajetória é alegórica, na medida em que condensa as coordenadas da censura, da prisão e da tortura, que caracterizaram a atuação do regime em relação à população em geral, ao mesmo tempo em que delimita um horizonte de resistência que está, desde o início, em tensão com o governo autoritário.
Manhã cinzenta aparece, por sua vez, como “filmexplosão”, em contraposição aos “histéricos udigrudistas” (referência ambivalente ao cinema marginal e à noção de underground). A marca estética dessa intensidade explosiva, o recurso estilístico dessa potência de resistência contida na obra de Olney São Paulo é o que Glauber denomina “montagem caleidoscópica”.
Sem propor definições, Glauber parece indicar que a montagem de Manhã cinzenta produz uma desintegração parcial da narrativa, cujo conteúdo inclui “signos da luta contra o Syztema”.
Se a resistência à ditadura militar define, parcialmente, os horizontes de sentido do Cinema Novo e do cinema marginal, Manhã cinzenta participa desse contexto da história do cinema brasileiro ao encenar um golpe militar em um Estado não identificado, a partir da perspectiva de um casal que, depois de preso, está sujeito a um absurdo inquérito que envolve acusações enviesadas, um robô e um “cérebro eletrônico”.
Se há alegoria em Manhã cinzenta, sua “montagem caleidoscópica” reduz a distância que separa os veículos alegóricos da realidade histórica que representariam indiretamente. Por outro lado, o “cérebro eletrônico” e o robô afastam os veículos da realidade histórica, introduzindo na alegoria seu fundamental sentido de estranheza, por meio de figuras características do universo da ficção científica.
Uma análise mais detalhada do filme de Olney São Paulo deve entrelaçar a perspectiva histórica associada à compreensão do contexto da ditadura militar à perspectiva teórica associada à compreensão dos sentidos do que Glauber Rocha denomina “montagem caleidoscópica”.
No caleidoscópio subversivo de Manhã cinzenta, pode-se reconhecer a pulsão anarquívica da arte, diante do arquivo (e de seu fechamento, até hoje) como função da censura (que ultrapassa suas manifestações jurídicas e institucionais).