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Pacific: memória, arquivo, anarquivo

O filme de Marcelo Pedroso aborda as imagens, as memórias que as atravessam e o arquivo que constituem, mas seu horizonte é uma pulsão anarquívica.

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Esta é uma versão atualizada do texto originalmente publicado no incinerrante, com o título Pacific: a memória do aparelho e as ruínas do espetáculo.

É comum se dizer que vivemos num mundo saturado de imagens. É como se nossos olhos não fossem capazes de se abrir, diante de toda a luz, diante de toda a intensa luminosidade das telas, para tantas imagens. As informações que suas superfícies guardam parecem se converter em uma massa disforme, indiferente em sua diversidade. Tudo se passa como se a diversidade de imagens estivesse aí, em correspondência com a diversidade da realidade, à espera de olhos mais abertos, mais numerosos ou mais atentos. Mas não devemos esquecer que a saturação está relacionada a um efeito de censura: a diversidade de imagens não corresponde à diversidade da realidade. Há sempre algo que fica de fora, que permanece sem representação, alguma realidade que não se faz imagem, alguma imagem que não representa qualquer realidade, em suma, um resto que, realidade ou imagem, escapa à luz ofuscante do espetáculo, que vai habitar algum lugar fora de quadro.

A diversidade das imagens que nos circundam como se fossem janelas para o mundo permanece marcada por uma irredutível cegueira. Na sua redundância, a cultura visual contemporânea aparece como uma forma de rasura da diferença: a luz da visibilidade absoluta ofusca a deriva dos olhos e domestica nosso olhar, isto é, procura conter e controlar sua potência selvagem, submetendo-a a rotinas exigentes de atenção e de distração, de movimento e de repouso, que operam para converter o olhar em um recurso disciplinado, dócil, controlado, dentro de uma economia das imagens capturada pela economia do capital. Assim, a saturação de imagens não equivale a uma riqueza, mas a um empobrecimento da experiência e a uma redução da potência do olhar, que se revela de forma crucial nas imagens precárias – inconstantes, inquietas, indecisas – que compõem o filme Pacific (2009).

O filme de Marcelo Pedroso transcorre num cruzeiro com destino a Fernando de Noronha. Em dezembro de 2008, uma equipe de produção embarcou no cruzeiro Pacific. No navio, foram identificadas as pessoas que registraram a viagem em vídeo, mas ninguém foi abordado pela equipe até o final do percurso, quando foi feito o convite para que cedessem suas imagens para um documentário. Não é, contudo, um documentário sobre uma viagem, mas um documentário sobre imagens e, em primeiro lugar, sobre os olhares e as memórias, as relações e as sensações, os sonhos e os tempos que se entrelaçam na sua tecelagem.

Ao se apropriar de imagens já produzidas por outros, Pacific exige que nos perguntemos sobre o que as câmeras capturaram e sobre aquilo que deixaram de fora – a questão da representação – assim como sobre quem as controla – a questão da mediação. Embora as imagens possam ser entendidas como representações do mundo em que vivemos (em sua realidade e em sua irrealidade), a compreensão da complexidade da vida das imagens passa pelo reconhecimento de que, em suas superfícies, o que se codifica são os traços de alguma experiência comum.

Com frequência, é na mediação (e não na representação) da experiência que se descobre a vida das imagens e sua insistente pulsação, mesmo quando as vidas nelas representada parece se reduzir à repetição de roteiros e programas vazios. O uso do vídeo pelos turistas impõe a necessidade de considerar tanto a representação quanto a mediação, já que a maioria segura a câmera e fala sobre o que está sendo registrado, mas é na passagem das imagens entre dois regimes diferentes de visibilidade que se pode situar a transformação mais radical de seu estatuto, operada por Pacific.

Se as imagens foram registradas com intenções que correspondem ao regime dos usos domésticos e familiares do vídeo, sua inscrição no filme – sob a assinatura de Marcelo Pedroso, que opera por meio da montagem – implica a passagem para um regime público e aberto de visibilidade, que é aquele do cinema. Os sentidos de registro pessoal e de recordação da viagem, que investiam as imagens inicialmente, se rarefazem com sua acumulação e com o jogo de seu encadeamento na montagem do filme, que as investe com outros sentidos.

Pacific é um documentário de pós-produção, no sentido de que consiste numa obra que se constrói a partir de imagens alheias e já existentes. Mas a quem pertence uma imagem? A quem pertencem as imagens de Pacific? Em primeiro lugar, pertencem àqueles e àquelas que as produziram (e que aparecem nos créditos do filme como “fotógrafos” cinematográficos), na condição de turistas ávidos por guardar, através da mediação aparelhada de suas experiências, a memória da viagem, delimitando o regime doméstico e familiar de sua visibilidade. Em segundo lugar, pertencem a Marcelo Pedroso e a sua assinatura como marca de um lugar de enunciação, que é aquele do filme como produto cinematográfico, no qual as imagens são reescritas pelo seu encontro disseminado, no regime público e aberto de visibilidade que corresponde ao cinema.

Na reescrita cinematográfica das imagens feitas pelos turistas, perdem-se seus valores de memória subjetiva e todas as formas de seu investimento pessoal – o vídeo como registro da viagem e de seus vários momentos, como lembrança das festas e das atividades de entretenimento programadas no cruzeiro, como traço significativo do convívio passageiro de amigos, casais e famílias. Nada disso é muito mais do que fantasmas aos olhos dos espectadores cinematográficos de Pacific: não conhecemos todos os personagens, permanecemos à distância mesmo que vejamos tudo de tão perto, e se parecem com fantasmas, para nós, todas as luzes espetaculares registradas pelos turistas, inclusive a luz da lua que, a certa altura, alguém tenta apontar, dizendo que está bonita, mas que, na superfície da imagem, se confunde com as luzes artificiais do cruzeiro.

À distância, descobrimos nas imagens de Pacific as ruínas do espetáculo e da luz ofuscante da pobre saturação de imagens em que vivemos. São as ruínas do espetáculo do turismo – que faz proliferar as instâncias de diversão no decorrer da viagem (como os cenários de festas e as apresentações musicais, incluindo O fantasma da ópera e Garota de Ipanema, sempre acompanhadas de encenações teatrais) e que codifica a paisagem como “natureza”, vendendo o espaço controlado de Fernando de Noronha como mercadoria. São as ruínas do espetáculo do audiovisual contemporâneo – que carregamos nos olhos há mais de um século, como cinema, embora o experimentemos cada vez mais como televisão. Ruínas do espetáculo que imitamos, dia após dia (como faz de forma consciente um casal ao parodiar uma sequência amplamente conhecida de Titanic, de James Cameron), que abrigamos sob a forma de inconsciente (e seria possível, aliás, fazer um estudo das formas de auto-encenação dos turistas em Pacific, comparando-as com determinadas formas de construção e de encenação de personagens cinematográficos). São as ruínas do espetáculo de si – que cada um de nós constrói interminavelmente, como fazem os turistas que se filmam ou que buscam (às vezes de forma quase obsessiva) seu próprio reflexo em superfícies espelhadas.

À distância, sem encontrar memória alguma em suas imagens, que nos revelam somente ruínas, descobrimos entre as imagens de Pacific o trabalho de memória do próprio aparelho e de seu jogo programado, que antecede e condiciona todas as possibilidades de uso do vídeo para suplementar a memória subjetiva. Se a memória subjetiva dos turistas remete ao passado da experiência mediada pelo audiovisual, a memória do aparelho se prolonga rumo ao futuro, delimitando todas as formas imagináveis da experiência por meio de sua mediação. É como se as formas futuras imagináveis de experiência estivessem registradas na memória do aparelho (como uma memória de computador registra virtualmente todas as possibilidades do programa). Entretanto, na passagem do regime doméstico e familiar de visibilidade do vídeo para o regime público e aberto do cinema, a revelação das ruínas do espetáculo nos leva, finalmente, à questão mais importante, que escapa ao filme: como ler a diferença por baixo da rasura da diversidade? Em outras palavras: como ver as luzes fragmentadas e assombradas da diferença – sua luz de vaga-lume, sua vaga luminosidade – contra a luz ofuscante do espetáculo? Enfim: de que forma se pode dessaturar a experiência que fazemos do mundo, por meio dos incontáveis aparelhos de imagem que nos circundam, que nos atravessam, que nos habitam? Como revelar, no arquivo das imagens que saturam nossos olhos, algo da anarquívica arte de viver?