O sonho de Dynn Eadel
Jamais se soube ao certo
o que oculta um deserto.
Carlos Drummond de Andrade
“Verbos” (Farewell, 1996)
[Com fotos de Kaupo Kikkas.]
Conta-se que um homem chamado Dynn Eadel sonhou ou delirou um cinema no deserto do Sinai. À maneira do irlandês Brian Sweeney Fitzgerald, protagonista de Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog, que sonha em construir uma casa de ópera em Iquitos, no Peru, o provável francês de nome improvavelmente anglo-saxão em sua sonoridade teria se rendido à fantasia de instalar, no meio de um deserto, o aparato de projeção e as cadeiras que costumam compor uma sala de cinema.
A ruína de seu sonho desvairado, que data do início do milênio, permanece ainda visível, como um monumento desgastado a um sonho infantil que nunca se realizou. Nas imagens de satélite do Google Maps que se pode explorar abaixo, o sonho de Dynn Eadel se dá a ver como uma inscrição enigmática na superfície do deserto — um hieróglifo, talvez, que seria preciso decifrar, mas cujo código se revela incerto, como o trabalho de sonho que, na psicanálise ou no cinema, re-vela o inconsciente, isto é, mostra e oculta seus sinais, ao mesmo tempo.
A gigantesca tela que Dynn Eadel encomendou se ergueria diante das cadeiras, ainda hoje fixadas na areia, que foram compradas de um antigo cinema da cidade de Cairo, para a exibição de filmes ao ar livre. É ao “Grande Teatro da Natureza” que um possível folheto de divulgação associa o projeto, intitulado Seventh Art e situado nas proximidades da cidade de Sharm el-Sheikh, no sul da Península do Sinai, no Egito. As cadeiras estão dispostas na forma em que foram instaladas no local, como se estivessem à espera de espectadores que realizem seu propósito ainda incompleto. No folheto (cuja reprodução você pode ver clicando na imagem abaixo), lê-se o seguinte texto, em francês e em inglês:
A cabeça nas estrelas
Um pouco mais perto das estrelas, um pouco mais baixo que o deserto de Wadi Khroom, situada entre as dunas e as montanhas, uma imensa tela branca de cinema. Não muito longe da cidade beduína de Sharm el-Sheikh, Seventh Art foi inventado em uma noite de solidão por Dynn Eadel. Antigo aluno de arte dramática e ator ocasional, esse francês veio se aventurar em um dos cantos mais distantes do Oriente Próximo. O projeto de Dynn é um sonho de infância; um cinema drive-in em pleno deserto, onde as montanhas ecoam o som da parede de alto-falantes, onde a projeção pode começar assim que um teto de estrelas sobrepõem-se à tela. Imagine-se assistindo 2001 – Uma Odisseia no Espaço, sentado entre alguns privilegiados em uma das setecentas poltronas de madeira, de estilo dos anos 1950, de um cinema com paredes de areia. Com Seventh Art, Dynn Eadel tenta provar que o turismo não é necessariamente um elemento destrutivo e que, no Grande Teatro da Natureza, a diversão pode nos reconciliar com os elementos. Quando será o primeiro Festival Internacional de Cinema do Sinai?
Contato: theseventhart60@hotmail.com
Será verdade o sonho de Dynn Eadel? Terá esse insondável francês delirado uma projeção ao ar livre, no deserto, numa noite solitária, talvez sob o efeito da maconha, em todo caso sob o efeito da droga da imaginação? Se for mentira, quem a terá inventado? Quem terá sonhado Dynn Eadel sonhando seu delirante cinema no deserto? Nesse labirinto onírico, em que Jorge Luís Borges talvez reconhecesse um dos sonhos que transformou em conto, o sonho de Dynn Eadel (ou de quem sonhou Dynn Eadel) modificou o Saara.
O deserto como figura cinematográfica
A máquina cinematográfica de sonhos – de que aquela Hollywood que foi chamada a “fábrica dos sonhos”, the dream factory, é apenas uma parte – encontra no deserto, desde o início, um de seus motivos recorrentes. No processo de constituição do cinema como arte e indústria narrativas, a figura do deserto, que ocupara relatos de viagem, romances, contos e poemas da literatura do século XIX, vem assombrar o imaginário cinematográfico.
Seria preciso escrever uma história do deserto como figura cinematográfica. Suas múltiplas aparições configuram uma constelação de sentidos: o deserto como paisagem estranha para os olhares metropolitanos, nas vistas cinematográficas do catálogo Lumière; o deserto como cenário fantasioso, na ficção científica e nas aventuras coloniais; o deserto como zona de contato da expansão nacional e/ou global, no faroeste ou no cinema político africano.
Mesmo sem a aventura dessa história que resta escrever, algum dia, é possível desde já propor um impulso criativo e crítico para a interpretação de alguns de seus sentidos. É possível arriscar dizer: no deserto, o cinema erra na fronteira. Em um sentido preciso, a história do cinema não seria muito mais do que a exploração mais ou menos consciente desse erro e dessa errância, mesmo quando a figura do deserto não entra em cena, mesmo quando o deserto permanece fora de quadro.
No deserto, o cinema erra na fronteira: suas imagens (mal-)representam, equivocamente, diversas formas de fronteira, de contato com qualquer alteridade, a começar pela alteridade do próprio real, inscritas sob a figura do deserto – um nada, o incompreensível, o outro como ausência de sentido, que é preciso recortar a partir da linguagem, das ideologias de identidade e das ontologias da realidade, dos sonhos de incorporação de tudo o que resta de mundo na economia dos fluxos do capital.
(De fato, o sonho de Dynn Eadel era também um projeto de atividade turística, numa época em que o turismo se converte, cada vez mais, em modo de incorporação de toda e qualquer paisagem nos fluxos do capital.)
No deserto, o cinema erra na fronteira: suas imagens são a deriva, a errância, a incinerrância, na superfície inominável do real, onde talvez seja possível adivinhar a vida e re-velar a anarquívica arte de viver.
Uma resposta em “O cinema, o deserto e o sonho”
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