Jia Zhangke pertence à chamada “sexta geração” do cinema chinês. Trata-se da geração ligada aos eventos na praça de Tian An Men, ou praça da Paz Celestial, em 4 de junho de 1989. São os herdeiros distantes da Revolução Cultural, iniciada por Mao Tsé-Tung em 1966. São os narradores da abertura econômica, da construção e das consequências do “socialismo de mercado”, oferecendo vislumbres de suas margens, de suas fraturas e fissuras, de suas contradições, tensões e exclusões constitutivas.
Jia Zhangke e outros cineastas de sua geração filmam na clandestinidade durante o início de suas carreiras, fugindo da censura estatal e do controle governamental por meio da busca de financiamento no exterior (na forma de coproduções com a França ou de contratos de prévenda com empresas dos Estados Unidos, por exemplo) e/ou por meio de um circuito underground de circulação de equipamentos, recursos e pessoas (técnicos, atores etc.). Escapando da censura e do controle, são geralmente bem recebidos em festivais internacionais fora da China mas permanecem restritos a projeções privadas dentro da China. A censura aumenta até o ponto de ser impossível retirar internegativos de laboratórios sem uma carta de autorização, mas a emergência das tecnologias digitais possibilita uma escapatória aos cineastas.
Com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, a produção cinematográfica do país começa a se reestruturar, no contexto do socialismo de mercado. Em 2004, com o presidente Hu Jintao assumindo o poder, as autoridades propõem o fim das proibições que pesam sobre os cineastas da “sexta geração”, que contarão com a legitimidade interna da aprovação estatal para suas realizações. Isso dá lugar de forma gradual a uma forma econômica de censura (que é comum a inúmeros outros países do mundo em suas condições de base e em seus efeitos generalizados), ligada à distribuição e à exibição dos filmes. É essa forma econômica de censura sobre o cinema que foi de alguma forma confrontada – em seu papel constitutivo no cenário audiovisual brasileiro (cujo acesso ao cinema mundial é completamente enviesado pelo que poderíamos chamar de ocidentalismo) – nessa sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010, no Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, com a exibição do filme de Jia para uma platéia de cerca de 15 a 20 pessoas, das quais ao menos 10 permaneceram para um interessante debate.
O Mundo é o primeiro filme de Jia Zhangke a ser realizado com a aprovação estatal e, além disso, o primeiro que se passa fora de sua província natal de Shanxi. Filmado com tecnologia digital de alta resolução e em formato CinemaScope (com proporção altura-largura de 1:2.35), O Mundo se passa em Pequim, no parque que dá nome ao filme, que oferece a seus visitantes a possibilidade de conhecer o mundo sem sair de Pequim: “Dê-nos um dia e lhe mostraremos o mundo” é o que se lê na entrada. Entre as atrações do parque, estão: a Torre Eiffel, da França; a Torre de Pisa, da Itália; o Big Ben, de Londres; a ilha de Manhattan, de Nova York. O efeito de irrealidade dos simulacros pós-modernos de monumentos se entrelaça aos efeitos de realidade tecidos vagarosamente pela paciente câmera de Yu Lik-wai, o fotógrafo cinematográfico que acompanha Jia na maioria de seus filmes. Com a predominância de planos-sequência articulados numa suave tecelagem, O Mundo aborda o cotidiano das trabalhadoras e trabalhadores que fazem funcionar o parque – os guardas encarregados da segurança do local, as dançarinas responsáveis pelos espetáculos de palco – e das pessoas que conhecem em Pequim – trabalhadores das inúmeras construções que alteram a paisagem urbana, sujeitos em trânsito entre as vilas e cidades interioranas, a capital e o exterior.
Filmando o espaço de simulacro do parque temático e o espaço de trânsito da metrópole em (des)construção, Jia Zhangke e Yu Lik-wai alegorizam a reconfiguração do espaço-tempo que constitui a globalização por meio da representação, em um espaço real (o parque) e nas vidas que o fazem existir concretamente como espetáculo, da tendência de abolição do espaço na contemporaneidade, com seus fluxos de capital, suas tecnologias de comunicação, todas as suas formas de virtualização e simulação. Se o cinema se define (também, em parte) pela sua capacidade de montar uma “geografia criativa” (para usar o termo de Lev Kulechov), em O Mundo a geografia se torna uma paisagem múltipla e flutuante, composta por simulacros do global e melodramas do local. O Mundo monta – na tecelagem que une seus planos-sequência, o espetáculo dos palcos e suas imagens ricas de cores e sentidos – uma geografia da glocalização: da liga que entrelaça global e local na vida cotidiana das trabalhadoras e trabalhadores que fazem girar O Mundo.
Os personagens do filme pertencem a uma “geração flutuante”: migrantes que deixam suas terras natais no interior do país para tentar a vida em Pequim ou em outras cidades grandes. Como escreveu o Luiz Carlos Oliveira Jr. na contracampo: “Em muitos momentos, o filme parece a poesia tranqüila dessa geração à deriva.” A certa altura do filme, diante de russas recém-chegadas, com a equipe reunida, um dos trabalhadores chineses, Niu, observa através de um binóculo. Sua namorada, Wei, com quem acabará se casando, pergunta alegremente se ele não se parece com Colombo. Nessa comparação, está em jogo a cifra metafórica que dá movimento ao filme: deslocados, em trânsito, os migrantes descobrem O Mundo/o mundo, a “geração flutuante” se vê diante da própria máquina do mundo.
Há uma cisão entre o espaço do parque – que constitui uma prisão, ou até mesmo uma forma de campo de concentração, em que é preciso trabalhar pela diversão e pela ilusão do espetáculo (como sugeriu o Cássio Starling Carlos na Folha de São Paulo) – e o espaço de fora do parque – composto pelos vestígios e ruínas de uma cidade em (des)construção e pelas efêmeras paisagens do estar em trânsito. O que conecta esses espaços cindidos é a tecnologia: os telefones celulares operam como signos ambíguos da liberdade e do controle, da comunicação e da incomunicabilidade essencial que marcam a experiência humana.
Nos momentos em que os celulares aparecem, Jia Zhangke introduz animações, que suplementam os sentidos dramáticos com delírios flutuantes, com fantasias multifacetadas, que comunicam mensagens contundentes em sua banalidade, para os personagens. As animações operam como uma máquina de produção de paisagens sintéticas em O Mundo: paisagens sintéticas porque reúnem elementos das fantasias subjetivas (a liberdade e a fuga do voo de Tao, a figura de Taisheng como um cavaleiro romântico etc.) a elementos do espaço urbano que se (des)constrói, se renova e se esgarça (as favelas amontoadas, as ruas movimentadas, os meios de transporte em trânsito perpétuo, sem descanso e sem pausa etc.).
Em meio à cisão espacial e aos fluxos de comunicação que entrelaçam o parque e sua promessa de contato com o global, de um lado, e o que está fora dele, a localidade em (des)construção, de outro, os encontros e desencontros dos personagens vão compondo um painel mais ou menos fragmentado, um mosaico fluido, uma colcha de retalhos de relações sociais, relacionamentos amorosos e amizades. Os melodramas do local que o filme acompanha e que habitam as paisagens da cidade e seus simulacros do global (dos quais o parque é o emblema paradigmático) tratam principalmente da (im)possibilidade da intimidade nas relações humanas no contexto da globalização teletecnológica. O relacionamento de Niu e Wei, que termina em casamento, atravessa altos e baixos que estão invariavelmente relacionados ao uso do telefone celular. Tao descobre o relacionamento escondido de Taisheng com Qun ao ver a mensagem de despedida que esta envia àquele. Entre outros exemplos que poderiam ser dados, os anteriores evidenciam a importância e a ambivalência – entre liberdade e controle, entre diálogo e silenciamento – dos telefones celulares como tecnologias de comunicação.
É na relação entre Tao e Anna, uma das trabalhadoras russas, que a questão da comunicação se torna mais contundente. Falando línguas diferentes, ambas dialogam (em uma cena memorável em que Anna ensina uma canção para Tao e em outros momentos), construindo – mesmo que de maneira passageira – o comum de uma amizade que os celulares, como tecnologias da comunicação, paradoxalmente interditam, ou pelo menos atrapalham. Entre Tao e Anna, separadas por uma barreira linguística que impede o recurso aos celulares, desenrola-se uma amizade singela que garante alguns dos mais belos momentos do filme. Entre Tao e Anna, a narrativa do filme constrói gradualmente um melodrama da interculturalidade, com peças que vão se somando aos poucos, separadas por outras histórias.
Os planos-sequência abertos em seu enquadramento e formato (CinemaScope) e uma trilha sonora que reenvia incessantemente ao espaço fora-de-campo (o espaço que imaginamos mas não vemos na tela) criam uma sensação de asfixia: ninguém está só (lembrou Leonardo Levis), embora haja solidão (acrescento eu). O espaço fora-de-campo se compõe com vislumbres fluidos e, sobretudo, sons de máquinas, veículos e pessoas conversando. A cada vez, nas discussões de relacionamento de Wei e Niu, na deriva das conversas de Tao e Taisheng, ou nos encontros entre os personagens no parque, nos bastidores do palco e nas ruas da cidade, pesa sobre as pessoas o olhar de (mais de) um outro, de (mais de) um terceiro. A paisagem mais íntima se vê sempre atravessada e habitada pelo olhar e pela voz do outro, em meio às tecnologias da comunicação. A intimidade mais profunda – a dádiva sem retorno da amizade mais aberta – se dá na incomunicabilidade de Anna e Tao. No espaço da incomunicabilidade, O Mundo projeta o comum da humanidade.