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O corpo frágil: Our body is a weapon, de Clarisse Hahn

Se os corpos podem ser armas, como mostram os três documentários reunidos na trilogia de Clarisse Hahn, sua fragilidade pode, por outro lado, se tornar um dos fundamentos da vida (em) comum.

Como parte da Mostra Camera Doc – O Olho no Mundo e Seus Conflitos, do I Fronteira, a trilogia Our body is a weapon (Nosso corpo é uma arma, 2012), dirigida por Clarisse Hahn, cria uma intensa e perturbadora experiência. Enquanto sua exibição no festival obedece à configuração de tempo linear na experiência cinematográfica em tela única, característica da sala escura, seus sentidos parecem estar associados a sua emergência no contexto da vídeo-arte, como instalações que descerram outros sentidos do tempo, por meio de procedimentos de interpelação do corpo espectatorial (em vez da suposição de imobilidade da sala de cinema) e de justaposição de imagens em telas distintas (em vez da suposição de unicidade da imagem de cinema). As imagens transitam entre cinema e arte, e suas superfícies carregam as tensões dos conflitos a que se referem.

Em Our body is a weapon, efetivamente, as imagens se tornam um prolongamento de diferentes campos de conflito, identificados pelos títulos específicos de cada documentário: Prisons, Gerilla e Los Desnudos. No lugar comum criado pela trilogia – entre prisões turcas, em que mulheres em greve de fome são violentamente reprimidas pelo exército estatal; fronteiras disputadas por rebeldes que reivindicam o direito a um Estado curdo, enquanto refugiados procuram viver em Paris; e manifestações nas ruas da Cidade do México, em que camponeses nus reclamam seu direito à terra – o que está em jogo é a própria questão da comunidade, e especialmente do sujeito da palavra Our…, cuja posição o título da trilogia, ao mesmo tempo, pressupõe e produz.

Em Los Desnudos, o olhar estrangeiro da diretora, que uma das camponesas nuas identifica durante o filme, apresenta alguns vislumbres das manifestações pelo direito à terra que, finalmente, conduzem ao diálogo e ao sucesso em sua reivindicação de base. Talvez em decorrência de sua evidente estrangeiridade, o modo de ver construído nos planos e na montagem que os encadeia permanece atrelado a convenções do documentário, como a prática da entrevista e de distanciamento objetivante. Entretanto, por meio do ritmo que imprime às imagens, Hahn é capaz de suplementar as convenções que utiliza, cuja apropriação televisiva não deve ser ignorada, com a potência inventiva de um olhar que, além de estrangeiro (e talvez por isso), é fundamentalmente curioso e, portanto, aberto.

Prisons aborda a resistência de mulheres à violência estatal institucionalizada nas prisões da Turquia. Seus planos iniciais apresentam duas das mulheres que participaram de uma greve de fome de mais de 100 dias, causando efeitos nefastos que foram inevitáveis. Enquanto uma voz masculina enuncia, fora do campo da imagem, as informações relativas a cada uma delas, seus rostos são enquadrados em planos aproximados que, de modo ambivalente, revelam indícios do que a voz identifica como problemas físicos e mentais decorrentes da duração prolongada da greve de fome e, ao mesmo tempo, insinuam traços da força que resta e resiste em seus corpos, do desejo de justiça que insiste em habitar seus olhos inconstantes. Quando imagens de arquivo (retiradas, ao menos em parte, de reportagens de TV) mostram a violência da repressão a que as mulheres em greve de fome foram submetidas, seus corpos e as figuras que traçam na tela se situam, novamente, entre os indícios da derrota e os traços da resistência, entre as evidências do absurdo e a insistência do desejo de mudança, cujo horizonte parece ser o de uma irrecusável vontade de vingança. A vingança se dirige, igualmente, à câmera e, portanto, a cada espectador. Quando uma das mulheres grita para que a pessoa que segura a câmera continue filmando e ameaça explodir sua cabeça, caso pare de filmar, a posição do espectador assume um sentido ético e político: dar à visibilidade das imagens o abrigo de nossos olhos equivale a manter viva alguma possibilidade de resistência às injustiças que as imagens registram.

Em Gerilla, se há algum sentido ético e político na posição do espectador, ele está relacionado ao espaçamento entre as impressionantes imagens capturadas por rebeldes curdos, que, na fronteira entre Iraque e Turquia, registram seu cotidiano, a preparação de armas e a batalha a que se destinavam, e as imagens menos chocantes, mas talvez não menos intensas, da vida de refugiados curdos em Paris. Ao ser confrontado com imagens de curdos em situações tão distintas, embora intimamente relacionadas, cada espectador deve assumir a tarefa de interrogar as possibilidades e os limites de construção de uma identidade curda comum. Efetivamente, aos curdos e aos espectadores de Gerilla e de Our body is a weapon parece restar, como fundamento contingente da invenção do comum, pouco mais do que a fragilidade do corpo humano. Seja diante do frio (combatido pelos rebeldes por meio de uma espécie de dança oscilante, um passo para frente e outro para trás), seja diante da guerra (experimentada por meio da mediação tecnológica dos rádios e, de modo crucial, da câmera filmadora), o corpo permanece ínfimo, como escreveu Walter Benjamin, em 1933, pensando na experiência da Primeira Guerra Mundial, no ensaio “Experiência e pobreza”:

Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frâgil e minúsculo corpo humano. Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem.

No espaçamento entre os rebeldes curdos no campo de batalha da zona de fronteira entre Iraque e Turquia, por um lado, e os refugiados curdos nas ruas de Paris, por outro, a incomensurabilidade da técnica em relação ao ínfimo corpo humano se evidencia, mas seu sentido ultrapassa a interpretação de Benjamin da sobreposição da técnica ao homem, pois, no contexto dos registros feitos pelos rebeldes, a técnica parece ter deixado de ser estrangeira ao humano, como se fosse um fim em si mesmo, tornando-se, em vez disso, um puro meio, sem fim (isto é, ao mesmo tempo, sem finalidade e sem término, pois não há teleologia, não há desfecho, não há resolução). De fato, a mediação tecnológica é uma das condições de possibilidade do filme de Clarisse Hahn, e seu alcance ultrapassa o âmbito restrito dos usos utilitários dos equipamentos bélicos. Ao dar visibilidade ao cotidiano e à luta dos rebeldes curdos, a técnica parece estar subordinada aos sentidos da guerrilha e da máquina de guerra em que se insere. Contudo, a dádiva da visibilidade acarreta um movimento de errância (o dom que não retorna à origem, o presente que nunca pode ser pago), e grande parte do interesse de Gerilla decorre do deslocamento dos registros da câmera dos rebeldes em relação a seu suposto uso intencional e proposital. Nesse deslocamento, a fragilidade dos corpos, em seu devir-comum (como na dança que os rebeldes fazem para se aquecer e no jogo de que participam, ou na outra dança, que alguns refugiados realizam num gramado em Paris), torna-se mais importante do que a força das armas, em sua condição de dispositivos, isto é, de formas de captura do comum dentro de estratégias destinadas a consolidar redes de poder.

À coletividade fechada do corpo que se unifica como arma, tornando-se, ao mesmo tempo, aparentemente coletivo (como manifesta o pronome possessivo Our…) e fundamentalmente fechado em si, será preciso opor, rigorosamente, o corpo que se multiplica, comum, no reconhecimento e na experiência de sua própria fragilidade. Será preciso, em suma, contra uma leitura unívoca do título da trilogia de Clarisse Hahn, elaborar um itinerário equívoco em que seus filmes possam revelar uma poética da fragilidade como condição da vida (em) comum. 

Anteriormente publicado na Revista Janela.