A revista Devires – Cinema e Humanidades (cujos números estão disponíveis online) publicou, em seu volume 4, número 2, o dossiê temático Vestígios do real. Entre os textos, está “Algumas notas em torno da montagem”. Depois de uma introdução escrita com Marie-Pierre Duhamel-Muller, a maior parte do texto consiste nas reflexões de Jean-Louis Comolli sobre a montagem no cinema contemporâneo, com especial interesse em seu papel em documentários mais recentes, em que se manifestam alguns dos procedimentos característicos do que o autor chama de “montagem espetacular”.
O conceito de espetáculo – que se deve pensar a partir de Guy Debord, apesar de Comolli não fazer referência direta a suas obras – designa as práticas de produção e de circulação de imagens que, na televisão, nos jogos eletrônicos, no cinema, instauram um regime de aceleração do olhar do espectador, por meio da busca deliberada e sustentada de abreviação do tempo. Entre as figuras dessa “estética da abreviação” (p. 23), Comolli se concentra na análise dos efeitos de sentido e das dimensões políticas do jump cut.
No Dicionário teórico e crítico de cinema, o termo jump cut é traduzido como “salto”. Eis o breve verbete que Jacques Aumont e Michel Marie dedicam a essa figura da linguagem cinematográfica, na página 265:
Raccord entre dois planos quase idênticos, entre os quais a distância espaço-temporal é muito fraca. Foi a prática do documentário, e notadamente da reportagem televisiva, que levou à utilização dessa forma de raccord (o jump cut anglo-saxão), que consiste em montar dois planos que são, na verdade, fragmentos da mesma tomada de cena, eliminando uma parte dessa tomada e conservando o que vem logo antes e logo depois. O efeito visual é tocante, sobretudo no caso freqüente em que o objeto está centrado em uma ou várias personagens estáticas: tem-se a impressão de que a personagem “salta” de repente, de maneira mais ou menos acentuada. Esse tipo de raccord foi introduzido espetacularmente no filme de ficção por A bout de souffle (Acossado), de Jean-Luc Godard, em 1959; ele é considerado um dos elementos estilísticos dos “novos cinemas” da década de 1960.
Os termos de Aumont e Marie talvez não sejam tão precisos quanto seria necessário para a formulação de um conceito adequado de jump cut. O verbete sobre raccord na mesma obra enfatiza que esse termo se refere a uma concepção da montagem que é estranha aos efeitos visuais e aos sentidos do jump cut. Eles associam o raccord ao cinema de “Hollywood na época clásica” e a “um tipo de montagem na qual as mudanças de planos são, tanto quanto possível, apagadas como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa visual” (p. 251). Dessa forma, chamar o jump cut de raccord, como fazem no verbete que transcrevi acima, é impreciso, para dizer o mínimo.
Efetivamente, no artigo publicado na Devires, Comolli opõe o jump cut ao raccord clássico, associado à montagem em continuidade. Enquanto o raccord liga dois planos diferentes de modo a não perturbar a ilusão de continuidade e a impedir que o corte se torne visível como artifício, o jump cut torna evidente a descontinuidade essencial à montagem e confere visibilidade ao caráter artificial do todo produzido por meio do encadeamento dos planos. Dessa forma, o jump cut aparece como uma forma de interromper a continuidade que sustenta o cinema narrativo clássico, ao impor ao olhar do espectador a consciência do corte. É nesse sentido que o jump cut será usado por Godard e pelos “novos cinemas” da década de 1960 a que Aumont e Marie fazem referência no verbete citado: trata-se de provocar estranhamento, de conduzir ao questionamento do ilusionismo, de revelar o caráter artificial do realismo clássico.
No contexto do documentário, os sentidos do jump cut são deslocados. Comolli define o jump cut como uma “prática bastante generalizada atualmente, que leva a cortar na figura filmada, no corpo-fala filmados, a fim de selecionar os momentos de fala propostos ao espectador” (p. 16). O poder da montagem é afirmado pela intervenção na duração, que fragmenta o tempo em pedaços considerados essenciais e, efetivamente, censura a aparição do que é considerado menor, secundário, dispensável. Eis a definição de jump cut que Comolli propõe na nota número 2 de seu texto:
Corte no plano: num mesmo plano, numa mesma tomada, cortar, quer dizer, fazer desaparecer uma porção mais ou menos importante de fotogramas ou, em vídeo, do que chamamos “imagens”. Ao mesmo tempo que a imagem, o som é cortado. As duas extremidades assim criadas no interior de uma continuidade espaço-temporal (a película) são unidas, o menos mal possível, numa resposta mais ou menos grosseira que exala o arte de uma catástrofe. O “raccord” torna-se, assim, salto no plano.
A experiência de mudar de canal por meio do controle remoto, em que a passagem entre programas de canais diferentes se manifesta como salto de uma imagem à outra, oferece uma analogia à experiência do jump cut: “Zapping menos entre ‘programas’ difundidos pela televisão do que no interior mesmo do programa, zapping como programa de visão” (p. 18). Esse “programa de visão”, cujo modelo metafórico é o zapping, corresponde à “montagem espetacular” e encontra no jump cut um recurso fundamental, por doze razões, em torno das quais Comolli desenvolve suas densas reflexões:
1. O jump cut obriga a tomar consciência da fragmentação, da descontinuidade dos fotogramas da película e da narrativa cinematográfica, da descontinuidade do tempo e do mundo, que a ilusão cinematográfica denega ao simular, por meio da montagem em continuidade, o tempo como fluxo.
2. O cinema corresponde ao desejo da ilusão de continuidade e de síntese (a imagem cinematográfica como reconstituição do movimento da vida), em oposição à análise (a imagem cinematográfica como revelação da descontinuidade fundamental da vida, isto é, da morte), que encontra no jump cut um recurso crucial.
3. O jump cut é o corte sem mascaramento, a montagem que se mostra, e seu jogo está associado à “generalização da montagem rápida (os clipes, as publicidades, os planos curtos ou muito curtos)”, que define “uma estética da abreviação” (p. 23), na qual o imaginário é barrado e dominado, toda ambivalência é reduzida e o “modo de leitura da informação jornalística se impõe” (p. 25).
Comolli extrapola essa argumentação e propõe uma compreensão panorâmica da história do cinema como embate entre escritura e espetáculo: “desde sua invenção o cinema abriga uma tensão entre o sonho (ou o fantasma) de uma virtualização do mundo e a inscrição de um traço material, resistente, durável: a materialidade do traço fílmico que inscreve uma duração como resistência. Mesmo o ‘minuto Lumière’ dura muito tempo.” (p. 23-24)
4. Tanto o mascaramento do corte, por meio do raccord clássico, na montagem em continuidade, quanto seu desmascaramento por meio do jump cut e de outros recursos de ruptura com a ilusão e de denúncia do engodo cinematográfico, em nome da verdade, pertencem à “retórica da ilusão” (p. 25), isto é, compartilham das mesmas condições técnicas e estéticas: “o jogo da ilusão só pode ser denunciado do próprio interior da ilusão” (p. 25)
5. A ilusão de uma “inscrição verdadeira” do mundo na cena filmada, na imagem de cinema, delimita um lugar de implicação do espectador, no qual seu imaginário pode passear com alguma liberdade, enquanto a consciência da fragmentação a que o jump cut está associado desrealiza e fragiliza a imagem de cinema, delimitando um lugar de controle do espectador: “Com a confissão do artifício, aparece a manipulação como possível e legítima: o controle da situação.” (p. 26)
6. As modalidades de corte – o raccord clássico, o jump cut – devem ser compreendidas em relação ao momento histórico em que se articulam e projetam sua hegemonia sobre a prática cinematográfica: ao raccord corresponde a experiência espectatorial do cinema como “o encontro da ilusão, a colocação em jogo da crença” (p. 27), enquanto ao jump cut corresponde a atual “obsessão do real” (p. 27).
7. O jump cut nega a possibilidade de existência de uma temporalidade autônoma da cena, da situação filmada, que a montagem deveria “respeitar e refletir” (p. 27), de modo a resguardar, como faz o raccord clássico, por exemplo, “alguma coisa da liberdade do espectador, de sua hesitação, de sua possível errância” (p. 28).
8. Ao interromper a ilusão referencial da temporalidade da cena, da situação filmada, o jump cut responde ao problema prático da administração do tempo, da “gestão da duração e do sentido” (p. 28)1, por meio da redução das ambiguidades e da escolha, no lugar do espectador, do caminho que deve ser seguido, de modo que a liberdade do espectador é contida, enclausurada, controlada pelo tempo “cômodo” prescrito pelo jump cut: “um tempo adaptável, lábil, dobrável, conformável” (p. 30), “como uma variável ajustável” (p. 30).
9. O tratamento das durações e o modo de cortar e de encadear os planos deve ser reconhecido como “diretamente político” (p. 31), e a oposição entre escritura e espetáculo corresponde à oposição entre “tempo incontável” e tempo mensurável (“tempo é dinheiro”), entre pensamento do tempo e gestão do tempo, entre o tempo da experiência e o tempo da aceleração e da fragmentação, do zapping e do jump cut como figuras de “um gozo tanatofílico” (p. 33).
10. O realismo cinematográfico está mais relacionado “à dimensão mimética, à analogia como tal” (p. 33) do que ao “espetáculo fantasmagórico” (p. 33) dos efeitos visuais: a impressão de realidade exerce uma pressão contra a tendência de virtualização e de espetacularização do mundo por meio do cinema e da imagem em geral.
11. A potência analógica do cinema, que “representa a liga da vida” (p. 22), como Comolli escrevera no trecho 2, conduz a sua definição como “arte da figura, arte figurativa, celebração do rosto (close)” (p. 34) e cria uma tensão realista – “a dificuldade dos corpos filmados em se deixarem virtualizar totalmente pelo cinema” (p. 34) – que será, efetivamente, reduzida pelo jump cut, pela desfiguração da figura que ele enseja, como “colocação em (pequenas) peças” (em oposição à colocação em cena, isto é, à mise-en-scène), como despedaçamento e fragmentação.
12. O jump cut desfigura o corpo humano, ao mesmo tempo que desfaz as relações que conferem sentido a ele: se a figuração do corpo e do rosto remetem a um fora-de-campo composto por outros corpos e rostos, “reais ou imaginários, ausentes ou presentes” (p. 36), o corte no corpo filmado, isto é, o jump cut equivale a uma violência e à afirmação de uma vontade superior à do corpo/rosto filmado, que destrói a rede de relações que o constitui.
Comolli escreve:
A duração do plano é o que acolhe a fantasia ou o desequilíbrio do corpo filmado. Relação de forças. O corpo quando é filmado se transforma, é enquadrado, reduzido, aumentado, desproporcionado, retemporalizado, em suma, reescrito. Não sem incidentes nem resistências. […] O corpo filmado tem a ver com acidente. O corpo é contradição, subversão. O cinema deve domesticá-lo. Esse adestramento nunca é desprovido de resíduo. Há tensão, degradação, excesso. E a forma maior desse excesso – a que também chamo de autonomia do corpo filmado em relação ao enquadramento regulado pela máquina – diz respeito à constituição de uma área de jogo, de extensão, que lhe seria própria. […]
A intervenção de um cortador que faz saltar a imagem e o corpo na imagem é então imediatamente legível como violência, até mesmo como violação: algo da colocação espontânea de um espaço-tempo e de uma forma-palavra próprias a esse corpo filmado é destruído pelo festo de corte que marca a pregnância de uma vontade exterior agindo no interior da cena. (p. 37)
Dessa forma, podemos identificar a série de oposições conceituais que organiza o pensamento de Comolli sobre o jump cut: a escritura e o espetáculo, a experiência e a fragmentação, o tempo incontável e o tempo medido como mercadoria, “o mundo do cinema (a ilusão, o engodo, a liberdade de errar) e o da informação (a verdade, o peso dos fatos, das palavras, das instruções)” (p. 38), a liberdade do corpo filmado e do espectador e o controle sobre corpo filmado e espectador. Pensar sobre essas oposições na produção cinematográfica e audiovisual contemporânea me parece fundamental, e é essa a razão dessa simples, embora longa nota de leitura.
Aqui, parece surgir um problema de tradução (que não posso confirmar, pois não tenho acesso ao original em francês). O substantivo “gestão” corresponde ao verbo “gerir”, em português, mas o que aparece no restante do texto é o verbo “gerar”: “Geramos a duração, geramos os corpos e as falas filmadas” (p. 28); “Cômodo para gerar o tempo dos outros […]” (p. 30); etc. ↩