O Grande Roubo do Trem é o segundo título apresentado no livro 1001 filmes para ver antes de morrer. A obra está em domínio público e pode ser facilmente encontrada, em diversas versões. Uma delas está disponível mais abaixo.
Entre os aspectos que conferem a O Grande Roubo do Trem sua importância histórica e seu interesse ainda atual está a forma como o filme dá impulso à convergência entre cinema e narrativa, já muito familiar para nós, apesar de ser uma espécie de acidente – longo e frutífero – na história do cinema. Nenhuma essência liga cinema e narrativa – nem mesmo a montagem, que O Grande Roubo do Trem começa a explorar como uma forma de jogo com o tempo.
Observação: Muitas das informações que fundamentam esse texto, incluindo algumas de suas imagens, pertencem ao filme Before the Nickelodeon (1982), de Charles Musser. Recomendo também o livro homônimo do mesmo autor.
Narrativa: orientar o olhar
Embora hoje nós tendamos a associar a experiência do cinema à construção de uma história, em que personagens mais ou menos identificáveis se encontram e uma ação ou uma situação se desenrolam, o cinema permanece irredutível à narrativa. Não há nenhuma relação necessária, certa ou natural entre cinema e narrativa. Isso quer dizer pelo menos duas coisas: em primeiro lugar, que a diversidade de maneiras de se fazer cinema inclui uma série de exemplos não-narrativos; em segundo lugar, que a história do cinema passa pela história de sua narrativização, isto é, de sua transformação em uma forma cultural da narrativa, ao lado da literatura e do teatro, entre outras.
É principalmente pelo lugar que ocupa no processo de narrativização do cinema que O Grande Roubo do Trem (1903), de Edwin Stanton Porter, costuma ser lembrado. Rodado em diferentes locações, tanto em estúdio quanto ao ar livre, o filme é composto de 14 cenas que duram, no total, cerca de 12 minutos. Não há letreiros narrando a história ou informando diálogos, e tampouco era necessário que as imagens fossem acompanhadas por comentários de um apresentador ou narrador (similar ao que se pode ouvir nessa versão de Viagem à Lua) nas numerosas exibições a que o filme foi consagrado em sua bem-sucedida circulação nos Estados Unidos, sob os auspícios de Thomas Alva Edison.
Enquanto os irmãos Lumière elaboram e lançam o cinematógrafo na França, Edison – que foi o responsável pela invenção do fonógrafo em 1877 – procura fabricar um instrumento de visualização de imagens em movimento nos Estados Unidos. Em 1888, ele escreve: “Estou experimentando sobre um instrumento que faz para o olho o que o fonógrafo faz para o ouvido, que é a gravação e reprodução das coisas em movimento, e de tal forma que seja ao mesmo tempo barato, prático e conveniente. Esse aparelho eu chamo um Kinetoscópio de ‘vista em movimento'” (“I am experimenting upon an instrument which does for the eye what the phonograph does for the ear, which is the recording and reproduction of things in motion, and in such a form as to be both cheap, practical and convenient. This apparatus I call a Kinetoscope ‘moving view'”).
Já em 1894, o estúdio de Edison em Nova Jersey, conhecido como Black Maria, recebe várias atrações típicas das casas de espetáculo de variedade, para que sejam “kinetographed”. No entanto, assim como nos salões de fonógrafos de Edison, a experiência do Kinetoscópio é em primeiro lugar individual, oferecendo as “vistas em movimento” por meio de visores fechados, em vez de projeção, para um olhar espectatorial marcado pelo voyeurismo. A busca pela possibilidade de projetar as vistas em movimento, como se fossem imagens de lanterna mágica, faz com que Edison se aproprie do Phantascópio, inventado por Charles Francis Jenkins com o apoio de Thomas Armat, registrando-o como seu invento sob o nome de Vitascópio em 1895. Seria preciso dar conta do que se passa entre o olhar (scopos) que se abre para os fantasmas e as fantasias (Phanta) e o olhar que pesa sobre a vida (Vita). O que está em jogo nessa passagem repleta de metáforas é um contexto de disputas judiciais concretas em torno de patentes. Esse tipo de disputa marca a emergência do cinema, assim como marcou antes a da fotografia e parece constituir um elemento recorrente na história moderna das invenções tecnológicas.
Em 1897, Edwin S. Porter trabalha na exibição de diferentes tipos de imagens em movimento no Eden Musée, em Nova York. Assim como tantos outros exibidores, Porter assume o papel de montador, definindo a forma como serão mostrados ao público, entre outras coisas, os registros de 30 segundos feitos por William Paley da Guerra Hispano-Americana de 1898. Os exibidores podem exercer o papel de montadores porque compram os rolos de filmes, em vez de alugá-los, como começará a ser feito em 1908. Entre um momento e outro, desenrolam-se uma série de mudanças de modo de produção e de distribuição de filmes, que alteram as relações entre produtores, distribuidores, exibidores e público. Recomendo especialmente dois livros em português para quem tiver interesse em conhecer melhor o chamado “primeiro cinema”: Pré-cinemas & Pós-cinemas, de Arlindo Machado, e principalmente O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação, de Flávia Cesarino Costa.
Em 1900, Porter começa a trabalhar no estúdio de Edison, como cinegrafista, além de montador, compondo seus quadros a partir de referências como quadrinhos de jornais e pinturas. A experiência de Porter como cinegrafista e montador está no cerne de O Grande Roubo do Trem, além de seu conhecimento sobre a recepção do público, que ele acumulou no decorrer de viagens como exibidor itinerante, antes de trabalhar para Edison.
Se há um encadeamento narrativo nítido, que liga as 14 cenas de O Grande Roubo do Trem sem qualquer letreiro na tela ou comentário na sala de exibição, é um encadeamento similar àquele de Viagem à lua, de Méliès – filme que Porter é responsável por copiar, na Edison Manufacturing Company, para distribuição pirata nos Estados Unidos. (O sucesso dos filmes de Méliès fora da França, sobretudo nos EUA, está ligado à “pirataria”, que em última instância levou seu estúdio à falência, embora tenha sem dúvida contribuído para o lugar privilegiado que ele ocupa na história do cinema.) É inspirando-se no trabalho de Méliès que Porter filma, no início de 1902, uma adaptação de “João e o pé de feijão”. O que isso evidencia é o fato de que Porter não pretende criar narrativas originais, mas baseia-se em histórias conhecidas para guiar o entendimento do público. Tanto letreiros quanto comentários foram recursos importantes no processo de narrativização do cinema, por permitirem a orientação do olhar do espectador. Ao dispensar esses recursos, O Grande Roubo do Trem tem como base um capital simbólico acumulado previamente pelo público a que se destina: narra uma história já conhecida por outros meios.
É em parte por isso que, do ponto de vista da narrativa, O Grande Roubo do Trem se encontra associado a uma série de mitos de origem na história do cinema, desempenhando o papel de articular uma série de recursos emergentes. A importância do faroeste como gênero parece antecipada pelos tiros, pelos cavalos e pela perseguição, assim como pelas experiências de montagem a que o enredo do filme permite que Porter se dedique. Mesmo se, de fato, O Grande Roubo do Trem não foi o primeiro faroeste ou o primeiro a usar a montagem para intercalar ações simultâneas em espaços diferentes (a chamada montagem alternada ou paralela), ele é sem dúvida um dos filmes mais densos dos primeiros anos do cinema. É nele, afinal, que se condensa a invenção em andamento de algumas das formas mais marcantes da linguagem cinematográfica.
Montagem: jogar com o tempo
Quando se fala em “linguagem cinematográfica”, a montagem emerge como um dos principais tópicos de discussão. Embora problemática (por uma série de motivos que não cabe discutir aqui), a associação entre montagem e linguagem cinematográfica é recorrente. A questão da especificidade – afinal, o que é que diferencia o cinema das outras artes e meios de comunicação? – foi (e ainda é) frequentemente respondida por referência à montagem. Sobre o assunto, recomendo a leitura de O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier, e de Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema, de David Bordwell, sobretudo o primeiro e o último capítulos, de caráter mais teórico. Para entender O Grande Roubo do Trem, é crucial saber qual é a matéria-prima sobre a qual opera a montagem de Porter e, nesse sentido, talvez possamos reconhecer outras dimensões da linguagem cinematográfica, cujas possibilidades estão se abrindo em 1903.
Em parte por ter sido filmado também fora dos estúdios de Edison, na ferrovia Delaware-Lackawanna e num parque em Nova Jersey, o filme tem alguns enquadramentos que escapam do modelo frontal, dispondo a ação em eixos transversais e evidenciando, assim, a questão da encenação cinematográfica como articulação entre mise-en-scène (dimensão teatral) e mise-en-cadre (dimensão pictórico-fotográfica). Além disso, são notáveis os movimentos de câmera, sobretudo nos planos finais do filme, pois a maior parte deles obedece a interesses narrativos, em contraposição aos inúmeros exemplos anteriores de movimentos que resultam do fato de a câmera estar sobre um veículo em movimento (trem, navio etc.). Isso evidencia a questão da mobilidade de pontos de vista que, no cinema, inscreve toda encenação numa duração, cujo ritmo é essencialmente manipulável, seja por acelerações ou desacelerações da imagem, seja pela montagem (entre outras formas de intervenção).
Talvez seja preciso destacar justamente a dimensão do tempo que, como duração e como ritmo, marca a experiência do cinema. Nesse sentido, sugiro que O Grande Roubo do Trem permanece interessante, ainda hoje, principalmente devido aos jogos com o tempo que se insinuam entre suas imagens.
1. Repetição
Em um filme anterior, Life of an American Fireman, Porter lidava com a questão do tempo da ação representada na narrativa de forma similar àquela que encontramos no momento de Viagem à lua em que o foguete chega à superfície lunar. Uma das origens do fascínio de Porter por Méliès é justamente essa sequência, na qual vemos a ação duas vezes, primeiro de um ponto de vista externo (o foguete perfurando o olho da lua), depois de um ponto de vista interno (novamente o foguete chegando à lua, mas agora em meio às crateras). Outro procedimento característico de Méliès do qual Porter se apropria é o corte ilusionista para substituição de objetos do quadro sem mudança de ponto de vista. Mas enquanto em Méliès está em jogo um ilusionismo mágico – como na substituição dos telescópios por bancos no início de Viagem à lua – em Porter está em jogo um ilusionismo naturalista, que sonha em se fazer invisível – é o que ocorre quando um dos bandidos joga o motorista da locomotiva de cima do trem: no meio da luta entre os dois, um corte permite a substituição do corpo do ator por um boneco. Em Life of an American Fireman, acompanhamos o que se passa dentro e fora do prédio, mas não com uma montagem alternada: vemos duas vezes as vítimas de um incêndio e seu salvamento pelos bombeiros, primeiro do interior de um quarto, depois do exterior do prédio. Nos dois casos, assim como em outros filmes, o que se dispõe de forma sequencial no tempo é o que se passa simultaneamente e no mesmo espaço, criando um efeito de repetição da ação.
2. Alternância e convergência
Em O Grande Roubo do Trem, entretanto, a disposição de ações simultâneas em sequência não causa nenhum efeito de repetição, uma vez que as ações se passam em espaços radicalmente diferentes e separados entre si. O filme se inicia com a rendição de um agente de estação pelos ladrões, que o obrigam a solicitar a parada do trem. Depois, da 2ª à 9ª cena, acompanhamos a ação dos ladrões, que sobem no trem, fazem-no parar, roubam os passageiros depois de os fazerem descer e fogem. Na 1oª cena, vemos o agente do início lutando para se levantar, sem sucesso, até que uma garota (sua filha?) joga água em seu rosto e, assim, ele consegue acordar para ir buscar ajuda. Na 11ª cena, ainda longe dos ladrões, vemos um salão, no qual homens e mulheres dançam (e um homem é obrigado a dançar sob tiros), até a chegada do agente avisando sobre o roubo e a formação de uma equipe para perseguir os ladrões. Na 12ª e na 13ª cena, desenrola-se a perseguição e os ladrões acabam sendo mortos. É como se o que se passa entre a 2ª e a 9ª cena, de um lado, e entre o 10º e o 11º, de outro, fossem ações simultâneas, cujas linhas de tempo acabam por convergir na perseguição e no desfecho (12ª e 13ª cena).
Abaixo, reproduzo planos de cada uma das cenas do filme (clique nas imagens para ampliar):
O extemporâneo
O plano mais famoso de O Grande Roubo do Trem é aquele em que o problema do tempo – e portanto da montagem – se desdobra até o limite. Vemos um dos bandidos, seu líder talvez. Ele saca seu revólver e, apontando-o na direção da câmera, atira, como se fosse no espectador. Extemporâneo: o plano se desenrola sem conexão com qualquer momento específico da narrativa. Nesse plano, como em alguns outros, foi realizada a adição manual de cor em algumas cópias do filme, como aquela em que me baseei para este texto, disponível no DVD Early Cinema: Primitives and Pioneers, do British Film Institute. O fundo preto sobre o qual se destaca a figura do bandido ressalta a extemporaneidade – que talvez seja, aliás, a causa para uma variação que ocorria na exibição do filme em diferentes locais: ora o plano aparecia no início, antes das cenas que se integram para formar a narrativa, ora o plano aparecia no final, depois do desfecho em que morrem os bandidos.
Extemporâneo tanto por permanecer fora do tempo da narrativa quanto por constituir um resto cujo lugar é indecidível na exibição de O Grande Roubo do Trem, o close do bandido atirando na direção da câmera marca a herança do chamado “cinema de atrações” (expressão do teórico e historiador do cinema Tom Gunning) no cerne de um cinema que vai, cada vez mais, se afastar da estética da atração e delinear uma estética da distração (escrevi sobre a diferença entre o regime estético da atração e o regime estético da distração na minha dissertação de mestrado), tornando-se assim o cinema narrativo que se costuma chamar de clássico e que se inscreve sob o signo de Hollywood. O close se revela monstruoso, como se permanecesse em excesso e não pudesse ser localizado dentro ou fora do filme, na narrativa ou na exibição. Mas é justamente da monstruosidade do plano extemporâneo que advêm o fascínio, a sedução e o prazer do filme. Como se, no excesso que o lança para fora do tempo, o plano antecipasse e condensasse a potência narrativa do cinema e salvasse, ao mesmo tempo, um núcleo irredutível a qualquer narrativa, alheio a toda narratividade, que perdura ainda hoje, à espreita e à espera de um olhar atento, em meio às imagens que consumimos, distraídos.
Post originalmente publicado em 17 de maio de 2011 e atualizado para essa versão.